As Longas Noites
de Caxias, Ana Cristina Silva, 2019
A cada novo livro de
Ana Cristina Silva que leio, reforço a ideia que já anteriormente
expressei de que “a autora revela a sua mestria em analisar e
transmitir-nos estados de alma das personagens que cria”. Desta
vez, partindo de factos verídicos, o foco é o que o medo faz às
pessoas e até que ponto pode chegar a perversidade de uma pessoa
para com outras. Para tal, evoca o instrumento que o Estado Novo
utilizou para subjugar um povo – a PIDE – analisando o uso do
poder e do medo por parte dos torturadores e a capacidade de
resistência por parte dos que eram presos pela PIDE.
A autora começa “As
Longas Noites de Caxias” dedicando-o “A todos os resistentes
antifascistas” e é clara a vontade, com este livro, de não deixar
esquecer o que foi a polícia política de Salazar, num país e num
mundo onde a democracia mostra sempre quão frágil e vulnerável é
a todos os populismos e inimigos da liberdade e da democracia.
Antes, referi
torturadores e torturados. Mas neste livro, as personagens são
femininas, ou seja, torturadora e torturada. Laura Branco, a jovem
natural de Mértola que, pelo seu excelente percurso escolar,
consegue chegar à universidade graças à obtenção de bolsas de
estudo e que acaba por ser presa. No Alentejo tinha convivido com
crianças descalças, com crianças que iam para a escola com fome,
com crianças que eram tratadas diferentemente consoante o seu
estatuto social, mas em Lisboa, na faculdade, a compreensão dessa
realidade ganhou outra dimensão no contacto com outros estudantes
que falavam de discriminações, da sociedade de classes, da guerra
colonial que abominavam, sempre com o risco da prisão ou de serem
ouvidos por informadores, um pouco por todo o lado.
Maria Helena,
tristemente conhecida por Leninha, é também apresentada, não
apenas como a feroz chefe de brigada que se empenhava em torturar as
presas nas longas noites de Caxias em que estava de turno durante a
tortura do sono, mas que exibe um traço maléfico persistente de
ódio à mãe vítima da brutalidade do marido que considerava uma
mulher fraca, de maldade para com as colegas da escola e de
arrogância e total falta de humanidade ou remorso quando, após o 25
de Abril, foi julgada e confrontada com as presas que tinha
torturado. São inesquecíveis as páginas que relatam os métodos
usados para com as detidas em Caxias, ou a descrição da forma
bárbara como matou um gatinho que se lhe enrolou às pernas e a fez
cair, num dia em que ainda menina ia para a escola. Esta mulher nunca
mostrou o mais leve assomo de sensibilidade ou humanidade, excepto no
seu amor à figura de Salazar e no conceito que tinha de amor à
pátria. Tal como o beijo que Salazar lhe deu na testa quando criança
a marcou para toda a vida, a morte do ditador foi como que o desabar
do mundo e a convicção de que os métodos na tortura deviam ser
intensificados, sobretudo nos estudantes que ela considerava inimigos
da pátria.
O livro tem muito
interesse do ponto vista histórico e de testemunho do que era a
polícia política, dos seus métodos, do medo que paralisava e
tolhia um povo, mas também dos que resistiam e que acreditavam que a
ditadura iria acabar. Maria Helena/Leninha foi uma figura sinistra e
outros nomes de PIDEs temíveis são lembrados como Barbieri Cardoso,
Tinoco ou outros. Os presos eram todos os que ousavam lutar contra a
injustiça, a pobreza, a guerra, a ditadura, sendo neste caso focado
o papel que o movimento estudantil teve no processo do derrube do
regime fascista, com uma referência concreta ao assassinato do
estudante Ribeiro dos Santos. Os informadores eram uma teia enorme e
difusa e os torcionários eram maioritariamente homens, mas também
houve mulheres, embora Leninha tenha sido a única mulher que
conseguiu ascender a chefe de brigada, exactamente pela sua ambição
de subir na hierarquia e pela ferocidade e brutalidade dos seus
métodos. No fim do livro, doente, debilitada e sozinha, mas
acompanhada pelo busto de Salazar na sala, ela confessa a uma colega
da PIDE que a visita que aquele tempo em que torturou em Caxias tinha
sido o período mais feliz da sua vida.
Agora que foi criada
uma cadeira opcional no 12º ano – História, Culturas e Democracia
– este “As Longas Noites de Caxias” poderia ser um excelente
livro para constar da bibliografia a ser usada. Ou com toda a
pertinência, fazer parte do Plano Nacional de Leitura.
10 de Outubro de
2019
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