“A Desobediente – Biografia de
Maria Teresa Horta”, Patrícia Reis, 2024
Antes de tudo,
Patrícia Reis adverte o/a leitor/a que “esta
não é uma biografia imparcial”
(p. 17) nem é “uma
radiografia” (p. 17) e que
lhe “foi muito difícil
terminar esta biografia” (p.
13). Ligam biografada e biógrafa o facto de serem amigas,
jornalistas e a tristeza e a solidão de Maria Teresa Horta, desde a
morte do marido, não ter deixado de, até certo ponto, contaminar a
feitura deste livro.
Cada uma das cinco partes de que é feito
“A Desobediente” tem, a encimar os diferentes capítulos que as
constituem, os nomes de cinco das muitas obras de Maria Teresa Horta:
“Espelho Inicial”, “Estranhezas”, “Anunciações”,
“Jardim de Inverno” e “Poesis”.
A primeira parte – “Espelho Inicial”
– que se ocupa da infância, da adolescência, da sua paixão por
Luís de Barros e das escolhas de Maria Teresa Horta até ao
nascimento do seu único filho, é o período estruturante de todo o
resto da sua vida. Fala da mãe, da avó Camila sua grande aliada, do
pai, do sentimento de desamor, de solidão e abandono, a percepção
dos preconceitos em relação às mulheres e a intrepidez que desde
sempre assume na escrita. A sua personalidade nos meios onde se move
tem a marca da luta pela liberdade que então não existia em
Portugal. Apaixonada pela escrita, pela poesia e também pelo cinema,
para além de sócia de um cineclube, faz parte da direcção do
cineclube ABC o que era inédito na altura. A censura, as
intervenções da PIDE e o ódio visceral de Moreira Baptista
secretário da Informação por Maria Teresa Horta são episódios
num país que nega direitos básicos, que vicia as eleições e que
manda assassinar Humberto Delgado, para além de torturar todos os
que se opunham ao regime. No entanto, é também nesta altura que ela
começa a entrar em contacto com escritores e a receber apoios e
incentivos dos seus pares.
“Minha Senhora de Mim” foi uma pedra
no charco na literatura feita até então por mulheres e de tal forma
incomodou o poder, que a violenta agressão feita a Maria Teresa
Horta por um grupo de legionários, iria motivar a criação de
“Novas Cartas Portuguesas”. Jornalistas e também amigas de Maria
Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno decidem ao
longo de nove meses escrever uma obra ímpar que vai abalar
concepções sobre as mulheres, sobre a política e até sobre a
própria criação literária. Uma sociedade podre e cheia de
contradições não podia ficar indiferente àquela obra que é
apreendida ao fim de três dias de ter sido publicada. Natália
Correia, Maria Lamas, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues
e tantos outros, para além de todos os apoios internacionais com
destaque para Simone de Beauvoir e Marguerite Duras vão ser alguns
dos nomes que acompanharam a onda de extraordinária solidariedade
para com as três escritoras e que ficou conhecido como o processo
das Três Marias que terminou com a sua absolvição no dia 7 de Maio
de 1974.
A revolução aconteceu, mas as
contradições criadas com as reivindicações das mulheres e com as
reivindicações feministas não deixaram de existir por uma
revolução democrática ter acontecido. Havia no Portugal acabado de
chegar à democracia muita incompreensão e insensibilidade sobre as
reivindicações específicas das mulheres, nomeadamente a questão
do aborto, um tabú, a par de tudo o que tivesse a ver com os corpos
das mulheres. Tema tão caro a Maria Teresa Horta, mulher
assumidamente feminista, e que está no coração da sua poesia,
desde sempre. Aliás, e como a biografia sobre Maria Teresa Horta
abundantemente refere, nem o 25 de Abril trouxe maior visibilidade à
obra da poetisa, nem lhe granjeou grande popularidade. Ser feminista
não traz popularidade nem simpatia, mesmo no seio da esquerda. E
então quanto à direita, nem se fala.
Se a obra de Maria Teresa Horta está
largamente divulgada, traduzida e estudada em todo o mundo,
nomeadamente “Novas Cartas Portuguesas”, com destaque no Brasil,
os prémios e o reconhecimento em Portugal vieram, embora
tardiamente. A quarta parte da biografia dá destaque a algumas das
suas obras e ao romance “As Luzes de Leonor – A Marquesa de
Alorna, uma sedutora de anjos, poetas e heróis”, a que dedicou
treze anos de intenso trabalho, uma verdadeira “devoção”,
em que “Leonor e Teresa se
confundem”. (pág. 357)
Insubmissa, desobediente, coerente, Maria Teresa Horta recusa receber
o prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus das mãos do então
primeiro-ministro Passos Coelho (2011).
A última parte da biografia começa com
a morte inesperada de Luís de Barros, poucos meses antes da
pandemia. A perda e a solidão são imensas, depois de uma vida de
paixão intensa pelo marido ao longo de 56 anos. Maria Teresa Horta
sabe que a salvação está na poesia e decide dedicar mais um livro
ao marido, desta vez com o título “Paixão”. Embora mais
limitada ao espaço da casa, continua sempre a escrever e sempre
atenta ao mundo e à política. Mesmo a terminar a biografia,
transcrevo este período que é significativo sobre esta mulher
extraordinária: “O modo como
está o mundo também te diz muito sobre o modo como está a vida das
mulheres. Imagine-se as mulheres da Ucrânia, as atrocidades que
sofrem, os devaneios pelos quais têm passado. As notícias são
importantes por isso, para conseguirmos medir a pulsação das
coisas”. (pág. 404)
É sempre com muito respeito e humildade
que escrevo sobre livros que li e que me merecem consideração para
fazer uma apreciação, como registo que gosto de partilhar. Este
livro, entre outros, é um deles. Antes do mais pela consideração
que me merece uma mulher feminista que toda a vida assumiu a
liberdade e que nunca virou costas às dificuldades e às suas
convicções mais profundas, numa postura de coragem e de coerência
num mundo tão adverso à frontalidade e ao feminismo. E claro,
também pela coragem da autora e pelo trabalho de grande fôlego e
valor que é o de biografar uma mulher com uma vida tão rica e tão
inspiradora. Parabéns. Muito obrigada às duas.
22 de Agosto de 2024
Almerinda Bento