O Poço e a Estrada - Biografia de
Agustina Bessa-Luís,
Isabel
Rio Novo,
(2016-2018)
Quem
me conhece sabe como gosto de biografias e de romances biográficos.
Esta é a terceira biografia que leio publicada pela Contraponto,
depois de Integrado Marginal de Bruno Vieira Amaral que
biografou José Cardoso Pires e de A Desobediente de Patrícia
Reis, sobre a vida e obra de Maria Teresa Horta. Todas elas valiosos
e completos trabalhos de divulgação da obra dos biografados. Quando
se acaba de ler a biografia de Agustina Bessa-Luís fica-se com um
enorme respeito e gratidão pela biógrafa que, sem apoio da família
da biografada, teve a coragem de se aventurar num trabalho minucioso
e muito profundo sobre a vida e obra da escritora. Valendo-se do
conhecimento da extensíssima obra da autora, de entrevistas e
testemunhos de amigos e conhecidos, de pesquisas em arquivos e
bibliotecas, só uma grande paixão pela obra permitiu um trabalho
com o valor que é dado apreciar na leitura de O Poço e a
Estrada. Eu, que pouquíssimo li de Agustina (o preconceito de me
aventurar na leitura de uma autora com fama de difícil…) fico com
vontade de deixar a preguiça e ir de seguida ler uma edição (5ª)
d’ A Sibila da Guimarães Editores, que tenho cá em
casa e que herdei da minha irmã Isabel.
Da
leitura desta biografia, fica-se com a ideia da personagem invulgar,
complexa, contraditória e nada consensual que foi Agustina
Bessa-Luís. Impossível de catalogar, a sua paixão pela escrita foi
a marca fundamental da sua vida. Criança observadora, silenciosa e
precoce, gostava de estar sozinha e o gosto pela leitura e pela
escrita revelou-se desde muito cedo e sempre aspirou a ser
excepcional na escrita. Como Isabel Rio Novo refere, “…todos
os romances de Agustina são biográficos…” (p. 16). A sua
obra é extensa e a filha continua a trabalhar na organização de
muito material escrito pela mãe que nunca foi publicado, como cartas
e manuscritos de intervenções, entre outros.
Isabel
Rio Novo traça nesta sua biografia vários aspectos que gostaria de
referir e que nos permitem ter uma visão muito abrangente, não só
da vida como da obra de Agustina. Sendo uma mulher que nasceu no
início da década de 20 do século passado, nunca foi muito ligada
ao meio intelectual da sua geração, nem apreciava eventos
literários nem livrarias. No entanto, estabeleceu amizades
duradouras e íntimas com autores como Ferreira de Castro, José
Régio, Ilse Losa ou Eugénio de Andrade ou com Sophia de Mello
Breyner ou o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. Nunca
se furtou a grandes disputas públicas e desenvolveu ódios de
estimação que ficaram célebres como com Jaime Brasil, o sobrinho
de Teixeira de Pascoaes ou Natália Correia. “Cúmplices, mas
sempre em choque” (p. 333), assim é referido o seu
relacionamento com Manoel de Oliveira que, sendo uma relação de
amor-ódio, correspondia de facto a uma admiração recíproca entre
ambos.
Oriunda
de uma família abastada e conservadora, há na biografia de Agustina
momentos verdadeiramente inusitados, como por exemplo, um namoro e
casamento nada convencionais, depois de ela própria ter posto n’ O
Primeiro de Janeiro aquele que foi “ao longo de três anos…
o único anúncio de cariz pessoal colocado por uma rapariga
solteira.” (p. 132). Dessa ousadia, à revelia da família,
resultou um casamento de grande entendimento e cumplicidade que durou
72 anos. Mesmo como esposa, mãe e avó, Agustina nunca seguiu os
papéis que tradicionalmente eram impostos às mulheres, chegando
mesmo a aconselhar as jovens escritoras a não se consumirem no papel
de mães como fez em conversa com Inês Pedrosa “Agora vão
começar a falar-lhe no casalinho, não vá nisso. É uma prisão que
fazem às mulheres. Tomar conta de crianças dá muito trabalho, e
depois não tem tempo para escrever. Olhe que no meu tempo era muito
mais difícil ter só uma filha, e foi o que eu fiz.” (p. 159).
Embora sendo uma mulher com um percurso cívico de direita, dizendo
que as suas simpatias se situavam no centro-esquerda, a verdade é
que também neste campo os seus posicionamentos são cheios de
ambiguidades. “Em certo aspecto, sou o que se chama
conservadora. No que se refere a um enraizamento que constitui o
melhor da minha cultura” (p. 290). Desiludida e frustrada com o
estado do país antes do 25 de Abril, o rumo da revolução gerou
nela desconfiança, mas no final da sua presença pública na vida do
país, apoiou sem hesitação a campanha do SIM pela despenalização
do aborto a pedido da mulher, no referendo de 2007. Este percurso não
pode deixar de ser polémico, algo que era indiferente para Agustina,
insubmissa, independente e imprevisível.
A
fama de Agustina surgiu e consolidou-se com a publicação de “A
Sibila” em 1953. Agustina tinha 32 anos. A partir daí, os prémios
e as homenagens sucedem-se e isso vai dar um impulso e um entusiasmo
cada vez maior a Agustina para escrever. Isabel Rio Novo passa em
revista toda a obra da escritora que lhe vai granjear ao longo da sua
longa vida, homenagens, condecorações, prémios, nomeações para
cargos de direcção e relevância em várias instituições,
inclusivamente o seu nome foi ventilado em 1981 para o Prémio Nobel
da Literatura. Havia por parte da escritora “um aparente
desinteresse pela sua reputação literária” (p. 354), de
acordo com testemunho de Lídia Jorge. Realço aqui que Agustina
Bessa-Luís foi a primeira mulher a ser admitida na Academia de
Ciências de Lisboa em 1989, uma instituição que durante 210 anos
apenas tinha acolhido homens como seus membros.
Falar
de Agustina é também falar das casas de família e as casas onde
viveu com o marido desde a infância até à morte: Amarante, Régua,
Póvoa, Coimbra, Esposende e Porto, com especial destaque para o
número 100 da Rua do Gólgota, “a casa ideal” (p. 219);
das viagens que fez com o marido, com Sophia de Mello Breyner e com o
casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. E, finalmente, da
profunda ligação e cumplicidade que Agustina teve com o marido
Alberto Luís, que a apoiava na transcrição dos manuscritos que ela
lhe lia e que continuou a representá-la em actos públicos em que
era homenageada e a que já não podia comparecer por estar doente.
Esta
biografia da autoria de Isabel Rio Novo é um convite à leitura da
obra de Agustina. Todos os capítulos são encimados com epígrafes
que são frases dos diferentes livros de Agustina, como que a abrir a
porta aos leitores para ousarem lê-la. Inês Petrosa, citada na pág.
406 diz “Abre-se ao acaso um livro de Agustina, e sempre
encontramos uma frase que nos inquieta ou nos consola.”. Vamos
então à epígrafe inicial do livro onde Isabel Rio Novo foi buscar
o título da biografia de Agustina: “Viviam na aldeia e tinham
no quintal um poço construído de cascalho e tão profundo que,
diziam os velhos, se ouviam os galos cantar do outro lado; um dia,
Marcelo, que tinha seis anos, inclinou-se para espreitar a mancha de
água imóvel e viu uma estrada, branca, longa […]. Uma estrada no
fundo do poço – ele jurava que a tinha visto. Aonde podia levar,
como aventurar-se para chegar-lhe, para percorrê-la, medi-la,
explorá-la?”
Agustina
Bessa-Luís, O Manto
20
de Janeiro de 2025
Almerinda
Bento