“O Luto de Elias Gro”, João Tordo, 2015
É o terceiro livro que leio de João Tordo e confesso que “Três Vidas”, o primeiro lido, foi o que mais de agradou. “O Luto de Elias Gro” é demasiado depressivo. O estado de desespero e aniquilamento a que o narrador se vai entregar desde que decide ir viver para uma ilha, num farol desactivado, vai-se adensando ao longo da narrativa. Quando esta já vai a caminhar para o final, a personagem de um médico que o visita numa cabana imunda pergunta-lhe se ele (narrador) acredita nele (médico). “Acredito no quê?, respondi, soerguendo-me no colchão. Que as pessoas são feitas de porcelana, respondeu ele. Tem tido algumas provas disso. Mas, diga-me, como é que tem tratado aqueles que o ouvem? Aqueles para quem escrevo esta história?, perguntei. Sim, esses. Tenho-os tratado com paciência e com carinho, garanti. Como espera que o tratem a si? É capaz de ser isso, concordei. Tem-se alongado nas descrições, passa demasiado tempo a ruminar, acrescentou ele. Tenha cuidado ou as pessoas aborrecem-se… O que lhe aconteceu, acontece-lhe a si e a mais ninguém. Mas todas as histórias são empatia, argumentei. Ou empatizamos com aquele que nos conta, ou com aqueles que nos são contados, ou, então, kaputt. Ao menos percebeu o que lhe quis dizer, prosseguiu o médico, que coçou a barba, correndo várias vezes os dedos pelo cabelo. Sobre a porcelana.(…) Está a falar de quem? Estou a falar de si, disse o médico. Você partiu-se em pedaços e agora não há meio de voltar atrás. Vai ter de aprender a viver feito em lascas. Estime as feridas. Cuide delas. Dê-lhes carinho quando precisarem de carinho e proteja-as quando assim tiver de ser. (…) Você não é robusto, é feito de vidro. Se o deixarem cair, desfaz-se. Reconheça, aceite e levante-se desse colchão bolorento.” (págs. 247 e 248) O mesmo médico que um dia, antes do exílio na ilha, lhe dissera “Dê tempo ao tempo e verá como, um dia, se sentirá mais apaziguado. A mim aconteceu-me”.(p.117)
Este é um livro de lutos. O de Elias, que se afunda no desgosto com a morte da jovem mulher; a do narrador com a morte da filha e abandono da mulher; a de Alma cuja filha não sobrevive ao naufrágio; a de Cecília cujo pai ausente não a consegue acompanhar no seu crescimento emocional. Cada um, à sua maneira, tenta sobreviver ou afundar-se no luto. Pela procura do transcendente, pela fé; isolando-se da agitação citadina, numa ilha, num farol sem qualquer conforto para além de um livro de contos de Borges, lutando contra os fantasmas com um par de luvas de boxe, ou com uma garrafa de whisky; sendo a figura maternal que vela por todos; passando da agressividade à ternura enquanto exibe a sua “erudição” nomeando as centenas de ossos de que é feito o corpo humano… Declinações de várias pessoas, mas em que o factor comum é um sofrimento imenso. Pessoas, feitas de porcelana. Fortes, quase a atingir o aniquilamento, a degradação física.
A dado passo, o narrador confessa, fruto da sua experiência de vida no farol “… que o homem transporta consigo o inferno, e que esse inferno não são os outros mas nós mesmos, quando entregues às nossas ideias mais acérrimas, às nossas intransigências mais cruéis, às nossas dúvidas mais corrosivas” (p.116). Voltando à frase inicial do livro, quando, muito doente e próximo da morte, Elias Gro fala com o narrador e lhe diz que “O paraíso deve consistir no cessar da dor” (p.15), encontro na epígrafe de “O Luto de Elias Gro” – citações de Jorge Luis Borges e Lars Drosler – o foco de toda a obra: “Que o céu exista, mesmo que o nosso lugar seja o inferno” (Jorge Luis Borges) e “Eu era passageiro e responsável por um naufrágio, passara uma vida inteira a cavar um buraco no casco e, agora, procurava o mastaréu para não morrer afogado.” (Lars Drosler)
30 de Agosto de 2022
Almerinda Bento