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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A Convidada Escolhe: "O Luto de Elias Gro"

O Luto de Elias Gro”, João Tordo, 2015

É o terceiro livro que leio de João Tordo e confesso que “Três Vidas”, o primeiro lido, foi o que mais de agradou. “O Luto de Elias Gro” é demasiado depressivo. O estado de desespero e aniquilamento a que o narrador se vai entregar desde que decide ir viver para uma ilha, num farol desactivado, vai-se adensando ao longo da narrativa. Quando esta já vai a caminhar para o final, a personagem de um médico que o visita numa cabana imunda pergunta-lhe se ele (narrador) acredita nele (médico). “Acredito no quê?, respondi, soerguendo-me no colchão. Que as pessoas são feitas de porcelana, respondeu ele. Tem tido algumas provas disso. Mas, diga-me, como é que tem tratado aqueles que o ouvem? Aqueles para quem escrevo esta história?, perguntei. Sim, esses. Tenho-os tratado com paciência e com carinho, garanti. Como espera que o tratem a si? É capaz de ser isso, concordei. Tem-se alongado nas descrições, passa demasiado tempo a ruminar, acrescentou ele. Tenha cuidado ou as pessoas aborrecem-se… O que lhe aconteceu, acontece-lhe a si e a mais ninguém. Mas todas as histórias são empatia, argumentei. Ou empatizamos com aquele que nos conta, ou com aqueles que nos são contados, ou, então, kaputt. Ao menos percebeu o que lhe quis dizer, prosseguiu o médico, que coçou a barba, correndo várias vezes os dedos pelo cabelo. Sobre a porcelana.(…) Está a falar de quem? Estou a falar de si, disse o médico. Você partiu-se em pedaços e agora não há meio de voltar atrás. Vai ter de aprender a viver feito em lascas. Estime as feridas. Cuide delas. Dê-lhes carinho quando precisarem de carinho e proteja-as quando assim tiver de ser. (…) Você não é robusto, é feito de vidro. Se o deixarem cair, desfaz-se. Reconheça, aceite e levante-se desse colchão bolorento.” (págs. 247 e 248) O mesmo médico que um dia, antes do exílio na ilha, lhe dissera “Dê tempo ao tempo e verá como, um dia, se sentirá mais apaziguado. A mim aconteceu-me”.(p.117)

Este é um livro de lutos. O de Elias, que se afunda no desgosto com a morte da jovem mulher; a do narrador com a morte da filha e abandono da mulher; a de Alma cuja filha não sobrevive ao naufrágio; a de Cecília cujo pai ausente não a consegue acompanhar no seu crescimento emocional. Cada um, à sua maneira, tenta sobreviver ou afundar-se no luto. Pela procura do transcendente, pela fé; isolando-se da agitação citadina, numa ilha, num farol sem qualquer conforto para além de um livro de contos de Borges, lutando contra os fantasmas com um par de luvas de boxe, ou com uma garrafa de whisky; sendo a figura maternal que vela por todos; passando da agressividade à ternura enquanto exibe a sua “erudição” nomeando as centenas de ossos de que é feito o corpo humano… Declinações de várias pessoas, mas em que o factor comum é um sofrimento imenso. Pessoas, feitas de porcelana. Fortes, quase a atingir o aniquilamento, a degradação física.

A dado passo, o narrador confessa, fruto da sua experiência de vida no farol “… que o homem transporta consigo o inferno, e que esse inferno não são os outros mas nós mesmos, quando entregues às nossas ideias mais acérrimas, às nossas intransigências mais cruéis, às nossas dúvidas mais corrosivas” (p.116). Voltando à frase inicial do livro, quando, muito doente e próximo da morte, Elias Gro fala com o narrador e lhe diz que “O paraíso deve consistir no cessar da dor” (p.15), encontro na epígrafe de “O Luto de Elias Gro” – citações de Jorge Luis Borges e Lars Drosler – o foco de toda a obra: “Que o céu exista, mesmo que o nosso lugar seja o inferno” (Jorge Luis Borges) e “Eu era passageiro e responsável por um naufrágio, passara uma vida inteira a cavar um buraco no casco e, agora, procurava o mastaréu para não morrer afogado.” (Lars Drosler)

 

30 de Agosto de 2022

Almerinda Bento


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

"Frida e as Cores da Vida" de Caroline Bernard

Não faço ideia se Frida Kahlo viveu tal qual é retratada aqui nesta biografia romanceada mas senti que ela poderia tê-lo feito mesmo assim. Conhecia traços algo leves da sua vida e gostei muito de senti-la mais perto ao ler estas páginas.

Gostei sobretudo de imaginar Frida a pintar as suas dores retratando, ao fazê-lo, os seus problemas de saúde graves. Gostei também de perceber como a pintura foi fazendo cada vez mais parte da sua vida até não se ver a fazer nada mais do que isso. Interessante foi também, ficar a par do seu amor imenso, louco e quase obsessivo por Diego Rivera, também pintor. A relação por eles partilhada para além de intensa era desconcertante. 

Várias fases da vida de Frida Kahlo são retratadas nos seus quadros com muito brilho, misturados com muita dor e sofrimento e estas páginas expressam bem o quanto ela transpôs a sua vida para as telas que pintava. É muito interessante notar essa ligação e, para quem conheça bem a sua obra, conseguir visualizar os quadros com base nas descrições deste livro é um exercício de puro prazer.

As suas limitações e dores, as suas vestimentas e seus adornos coloridos, Diego Rivera, os (as) seus (suas) amantes e o México, tudo brota das telas desta pintora e tornam diferentes os seus quadros.

Uma leitura romanceada que vale bem a pena para quem queira conhecer um pouco da vida de Frida Kahlo!

Terminado a 20 de Agosto de 2022

Estrelas: 5*

Sinopse

Uma declaração de amor à arte, à feminilidade, à liberdade e à coragem de lutar por ela.

México, 1925: Frida quer ser médica, mas um terrível acidente põe fim ao seu sonho. Anos mais tarde, apaixona-se pelo sedutor e grande pintor Diego Rivera e, ao lado dele, mergulha de vez no ambicionado mundo das artes. Sempre assombrada por problemas de saúde e percebendo que a sua felicidade pode ter os dias contados, Frida entrega-se à vida com paixão e descobre como trilhar o seu próprio caminho. Com roupas de cores vibrantes e postura de divindade asteca, a artista cria uma aura muito particular e torna-se uma das pintoras mais veneradas dos nossos tempos.

Frida e as cores da vida é um romance contundente sobre feminilidade, história, arte e liberdade a partir da trajetória de Frida Kahlo.

Um retrato íntimo e pessoal da mulher que se tornou uma lenda.

Cris


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

"Almoço de Domingo" de José Luís Peixoto

As expectativas eram muito elevadas quando comecei esta leitura. O autor e quem ele retrata nesta obra, acrescentando as várias opiniões positivas que tinha como referência, faziam prever uma leitura espectacular. Embora tivesse gostado, ficou um pouco aquém do esperado. 

Gostei sobretudo das partes em que Peixoto coloca o discurso directo na voz de Rui Nabeiro, para quem ainda não saiba, o retratado nesta obra é dono dos tão famosos cafés Delta. Aí a intensidade da narrativa faz esquecer o sítio onde estamos e mergulhamos mais facilmente nas histórias interessantes e sui generis deste senhor com letra maiúscula. 

Paralelamente com a história da sua vida vai-se descortinando a História de um Portugal com uma população maioritariamente pobre que é prenúncio de vidas difíceis, muitas vezes vividas fora do país, onde se tenta sobreviver com mais dignidade. Viver, quem sabe. 

Várias gerações, vários estados da nação desde 1931 a 2021, desta e da vizinha Espanha, são descritos aqui com mestria. O esforço, a luta contra a pobreza, a determinação de um homem que queria viver melhor e ajudar a terra onde nasceu, fazem deste livro uma leitura muito aprazível. 

Terminado a 12 de Agosto de 2022

Estrelas: 4*

Sinopse

Um romance, uma biografia, uma leitura de Portugal e das várias gerações portuguesas entre 1931 e 2021. Tudo olhado a partir de uma geografia e de uma família.
Com este novo romance de José Luís Peixoto acompanhamos, entre 1931 e 2021, a biografia de um homem famoso que o leitor há de identificar — em paralelo com história do país durante esses anos. No Alentejo da raia, o contrabando é a resistência perante a pobreza, tal como é a metáfora das múltiplas e imprecisas fronteiras que rodeiam a existência e a literatura. Através dessa entrada, chega-se muito longe, sem nunca esquecer as origens. Num percurso de várias gerações, tocado pela Guerra Civil de Espanha, pelo 25 de abril, por figuras como Marcelo Caetano ou Mário Soares e Felipe González, este é também um romance sobre a idade, sobre a vida contra a morte, sobre o amor profundo e ancestral de uma família reunida, em torno do patriarca, no seu almoço de domingo. 

Cris

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

"Consumidos pelo Fogo" de Jaume Cabré

Inteligente, subtil em muitos pormenores, este livro é uma optima porta aberta para ler Jaume Cabré.

Estão na estante os livros anteriores deste autor e aguardam vez. Confesso que foi o seu inferior número de páginas que me fez pegar nele comparativamente ao volume dos outros livros.

Todo o livro é uma descoberta e uma procura. O mistério da trama que se vai adensando, as pequenas referências a personagens de outros livros, as pequenas referências históricas, tudo serve para nos questionarmos para onde nos vai levar esta trama.

Há alturas em que nada parece fazer sentido mas, um pouco mais à frente, lá está uma explicação inteligentíssima dos acontecimentos.

É preciso estar atento a este pequeno livro que de pequeno nada tem. Atento na leitura, quero dizer, para que os pormenores sejam captados. 

Não faço ideia de quando pegarei nos livros anteriores mas senti, com esta obra, que estou de facto a perder algo por ainda estarem a dormitar na estante.

Sei de quem os leu e gostou muito, mas nisto da leitura as opiniões são sempre pessoais e podem divergir.

Foi um bom aperitivo para me lançar nas obras de Jaume Cabré. Espero conseguir em breve.

Terminado em 10 de Agosto de 2022

Estrelas: 6*

Sinopse

Ismael, ou o homem a quem na maior parte do tempo, não por acaso, devemos chamar Ismael, não teve uma infância fácil. Ainda assim, conseguiu superar obstáculos, estudar, tornar‑se professor de línguas e literatura, e instalar‑se, mesmo que sem grande estrondo, numa existência rotineira e pacata.

Isto até ao dia em que lhe cai um botão da camisa e reencontra uma antiga vizinha, aproximando‑se da felicidade. Isto até ao dia em que vai comprar pão e, pelo caminho, aceita boleia de um antigo aluno. Isto até ao dia em que acorda confuso e atordoado num hospital, recordando apenas com clareza os livros que leu. Depois desse dia, nada voltará a ser igual, com a destreza narrativa de Jaume Cabré a conduzir‑nos irresistivelmente por um labirinto de memórias difusas, dilemas, personagens complexas, amores impossíveis, destinos implacáveis, falenas e javalis.

Cris


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

"O Caminho da Cidade" de Natalia Ginzburg

Tenho ouvido falar tão bem desta escritora italiana, de Palermo, que a queria "provar" rapidamente. Nada melhor do que este livrinho pequeno! 

A sua escrita é de tal forma corrida que nos deixa quase sem fôlego. Por isso li-o em pouco mais de uma hora. A protagonista e narradora é uma rapariga ingénua, cuja ingenuidade é de tal forma extremada que coloca no leitor uma forte vontade de abaná-la e "falar" com ela! 

Foi essa intenção que me manteve presa porque os acontecimentos são narrados num discurso directo intenso e rápido e não auguram nada de bom para essa moça cujo nome não me lembro e tão pouco importa, já que numa passagem rápida pelas páginas desta obra, me apercebi que, se foi mencionado, não há-de ter sido muitas vezes porque não o encontrei...

Então, chamemos-lhe N (narradora). N vive com os quatro irmãos e um primo. Os mais velhos desejam desesperadamente sair de casa. Ela própria também. A mãe é motivo de conflito e quase ódio. Do pai há ausência mas também amor.

N sempre que pode foge para a cidade, para a casa da irmã ou para deambular nas ruas. É uma menina amarga que a vida vai atropelar porque as escolhas que faz não contribuem para a sua felicidade. O primo e o namorado (mais tarde marido) serão sempre, para ela, motivo de angústia porque mais do que as decisões que poderia tomar e nunca o faz, ela deixa que a falta de resoluções se apoderem e comandem a sua vida. Ao não decidir, ela decide.

Um romance pequeno, que prende, ensina e seduz. Gostei muito.

Terminado em 7 de Agosto de 2022

Estrelas: 5*

Cris

terça-feira, 23 de agosto de 2022

"O Apicultor de Alepo" de Christy Lefteri

Esta obra foi a escolha de um clube de leitura a que pertenço, que decidi fazer minha também, mas onde acabei por não conseguir estar presente aquando da discussão do livro. Tive pena! Gostava de ter ouvido as diversas opiniões porque me pareceu que não seria uma leitura consensual e, quando assim é, gosto muito de ouvir as diferentes vozes que se levantam porque, muitas vezes, altero, completo ou mantenho a minha opinião. Enriqueço-a em todo o caso...

Entrei muito bem nesta leitura, porque embora se faça lentamente, com avanços e recuos no tempo, a temática escolhida é actual, impactante e gosto muito de "sentir", através das palavras escritas, o que possivelmente várias pessoas poderão estar a viver na actualidade. A Guerra (qualquer uma) nunca é tema fácil de retratar e muito menos de experienciar na pele.

O título esconde a temática e nada faz supor que nestas páginas está muita dor, muita tentativa de ultrapassar esse sofrimento e muitas das formas que a mente possui para lidar com perdas que não quer aceitar. Estão juntos fisicamente mas tão longe um do outro! A dor, a perda afastou-os e cada um mergulha de forma diferente no sofrimento.

Nuri e Afra, são um casal sírio e já não têm o seu filho Sami com eles, a não ser nos seus constantes pensamentos. Os seus corpos e as suas mentes não o esquecem e demonstram-no de uma forma que o leitor só se aperceberá já com muitas páginas lidas. 

Nuri, num discurso directo que mexe connosco, salta do presente para o passado, e conta-nos como foi a sua terrivel vivência da Guerra Civil da Siria (2011), seu país, da sua fuga com a esposa cega, por campos de refugiados na Turquia, Grécia e finalmente o Reino Unido onde se queria juntar com o seu primo Mohammed, quase seu irmão, companheiro de vida e de trabalho. Eram ambos apicultores e trabalhavam juntos antes de rebentarem os conflitos no seu país de origem.

Com o saltitar no tempo do discurso de Nuri, o leitor apercebe-se, aos poucos, que o seu corpo e o da sua esposa somatizaram as várias perdas (das quais Sami foi a maior), de uma forma que não julgamos ser possível. Sami foi uma vítima da guerra e os corpos/mentes de seus pais não o conseguem esquecer. A dor explode pelos seus poros e o leitor sente e vive isso.

Duro e actual. Gostei muito.

Terminado em 6 de Agosto de 2022

Estrelas: 5*

Sinopse

Nuri é apicultor; a sua mulher, Afra, uma artista. Vivem uma vida simples, com uma bela família e amigos, na bonita cidade Síria de Alepo. Até que o impensável acontece. Quando tudo aquilo que lhes importa é destruído pela guerra, são forçados a fugir.

Mas aquilo que a Afra viu é tão horrível que ela fica cega, e por isso embarcam numa perigosa viagem pela Turquia e Grécia, até ao futuro incerto no Reino Unido. Na travessia, o Nuri agarra-se à esperança de reencontrar o seu primo Mustafa, e sócio nos negócios, que criou apiários na Inglaterra e que ensina apicultura aos refugiados em Yorkshire. Nuri e Afra viajam por um mundo despedaçado e têm de confrontar a indizível dor da sua perda, enquanto enfrentam perigos que assustariam a mais corajosa das almas. 

Acima de tudo — e talvez esta seja a coisa mais difícil que eles enfrentam —, têm de se encontrar um ao outro. Comovente, poderoso, escrito com enorme beleza e compaixão, O Apicultor de Alepo é um testemunho do triunfo do espírito humano. Contado de uma forma clara, é o tipo de livro que nos recorda o poder das boas histórias.

Cris

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

A Convidada Escolhe: "Integrado Marginal"

Integrado Marginal, Bruno Vieira Amaral, 2021

Este ano tem sido um ano de grandes leituras e este livro de Bruno Vieira Amaral é de facto um livro extraordinário. Uma obra completíssima, séria, resultado de um enorme trabalho de investigação sobre a vida de José Cardoso Pires, um grande escritor, considerado por Óscar Lopes “o maior prosador vivo da língua portuguesa” (pág. 463). Para além da extensa bibliografia, do recurso a espólios de diversos autores e fontes diversificadas, o autor de “Integrado Marginal” apoia as informações que nos vai dando no livro com base em cerca de quinhentas notas, para além de um extenso índice onomástico, que é um valioso auxiliar para quem quiser aprofundar a relação de José Cardoso Pires com tantas e tantas personalidades da vida cultural e política que com ele conviveram e que fazem parte integrante da nossa história. “Integrado Marginal” é uma biografia competente, rigorosa, apaixonante de José Cardoso Pires, editada pela Contraponto na série Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea. No capítulo dos Agradecimentos com que Bruno Vieira Amaral termina o seu livro, ele escreve: “Espero que esta biografia honre a memória e a obra de José Cardoso Pires e que traga novos leitores para os seus livros.” Não tenho quaisquer dúvidas que o conseguiu.

Tendo como pano de fundo o Portugal que vai dos anos 20 do século passado ao ano da Expo 98, Bruno Vieira Amaral foi certeiro no título escolhido para definir José Cardoso Pires – Integrado Marginal - definição que Cardoso Pires usou para si próprio na grande entrevista que deu a Artur Portela em 1991 (pág. 514). Portugal, mas sobretudo Lisboa, a cidade que ele escolheu como lugar dos afectos, dos amigos, dos bares, das conversas onde o cigarro e o uísque eram presença constante, a Costa da Caparica onde se refugiava para escrever, sem coisas que o desviassem da concentração e do rigor na escolha das palavras e na organização das ideias. Portugal do salazarismo, da resistência à censura da PIDE e da Igreja e de todas as polícias por quem Cardoso Pires tinha um ódio de estimação. Portugal e a geração de 45 que não conseguiu agarrar a oportunidade do fim da guerra; a crise profunda dum país orgulhosamente só que se afundou na guerra colonial e que ainda acreditou que o marcelismo podia trazer ventos de democracia, que só sopraram a sério com o 25 de Abril. As contradições dum país marcado pela ruralidade, pelo analfabetismo, pelo conservadorismo e pela ditadura, com uma burguesia convertida à democracia, desejosa de agarrar os fundos europeus, para que Portugal deixasse de ser “atrasado” e periférico.

E de Cardoso Pires, uma personagem complexa e fugidia, que aspectos poderei realçar a partir desta biografia de Bruno Vieira Amaral? A sede de liberdade, de independência, a intransigência com o falso e o postiço, um materialista sem papas na língua nem elegâncias, em que o pudor dificultava a expressão dos afectos e que, por não ser de meias-tintas, poderia ser simplificado numa qualquer etiqueta ou caricatura redutora e distorcida. Com um percurso escolar que não foi brilhante, desde sempre mostrou propensão para a escrita. Na verdade, o que ele realmente gostava de fazer, mas que exigia tempo, era escrever, mas tinha de se desdobrar em várias actividades que lhe garantissem o sustento. Enquanto escritor, lutou num país com um analfabetismo gigante, sem hábitos de leitura e num regime que tudo vigiava e cortava. O meio literário, com as suas diferenças e divisões naturais, para quem se queria afirmar era também um campo cheio de obstáculos. Lento na escrita, a relação dos seus editores com o autor foi de respeito, amizade e compreensão, com a certeza de que o resultado seria depurado e rigoroso. Tal como o percurso árduo de ascensão e notoriedade na obra de Cardoso Pires, assim se passou com a literatura e os autores portugueses que precisaram do tempo e das políticas públicas de apoio por parte dum país endemicamente fechado e que se abria ao mundo dando a conhecer as suas potencialidades e riqueza cultural e literária. Esta biografia, ao nomear as dezenas de grandes homens e mulheres das letras e da cultura portuguesa, presta-lhes também a eles um tributo e uma homenagem, a saber, Mário Dionísio, Alves Redol, Luiz Pacheco, Maria Lamas, Miguel Torga, Sttau Monteiro, Júlio Pomar, João Abel Manta, Maria Velho da Costa, Mário Cesariny, Alexandre O’Neil, Salgado Zenha, Francisco Sousa Tavares, Maria Lúcia Lepecki, Fernando Gusmão, Fernando Namora, Augusto Abelaira, Alçada Baptista, Assis Pacheco, Lídia Jorge, António Lobo Antunes, José Saramago, Antonio Tabucchi, Clara Ferreira Alves, Inês Pedrosa, Nelson de Matos, João Pedro Vasconcelos…

Integrado marginal, José Cardoso Pires não era homem de casa. O “Zé”, pai de Ana e de Rita, nunca foi de grandes paciências nem de meiguices com as filhas, que deixou anos mais tarde para a neta Joana e para o Rui. Era então um “avô babado” a fazer o inimaginável com os netos. A mulher “Edite, o verdadeiro pilar da vida dele” (pág. 439) deve ter sido duma paciência que só um amor gigante consegue compreender. Esse amor ao marido e ao pai que está implícito ao longo da biografia de Bruno Vieira Amaral expressa-o o autor nos Agradecimentos finais que começam logo desta maneira: “Este livro, na sua forma final, não teria sido possível sem o contributo e a ajuda da família direta de José Cardoso Pires: Edite Pereira, Ana Cardoso Pires e Rita Cardoso Pires. O trabalho que têm feito para preservar a memória e manter viva a obra de Cardoso Pires é notável. O auxílio que me prestaram não teve outra intenção que não a da preservação do legado literário do escritor” (pág. 563).

Tudo o que escrevi é pouco, muito pouco, para o manancial de informação desta biografia. Quero realçar todas as referências detalhadas sobre toda a obra de Cardoso Pires até ao seu derradeiro “Lisboa – Diário de Bordo”(1998) e que deixam uma imensa vontade de agarrar e ler todos os livros deste escritor extraordinário da nossa língua.

Mouriscas, 13 de Agosto de 2022

Almerinda Bento

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Resultado do Passatempo Mensal "Toca a Comentar"

Anunciamos o vencedor deste passatempo referente ao mês de Julho.

Este é o link para o post onde se encontra anunciado o passatempo.

Assim, através do Random.Org, de todos os comentários efectuados nesse mês, foi seleccionado uma vencedora! Foi ela:

Carla Pereira Sousa

Parabéns! Terás que comentar este post e enviar um email para otempoentreosmeuslivros@gmail.com até ao próximo dia 20, com os teus dados e escolher um de entre estes dois livros: 

 
Cris
 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

"As Bruxas de Pendle" de Stacey Halls

Fui a medo para este livro! A capa atraiu-me porque a acho lindíssima (e mais tarde verifiquei que era representativa do conteúdo) mas o título fez-me temer. Bruxas? Hum... Sem ler a sinopse, como gosto de fazer, mergulhei nesta leitura. Não podia estar mais enganada quanto às minhas suspeitas. 

A viagem que fiz foi maravilhosa. Teletransportei-me no tempo, para as regiões quase perdidas de Inglaterra no século XVII, onde as mulheres ainda eram julgadas e condenadas à morte por bruxaria. Esta caça às bruxas (ou caça às mulheres por tudo quanto elas representavam?) aconteceu realmente e foi marcada por momentos de muita tensão, medo e mortes. Ficaram conhecidas como as Bruxas de Pendle e a autora soube, com mestria, retratar o ambiente, reinventar situações e criar uma história ficcionada a partir de um acontecimento verídico.

Fiquei presa de imediato ao ambiente, aos lugares e às personagens principais, Fleetwood e Alice. A sua força e determinação ao lutar contra os valores instituídos, a pitada de mistério que impulsiona a leitura constante, tudo fez para que esta obra fosse lida em pouco tempo.

A cereja em cima do bolo foi perceber no final no que de verídico esta trama se baseou!

Terminado em 29 de Julho de 2022

Estrelas: 5*

Sinopse

Numa época de suspeita e perseguição, o medo do desconhecido pode ser o pior inimigo…

Fleetwood está grávida pela quarta vez. Nenhuma das gestações anteriores teve sucesso, e o seu marido Richard está ansioso por um herdeiro. Quando a jovem encontra uma carta escondida do seu médico, descobre que desta vez ela própria poderá não sobreviver.

Quando conhece Alice Gray, esta promete ajudar Fleetwood a dar à luz um bebé saudável. Contudo, Alice é acusada de bruxaria, e Fleetwood terá de arriscar tudo para provar a inocência da amiga. O julgamento aproxima-se, tal como o momento de a jovem dar à luz, e todas as vidas estão em risco.

Rico em detalhes, extraordinariamente bem construído e baseado nos julgamentos de Pendle Hill, este romance explora os direitos das mulheres no século xvii e levanta a questão: terá sido uma caça às bruxas ou uma caça às mulheres?

Cris


segunda-feira, 1 de agosto de 2022

" Diário de Um Sem Abrigo" de Jorge Costa

Há livros que têm um mundo dentro. E há tanto a dizer sobre eles. E tanto a mudar, e tanto a fazer nas pessoas, em nós.

Este livro é um relato de quem viveu na rua durante quase um ano. Alguém que se viu, muito rapidamente sem emprego, sem ajudas, sem dinheiro para pagar o quarto onde vivia. Sem amigos. 

Um relato impressionante de como é ter pouco no bolso, sem sítio para guardar os pertences que ainda possui, sem saber o que o dia lhe vai trazer. E a noite. E o medo. E a fome. Um relato de alguém que soube representar, escrevendo, as dificuldades de quem vive na rua. Porque a vida lhe foi madrasta,  porque a empatia demorou a chegar. 

Deixou-me a pensar. Quantas vezes passei por alguém e não quis ver?

Jorge Costa já não se encontra entre nós. A doença levou-o quando tinha conseguido sair da rua. Deixou-nos o seu testemunho. É para ler!

Terminado em 26 de Julho de 2022

Estrelas: 6*

Sinopse

«Jorge Costa viveu o ser sem-abrigo com total e contundente independência crítica. Mesmo quando conheceu a experiência de uma casa, estilo quase “Housing First”, manteve sempre a ligação à rua, a vivência da rua, a memória da rua. Daí a força do presente testemunho. Distanciado, na análise lúcida do seu percurso, no meio de tantos outros, tão diversos. Capaz de avaliar as fragilidades, mas também a coragem cívica de lutar, até ao fim, por uma causa que sabia coletiva.» Presidente da Républica, Marcelo Rebelo de Sousa in Prefácio «Ao relatar a sua história, ele relatou a de tantos a quem viramos a cara quando nos cruzamos com eles. Talvez agora que o Jorge Costa já cá não está, ele tenha passado a existir não numa estrelinha a brilhar no céu – não há assim tanta utilidade para estrelinhas, pois não? - mas no olhar de todos os homens e todas as mulheres que vagueiam pelas ruas, ao frio, ao calor, à chuva, ao vento, sujeitos a violência, a fome, à crueldade de existir.» Nuno Markl

Cris