“Capitães da Areia”,
Jorge Amado, 1937
Este
é o livro de Jorge Amado mais vendido em todo o mundo. A sua
primeira edição foi apreendida e queimada em praça pública pelas
autoridades do Estado Novo, tendo levado Jorge Amado a exilar-se
posteriormente na Argentina e no Uruguai. Só em 1944, “Capitães
da Areia” voltou a ter uma 2ª edição, a que se seguiram muitas
outras quer no Brasil quer no estrangeiro.
“Capitães
da Areia” foi a obra escolhida pelo Círculo de Leitura da
UNISSEIXAL para o arranque deste ano de 2024. Certamente porque se
trata de pessoas que leram Jorge Amado quando eram jovens e que
quiseram recordar uma leitura talvez já apagada na memória, ou
relembrar uma leitura que dificilmente se esquece. Os Capitães da
Areia são crianças abandonadas, rapazes órfãos entre os 8 e os 16
anos, que vivem do furto, do truque, da manigância para sobreviver.
Sem casa, sem escola, sem progenitores nem familiares, o seu mundo é
a rua, já que a sociedade os abandonou. Logo no início do livro,
nas cartas à redacção do Jornal
da Tarde, estas
crianças e as suas actividades são pintadas com cores carregadas –
“aventuras
sinistras”, “actividade criminosa”, “tenebrosa carreira do
crime”, “jovens bandidos”, “terrível chefe dos Capitães da
Areia” – em
contraponto com a adjectivação usada para referir os alvos dos
jovens delinquentes – “linda
criança”, “distintas famílias”, “trabalho honesto”, “
honrado comerciante”, ilustre chefe da Polícia”. Para
“resolver” este problema da delinquência infantil lá estão os
juízes, os polícias e os psicólogos que, ora se elogiam ora entram
no jogo de passa culpas. No topo desta arquitectura, os reformatórios
que apenas são denunciados por uma costureira de seu nome Maria
Ricardina que, numa carta chama ao reformatório “inferno em vida”
(pág. 28) ou o padre José Pedro que confirma as palavras de Maria
Ricardina, dizendo que lá as crianças são tratadas como feras, o
que, aliás, será confirmado mais tarde no inesquecível capítulo
“Reformatório” (págs. 194 a 212).
“Capitães
da Areia” divide-se em três partes. A primeira em que nos são
apresentados alguns dos jovens como Sem-Pernas, João Grande, o
Professor, o Gato, Querido-de-Deus, Pirulito, Boa-Vida, Volta Seca,
Barandão ou Almiro, com destaque para o chefe Pedro Bala. Viviam num
velho trapiche abandonado, eram solidários na trapaça e no
infortúnio, as suas gargalhadas eram ruidosas e livres e “a
liberdade era o sentimento mais arraigado nos seus corações”
(pág. 82). Sem regras, os seus planos eram fruto da oportunidade, da
imaginação e da luta pela sobrevivência, mas eram leais e
respeitavam o seu chefe natural.
A
segunda parte do romance tem a ver com a chegada de Dora ao abrigo
dos Capitães da Areia. Habituados a ver as meninas como meros
objectos das suas pulsões sexuais e para quem o sexo significava
“derrubar a
negrinha no areal”, Dora,
órfã de pais mortos pela epidemia de varíola, é poupada porque
Pedro Bala assume o seu papel de chefe respeitado por todos. Dora,
integrada no grupo dos Capitães da Areia, irá desempenhar um papel
maternal naquele meio de crianças carentes que descobrem nela, pela
primeira vez a mãe e a irmã que nunca tinham conhecido, e também
uma brava companheira na luta pela sobrevivência. E o amor que ela
desperta é descrito por Jorge Amado de forma muito bela e poética,
inesquecível.
A
última parte – Vocações – é o desenlace naquelas vidas de
crianças, iguais no infortúnio, mas todas diferentes nos destinos
que vão seguir. É inevitável, elas deixarão de ser crianças, vão
crescer e irão seguir o seu caminho. Se uns seguem a via da
malandragem, há quem concretize o seu talento para desenhar, quem
siga o chamamento de Deus e venha a ser padre, quem se junte a
Lampião “seu
padrim”, quem
ouça a voz do pai que morreu a lutar. Pedro Bala, filho de estivador
morto com uma bala numa greve, tinha todas as características de
liderança e a compreensão de que a mudança na sua vida e na vida
dos que como ele só conheciam miséria, violência e exclusão
passava não pela bondade, nem pelo ódio, mas pela luta. E é o
caminho da luta organizada que Pedro vai seguir.
Queria,
para terminar, destacar aqui um dos momentos do livro que mais me
sensibilizou. O capítulo “As Luzes do Carrossel” quando aos
meninos é dada a oportunidade de experimentar um velho carrossel:
“Todos estavam
silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração
de meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado,
escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu sobre
todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo
manso (talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a
cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis
cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles
sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram
irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora
tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com
certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um
dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar
no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do
bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara.
E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da
cidade” (pág.
73)
21
de Janeiro de 2024
Almerinda
Bento