“Caro Professor Germain – Cartas e Excertos”, Albert Camus, 1945 a 1959
Só recentemente, a 5 de Maio deste ano, no Dia Mundial da Língua Portuguesa, numa conferência promovida pela FENPROF e através da comunicação feita pelo professor António da Nóvoa, tive conhecimento das palavras de Albert Camus dedicadas ao seu professor da primária, quando em 1957 recebeu o Prémio Nobel da Literatura. Quando em Setembro último a Livros do Brasil editou este “Caro Professor Germain – cartas e excertos”, decidi pela compra do livro, curiosa por conhecer esta outra faceta do escritor argelino, já que dele apenas conhecia “O Estrangeiro” e “A Peste”.
Na primeira carta aqui publicada, Camus tinha 34 anos, vivia em Paris, era casado e pai de um casal de gémeos. O professor, então com 61 anos e de regresso a Argel, mostra o desejo de se encontrar com o querido aluno antes de regressar a casa. A fórmula usada na saudação das cartas denota uma grande ternura e respeito entre os dois: “Meu caro rapaz” e “Caro Professor Germain”. Transcrevo algumas declarações de gratidão e carinho nestas cartas muito pessoais, para alguém que foi órfão de guerra e encontrou no professor dos primeiros anos de escolaridade o pai que nunca conheceu –“… um dos dois ou três homens a quem devo praticamente tudo” (pág. 16), “O senhor foi o melhor dos mestres” (pág. 17), “filho espiritual” (pág. 18). A gratidão de Camus para com o mestre é, não apenas porque sempre o tratou como um filho, mas enquanto professor, pelo conhecimento, pela forma motivadora e inovadora como abria perspectivas aos seus alunos, levando-os a pensar, a reflectir e a fazer escolhas. E sobretudo a gratidão por ter acreditado e investido nas suas capacidades, invertendo a roda do destino que o conduziria, devido à sua condição de pobre, a um futuro sem futuro porque “a miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça.” (pág. 60). Daí que não se tenha esquecido de nomear o seu mestre no discurso na Suécia e tenha escrito na carta de 19 de Novembro de 1957 o seguinte: “mas quando soube da notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para si. Sem o senhor, sem essa mão afetuosa que estendeu à pequena criança pobre que eu era, sem o seu ensinamento e exemplo, nada disto me teria acontecido.” (pág. 34)
As cartas trocadas entre Albert Camus e o professor Louis Germain são ternas trocas de palavras e de sentimentos que unem aluno e mestre e persistiram muito para além do período da escola primária, depois de Camus ter seguido o liceu com outros mestres. São cartas simples, falam sobre a família, os problemas de saúde, as erradas escolhas orçamentais que dão pouco à escola pública e os receios pelos ataques à escola laica, os conselhos do mestre ao antigo aluno para ter cuidado com a vida e não fazer excessos. Na última carta, de Outubro de 1959, Camus mostra o seu desapontamento com o estado do mundo “O mundo atual é um peso difícil de suportar. São homens como o senhor que ajudam a tolerá-lo. E, além disso, é feito de cimento armado.” (pág. 48)
A segunda parte do livro é um excerto de “O Primeiro Homem” um livro autobiográfico, inacabado, ainda em rascunho. O capítulo “A Escola” aqui publicado traz a público esse período decisivo na vida e no futuro de Camus, através das personagens Jacques e Bernard. É recriado o ambiente dos bairros pobres de Argel a cheirar a “especiarias e pobreza” (pág. 53), os cães e os gatos à procura de restos nos caixotes do lixo, os comerciantes árabes que vendem no mercado, o porto, os cais de carvão, a escola na rua Aumerat, as reguadas e os castigos corporais ainda vistos como método, as ofensas e as lutas entre alunos, o empenhamento do professor Bernard (Germain) para que os seus alunos mais desfavorecidos, porque órfãos da guerra, pudessem aceder a bolsas para continuar os seus estudos. É neste excerto que surgem a mãe e avó de Jacques (Camus) com personalidades tão diversas – a primeira uma mulher doce, a segunda dura e decidida – mas ambas familiarizadas com a pobreza, o trabalho e a morte. Sem a intervenção do professor junto à avó “uma velha mula teimosa” (pág. 75) o pequeno Jacques não teria continuado a estudar e ficaria apenas com os estudos básicos.
Apesar da grande evolução da escola e da mudança nos métodos pedagógicos desde a altura em que o livro foi escrito, “Caro Monsieur Germain” é uma homenagem à escola pública, ao professorado e à relação aluno/professor. Para além de local de aprendizagem e de socialização, a escola pode e deve ser um espaço de felicidade e de sonho. A certa altura, no seu romance autobiográfico, Camus parece que se esquece que criou a personagem Bernard e troca o nome pelo nome do seu professor primário: “Nas aulas do senhor Germain, pela primeira vez, eles sentiam que tinham uma existência própria e que eram tidos em grande apreço: eram considerados dignos de descobrir o mundo.” (pág. 61)
Almerinda Bento
22 de Novembro de 2023