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sexta-feira, 28 de abril de 2023

"Uma Mulher Com Cancro, Um Psicólogo e Uma Virgem Entram Num Death Café" de Lara da Rocha Vaz Pato

Falar sobre este livro não é fácil, nem a perspectiva de o ler tampouco. Mal soube da sua existência desejei lê-lo. Sabia que passaria à frente de todos. 

Começo por vos falar da capa, como para me preparar para o que tenho a dizer-vos sobre ele... Achei a capa lindíssima e o título, que dá o nome a um dos textos que faz parte esta obra, é grande, difícil de fixar mas muito chamativo. 

Como referi, o livro é constituído por vários textos da autora (crónicas?) que se juntam num todo e falam da sua vida. Lendo a sinopse, fica-se a saber que Lara já não se encontra entre nós, que morreu, mais concretamente, já que falar da morte é ainda hoje difícil, às vezes, tabu. E então, temos muitas formas de expressar essa ausência

Lara já morreu. Escreveu sabendo que a sua doença terminal a impediria de viver por muito tempo, viveu, sabendo que os seus dias estavam marcados e eram finitos. Todos sabemos que vamos morrer mas quando um médico não nos dá esperança, a morte torna-se uma presença subitamente real e próxima. 

E Lara começou a falar/escrever sobre a vida. Como não falar da vida quando se aproxima a morte? E escreveu estes textos de uma sensibilidade extrema, repletos de um humor fino, que nos faz voltar atrás e reler. E sorrir. Porque Lara consegue falar da vida, dos medos, do que viveu e a marcou e fazer-nos sorrir. É certo que senti sempre um peso enorme com esta leitura, mas se Lara pretendeu deixar uma parte de si quando escrevia, conseguiu. Senti-me "overwhelmed". Não conheço palavra melhor para explicar o que senti ao ler esta obra.

É um livro cheio de coragem porque Lara expôs-se, abriu-se para algumas folhas em branco como às vezes o deveríamos fazer para a vida: sem medos e confessando aquilo que a estava a pesar. Lara escolheu a ordem dos textos, ajudou a seleccionar aqueles que queria que ficassem no livro. Mas já não esteve presente na apresentação desta sua obra. Teria gostado de ouvir o que foi dito sobre si. 

Gostei tanto, mas tanto deste livro! Quão forte foi ao mostrar as suas fragilidades!

Terminado em 17 de Abril de 2023

Estrelas: 6*

Sinopse

«”Gostariam de saber a data da vossa morte? Fazia diferença se tivessem mais um ou mais cinquenta anos de vida?”

Ah, finalmente, uma pergunta em que o cancro me dava uma vantagem sobre os outros.»

O inesperado diagnóstico de cancro do pulmão, aos trinta e um anos, durante a pandemia e numa idade em que os seus pares começam famílias e compram casa, obrigou Lara da Rocha Vaz Pato a confrontar-se com as reações de amigos e família, com a perda de cabelo, os tratamentos ou o apoio psicológico e, acima de tudo, com o medo da morte. Pelo meio, fala da pressão de estudar em Portugal durante a crise dos anos 2000, sobre viver no estrangeiro e sobre as exigências que sentiu no mercado tecnológico como jovem adulta. Com a chegada da doença, as suas histórias e recordações falam de ser feliz e de ver o lado belo da vida, mesmo no meio de tanta má fortuna. Os temas pesados e desconfortáveis não se evitam, mas tornam-se mais fáceis de digerir pela verdade do tom e pelo humor. Um livro que não se esquece.

Desassombrada, Lara mostra-nos como lidou com os altos e baixos que a vida lhe trouxe, desde pequenos episódios da sua intimidade a temas como o cancro e a morte, a competição entre mulheres no trabalho, as relações amorosas ou as recordações da infância e da família.

Cris

quinta-feira, 27 de abril de 2023

"Porque Andamos Tão Exaustos" de Vânia Castanheira

Tenho noção que começo muitas vezes estas opiniões com a referência que o livro já se encontra nas minhas prateleiras há muito tempo. Este é mais um caso. Tenho-o desde que saiu cá em Portugal e esperava a sua vez. 

Não foi pelo título me fazer sentido pessoalmente neste momento mas há muito que tenho noção que devo fazer algo mais pela minha saúde, prevenindo as doenças, tratando de mim. Desde livros de não ficção sobre temas variados a workshops, tudo me desperta interesse e me motiva a procurar meios de manter a saúde. 

Sigo a Vânia nas redes sociais (Instagram sobretudo, mas sei que possui um blogue também) e conheço pessoalmente familiares próximos. A sua história de vida é de uma superação fantástica e muito inspiradora. 

Um dos muitos factores falados por ela, neste livro, é a importância do sono. Revi-me nos  aspectos focados e a vontade de alterar hábitos tem sido, nestes últimos anos, uma prioridade para mim. Mas esse é apenas um dos pontos abordados neste livro! A alimentação, o exercício físico, o equilíbrio emocional e o auto-conhecimento são outros factores a que devemos ter atenção. 

Um livro para ter na mesinha de cabeceira e para se ir consultando.

Terminado em 13 de Abril de 2023

Estrelas: 5*

Sinopse

O burnout foi finalmente reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como uma síndrome resultante de stress crónico no trabalho, que não foi bem gerido.

Fadiga, tristeza acentuada, irritabilidade, aborrecimento, perda de motivação, sobrecarga de trabalho, rigidez e inflexibilidade.

Todos são comportamentos que podem significar um esgotamento profissional.

Neste livro da Medical Coach Vânia Castanheira, vai encontrar uma explicação detalhada do que é o Burnout, vai aprender a identificar os sintomas e de como evitá-lo.

E como sair dele, caso já lá esteja, com muitas dicas práticas e fáceis de seguir.

Cris

quarta-feira, 26 de abril de 2023

"Confiança" de Hernán Díaz

Peguei neste livro porque me foi recomendado por uma amiga. Ia segura que iria gostar de imediato. Não foi assim. O livro é um puzzle e, como tal, só depois de meio do livro começamos a vislumbrar como é a sua arquitetura. É daqueles livros que se não tivesse sido recomendado pensaria duas vezes se iria continuar. Isto porque, decorrendo maioritariamente na América, explica algo que não é o meu forte nem o meu interesse: um pouco a história dos mercados bolsistas desse país nos anos 20.

Chegando a meio fez-se o click. Não me tinha apercebido e desta vez, confesso, se tivesse lido a sinopse com atenção ter-me-ia dado conta que nos são descritas diferentes narrativas da mesma historia, vistas por personagens diferentes e acaba por encaixar tudo no final.

Houve partes, relativamente às historias de alguns personagens em que fiquei deveras interessada mas outras em que a minha atenção demorou a fixar-se. Se bem que tudo no final fez, como disse, sentido e a reviravolta deu-se. 

Afinal, nem todas as histórias que nos são contadas têm por base a realidade, não é? Ela pode ser fabricada consoante a percepção que temos dos acontecimentos e, até, consoante aquilo que nos dá mais jeito pensar ou que os outros pensem...

Se quiserem pôr-se à prova, avancem. No final, vale a pena! O puzzle completa-se!

Terminado em 7 de Abril de 2023

Estrelas: 4*

Sinopse

Na Nova Iorque dos ruidosos e efervescentes anos de 1920, todos conhecem os nomes de Benjamin e Helen Rask. Ele, um magnata de Wall Street; ela, a filha de excêntricos aristocratas. Juntos ascenderam ao topo de um mundo de aparente riqueza infinita, mesmo quando os excessos da especulação fazem ruir tudo à sua volta. Mas a que custo se construiu esta fortuna? É este o mistério no centro de Obrigações, um romance lançado em 1937 e lido amplamente pela comunidade nova-iorquina. Contudo, sobre esta história de privilégio e engano existem outras versões. Confiança põe em confronto diferentes narrativas, e questiona, através da perspetiva de uma mulher, a divisão entre factos e ficção. Romance imersivo, brilhante puzzle literário, conduz o leitor por uma busca que se estende ao longo do século, lançando luz sobre a ilusão que por vezes está no centro das relações, sobre a força do capital capaz de distorcer a realidade e a facilidade com que o poder manipula a verdade.

Cris

terça-feira, 25 de abril de 2023

"Fome" de Knut Hamsun (GN de Martin Ernstsen)


Já li há muito tempo esta obra deste escritor norueguês, Nobel em 1920, mas para além de saber que tinha gostado muito, recordo-me muito vagamente do enredo cujo título, forte e nú, revela um pouco do conteúdo. Foi, por essa razão, com muita expectativa e gosto que peguei nesta novela gráfica!

Fiquei maravilhada pela história que relembrei mas sobretudo, e porque estou a comentar uma GN, pelas imagens e pela cor utilizada. Há um perfeito entendimento do texto e transposição do mesmo para as ilustrações. Fiquei encantada! 

Creio que os aspectos da história estão cá todos e visivelmente bem representados!

Muito bom! Ficam aqui algumas imagens...






Terminado em 31 de Março de 2023

Estrelas: 6*

Sinopse

Obra inaugural da grande literatura moderna, Fome, do prémio Nobel de Literatura Knut Hamsun, foi publicado há mais de um século.

Numa abordagem tão fiel quanto original ao romance de Hamsun, o artista norueguês Martin Ernstsen adapta para novela gráfica esta história protagonizada por um jovem escritor que deambula faminto e delirante pela cidade de Kristiania, oferecendo ao leitor uma experiência estética e literária singular.

Cris

segunda-feira, 24 de abril de 2023

"Filho da Mãe" de Hugo Gonçalves

Embora já morasse há muito nas minhas estantes, o motivo pelo qual peguei neste livro foi porque o seu autor foi escolhido para um grupo de leitura que frequento com gosto. Como já tinha ouvido falar bem nele, foi o escolhido.

Para além disso, sabendo que o autor transportou uma realidade vivida para o papel e com a perspectiva da sua presença na sessão do grupo, acreditei que a leitura desta obra me faria conhecer um pouco mais o homem que está por detrás do escritor.

Hugo Gonçalves mostrou-se falador e comunicativo. Expressa no seu discurso oral um tom que reconheci no seu discurso escrito. Foi um prazer ouvi-lo falar da sua obra, do que pretendia com ela. Embora se tratasse de um tema pesado - a morte de sua mãe quando criança, com oito anos, e o que foi crescer sem ela - que o marcou profundamente, não queria um livro lamechas nem tampouco manipular os sentimentos do leitor. 

E foi isso que senti de facto. Falando de si, da sua infância junto com o seu pai e irmão, Hugo faz uma reflexão sobre o luto mas sem pieguices. É pois um livro autobiográfico, sendo a escrita um veículo para falar no luto, no seu e da sua família mais próxima.

Acredito que tenha sido uma viagem de autoconhecimento. Procurar a mãe ao fim destes anos todos foi entrar em si e nos que lhe são próximos. É um livro de memórias e elas nem sempre constituem a verdadeira realidade, mas são as memórias que possuímos que nos marcam para a vida e foi isso que achei que estivesse aqui espelhado. "Quem fica continua a amar aquilo que a morte tocou".

Gostei tanto do livro como de ouvir o seu autor.

Terminado em 30 de Março de 2023

Estrelas: 5*

Sinopse

Um texto autobiográfico, tão comovente quanto surpreendente, sobre o que é crescer sem mãe. Lê-se como um romance mas é feito de vida.

Perto de fazer quarenta anos, Hugo Gonçalves recebeu o testamento do avô materno dentro de um saco de plástico. Iniciava-se nesse dia uma viagem, geográfica e pela memória, adiada há décadas. O primeiro e principal destino: a tarde em que recebeu a notícia da morte da mãe, a 13 de Março de 1985, quando regressava da escola primária.

Durante mais de um ano, o escritor procurou pessoas e lugares, resgatando aquilo que o tempo e a fuga o tinham feito esquecer ou o que nem sequer sabia sobre a mãe. Das férias algarvias da sua infância aos desgovernados anos de Nova Iorque, foi em busca dos estilhaços do luto a cada paragem: as cassetes com a voz da mãe, os corredores do hospital, o colégio de padres, uma cicatriz na perna, o escape do amor romântico, do sexo e das drogas ou uma road trip com o pai e o irmão. Sem saber o que iria encontrar na viagem, o autor percebeu, pelo menos, uma coisa: quem quer escrever sobre a morte acaba a escrever sobre a vida.

Esta é uma investigação pessoal, feita através do ofício da escrita, sobre os efeitos da perda na identidade e no caráter. É um relato biográfico —tão íntimo quanto universal —sobre o afeto, as origens, a família e as dores de crescimento, quando já passámos o arco da existência em que deixamos de fantasiar apenas com o futuro e precisamos de enfrentar o passado. É também, inevitavelmente, uma homenagem à figura da mãe, ineludível presença ou ausência nas nossas vidas.

Finalista dos Prémios Literários PEN Clube e Fernando Namora.

Cris

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Para os Mais Pequeninos: "A Pepa Vai à Horta"


O que chama mais a atenção neste pequeno livrinho é o facto de ser muito colorido e, por isso, os olhos dos pequenitos vão ficar maravilhados com tanta cor!

As folhas grossas, como convém a estes pequenos, estão adaptadas às terríveis voltas e reviravoltas que os bebés lhes dão quando brincam à leitura! E como "é de pequenino que se torce o pepino", dar-lhes livros adaptados às suas idades só lhes fará bem!

A Pepa e o seu irmãozito, o Jorge, vão à horta do avô apanhar legumes mas para isso é necessário possuírem uma horta! E lá está o avô para os ensinar a fazerem uma horta desde o princípio!

Colorido, didático e com ilustrações divertidas, este livro vai ser um prazer para os pequenitos!



Cris

quinta-feira, 13 de abril de 2023

A Convidada escolhe: "A Hora do Lobo"


 A Hora do Lobo, César Afonso, 2019

A leitura deste livro resultou de um novo desafio que lancei este ano lectivo na Universidade Sénior do Seixal, de se criar um Círculo de Leitura com a periodicidade mensal, que permita divulgar livros, autores e falar sobre livros e leituras. Um espaço de partilha para quem gosta de ler. Olinda Barreira, uma das frequentadoras do Círculo sugeriu “A Hora do Lobo”, de César Afonso, seu conterrâneo, com quem teremos a possibilidade de conversar na sessão de final deste mês de Março.

Logo na nota que abre este livro, o autor, num regresso a Montesinho, num Natal de 2015, dirige-se aos leitores dizendo que decidiu escrever sobre as suas memórias de infância, num tempo em que a sua terra Natal ainda estava povoada de gente valente, com vidas difíceis, agora praticamente despovoada e desolada. É pois um livro de memórias, para que não caiam no esquecimento pessoas que o marcaram, pessoas simples mas cheias de carácter, pessoas por quem sente imensa gratidão porque o ajudaram a ser a pessoa que é hoje.

“Naquele tempo a sabedoria não se encontrava nos livros. Ela passava de boca em boca, contada aos serões da lareira, atrás do arado que esventrava a terra puxado por uma junta de vacas, na verdasca* que dominava o rebanho de gado, enfim, no sacho ao ombro que se transformava na única companhia das longas caminhadas pelas encostas e vales.

Aprendia-se a olhar o céu azul, a interpretar a forma e a cor das nuvens, a intensidade do sol, a forma e posição da lua, a sentir os ventos do norte a rasgar os cabelos, a ouvir o canto dos pássaros da alvorada ao crepúsculo, a distinguir o zumbido das vespas e das abelhas, a seguir o canto das zirras*, a descobrir o canto do cuco e da boubela*, o perfume das ervas e dos animais, a respirar o sabor da terra nas trovoadas de Junho, a reconhecer o cheiro da esteva e da giesta. Esta era a sabedoria da terra, um imenso despertar dos sentidos, a verdadeira forma de nos fazer existir nas múltiplas dimensões do corpo. Aquilo que nos tornava eternos enquanto a vida permanece.

Foi por essa essência que os nossos avós amaram aquelas montanhas e os fizeram acreditar que ali haveriam de chegar ao futuro. Foi por esse futuro que viram os seus filhos partir e lhes educaram os netos. Foi por esse futuro que ficaram à espera de que um dia regressassem para lhe devolver a esperança. É por esse futuro que escrevemos para que a memória dos que lutaram não se esfume nas planícies do tempo.” (pág. 80)

O livro é constituído por contos breves. São episódios em diferentes momentos da meninice de Afonso que, por algum motivo, se tornaram significativos. A criança que cedo se vê afastada dos pais por estes terem sido obrigados a emigrar para França, e que fica à guarda da avó Ludovina, uma mulher especial. As dores do afastamento da aldeia e da avó, quando termina a primária e vai para o ciclo preparatório em Vinhais. As saudades da liberdade do campo, dos animais, das noites da aldeia à volta da lareira, das conversas, das histórias assustadoras e hilariantes, As visitas da avó em dias de feira e, como mesmo distante, ela continuava a educá-lo e a ser uma referência, pois, para ele, “a avó era a mulher mais sábia que ele conhecia” (pág. 43). O descobrir na escola as diferenças no tratamento se se tratasse de crianças oriundas da vila ou da aldeia, se eram filhos de pobres ou de gente mais abastada. As primeiras leituras, a biblioteca itinerante da Gulbenkian. As brincadeiras. As más recordações de uma professora que só conseguia infundir medos das suas aulas de Português. Contudo, para ele, “a vida do ciclo foi uma experiência inesquecível” (pág. 40).

Também a revolução de Abril não deixou de ser referida neste livro de contos. Numa zona tão esquecida pelos diferentes poderes ao longo do tempo, as campanhas de dinamização cultural e desportiva que então ocorreram também em Trás-os-Montes mexeram profundamente com as pessoas e também com o jovem Afonso que pela primeira vez viu as paredes da terra pintadas com as siglas e os símbolos dos partidos: “Foi como se tivessem pintado a Primavera dentro do peito das pessoas” (pág. 59). Lá fora, os pais emigrados na Suíça, apenas tinham as notícias filtradas pela comunicação social que apontavam para a iminência de uma guerra civil e receavam pela integridade física dos filhos.

Terras de Trás-os-Montes marcadas pela emigração sobretudo para França, pela devoção religiosa, pelo pagamento de promessas em agradecimento aos que conseguiram voltar sãos e salvos do “inferno da guerra”, pelos dias de romaria e da matança, pelas saídas à noite para jogar snooker e fumar uns cigarros, pela dureza do trabalho no campo, nos dias gelados ou nos dias de calor inclemente, pelo contrabando e pelo receio dos carabineiros junto à fronteira da Galiza. O autor dá grande destaque às figuras femininas, pela sua força – a avó Ludovina, a dona da casa para onde vai viver em Vinhais, a mãe – e também transmite uma imagem quase santificada da mulher que cuida e cria os filhos sozinha, porque o marido está emigrado, veiculando uma visão muito tradicional do papel da mulher em casa e na sociedade, que fica muito patente através da seguinte transcrição: “Mulher que se preze mal entre em qualquer cozinha sintoniza-se com os afazeres que ali estiverem em curso. É um código feminino bem presente entre as transmontanas. Sentar-se e cruzar os braços era sinal de que não prestava para gerir uma casa e nenhum homem lhe queria pegar. (pág. 93).

E depois há aquelas figuras singulares, como há em todas as terras, nem sempre acarinhadas, tantas vezes ostracizadas pela desumanidade dos seus conterrâneos, como o Careto, vendedor de sardinhas, que um dia entregou a Afonso uma sardinha esculpida numa pedra de xisto. Para além do avô Delfim, também importante na memória do autor, noutros capítulos/contos deste livro surgem outras personagens típicas da aldeia como o ti Alfredo, o gaiteiro, o poeta de Nuzedo que era cego e que o fez ver um outro mundo “o mundo da interioridade”(pág. 35), as brincadeiras e aventuras do Afonso e do primo, o fogueteiro, o pastor Celestino que, com a ajuda dos dois cães Nero e Pinto, conseguiu pôr a salvo a maior parte do enorme rebanho de ovelhas, ou o Tonho salvo pelos rapazes de se afogar no Carriço.

Além de ser um livro que nos dá o retrato de uma época e de uma região sempre votada ao abandono pelo poder, com que muitos transmontanos ou habitantes do interior certamente se identificarão, é rico em regionalismos e vocabulário que me obrigou com frequência a recorrer ao dicionário da língua portuguesa.

22 de Março de 2023 

Almerinda Bento 

*verdasca – vara pequena e flexível; chibata

*zirra – pássaro também conhecido por zirro, ou pedreiro ou zilro

*boubela – poupa


quarta-feira, 12 de abril de 2023

Resultado do Passatempo Mensal "Toca a Comentar"

Anunciamos o vencedor deste passatempo referente ao mês de Março. 

Este é o link para o post onde se encontra anunciado o passatempo.

Assim, através do Random.Org, de todos os comentários efectuados nesse mês, foi seleccionado um vencedor! Foi ele:

Alexandra Guimarães

Parabéns! Terás que comentar este post e enviar um email para otempoentreosmeuslivros@gmail.com até ao próximo dia 25, com os teus dados e escolher um de entre estes dois livros: 



Cris

segunda-feira, 10 de abril de 2023

"A Viagem do Elefante" de José Saramago

Ando a ler Saramago aos poucos. Se vou conseguir ler todos, não sei, mas a vontade é ir lendo conforme sou atraída pelo tema tratado. 

Aqui,  pegando num facto histórico que teve lugar na época de D. Joao III, casado com D. Catarina da Áustria, Saramago retratou-o dando-lhe o seu toque pessoal, com a sua escrita sui generis (que não me faz confusão alguma!) e com pitadas de crítica social à época e aos costumes fechados e a governantes incomodados com as aparências do Portugal de então. 

Algumas partes li-as em voz alta e esse é o truque caso a escrita corrida com diálogos incluídos e os nomes próprios em minúsculas vos atrapalhe a leitura!

O mote deste livro é então um presente que os reis de Portugal querem oferecer ao arquiduque da Áustria, porque o presente dado na altura do seu casamento não foi suficientemente imponente, e que mais não é do que um elefante que veio da Índia há dois anos com o seu cornaca (tratador) de nome Subhro (que significa branco) e que, passando a novidade, foi objecto de esquecimento. A bem da verdade era uma forma de se livrarem de um problema "grande e comilão"!

Salomão, assim se chamava inicialmente o elefante, teria de ser entregue em Valladolid, onde se encontrava o arquiduque, e posteriormente seguiria caminho para Viena aí já sob o comando das tropas austríacas. Seguiria caminho a PÉ, obra hercúlea para essa altura. O enredo está repleto de acontecimentos imprevistos que dão cor à trama.

A imaginação de Saramago é realmente impressionante e, embora a mancha gráfica deste livro seja compacta e a leitura tenha decorrido lentamente pois não considero que haja muita acção e reviravoltas, nunca pensei em colocá-lo de lado! O destino de Salimão (sim, mudaram-lhe o nome a meio da viagem!) e de Fritz, o cornaca a quem também mudaram o nome, manteve sempre o meu interesse!

Siga para outra obra de Saramago! Gostava de ler agora As Pequenas Memórias!

Terminado em 23 de Março de 2023

Estrelas: 5*

Sinopse

Em meados do século XVI o rei D. João III oferece a seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, genro do imperador Carlos V, um elefante indiano que há dois anos se encontra em Belém, vindo da Índia.

Do facto histórico que foi essa oferta não abundam os testemunhos. Mas há alguns. Com base nesses escassos elementos, e sobretudo com uma poderosa imaginação de ficcionista que já nos deu obras-primas como Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago coloca agora nas mãos dos leitores esta obra excepcional que é A Viagem do Elefante.

Neste livro, escrito em condições de saúde muito precárias não sabemos o que mais admirar - o estilo pessoal do autor exercido ao nível das suas melhores obras; uma combinação de personagens reais e inventadas que nos faz viver simultaneamente na realidade e na ficção; um olhar sobre a humanidade em que a ironia e o sarcasmo, marcas da lucidez implacável do autor, se combinam com a compaixão solidária com que o autor observa as fraquezas humanas.

Escrita dez anos após a atribuição do Prémio Nobel, A Viagem do Elefante mostra-nos um Saramago em todo o seu esplendor literário.

Cris

sexta-feira, 7 de abril de 2023

A Convidada escolhe: "As Coisas que faltam"

As Coisas que faltam, Rita da Nova, 2023 

Fui ao lançamento de “As Coisas que faltam” porque tinha gosto em conhecer pessoalmente a Rita, que apenas conhecia pelo seu blogue. Quando cheguei naquela tarde à acolhedora e para mim nova Livraria Martins em Lisboa, fiquei espantada com a imensa quantidade de jovens numa apresentação de um livro, que ali aguardavam a sua vez para ouvir e conversar com a autora. Percebi então que aqueles jovens eram seguidores da Rita nas várias redes sociais em que ela se move. Percebi também que além da avó da Rita, eu era a pessoa mais velha, muito mais velha, naquela pequena multidão que se espalhava pela sala e subia pelas escadas que levam ao andar superior da livraria. 

O assunto deste primeiro romance de Rita da Nova – uma rapariga que luta por conhecer o pai – fica claro logo na frase inicial do livro: “Aos oito anos perguntei pela primeira vez à minha mãe se podia conhecer o meu pai.” Para quem esteve naquela apresentação do livro, percebe-se a importância da avó na sua vida, cuja presença a autora nomeia mais de uma vez. Aliás, dedica-lhe o livro, assim como ao pai: “Para a minha avó, a minha pessoa. Para o meu pai, que voltou atrás por mim”. Em Agradecimentos, no final do romance, esclarece-se como aquelas duas pessoas foram determinantes na sua vida e motivadoras para a escrita de “As Coisas que faltam”: “Tinha nove anos quando conheci o meu pai. Morava com a minha avó materna nessa altura, como morei durante vários anos, e foi ela quem sentiu necessidade de chamar o meu pai até mim.” … “Talvez por ter tido a sorte de uma segunda oportunidade com o meu pai – e por «sorte» entenda-se «uma grande avó» -, sempre me fascinou imaginar uma realidade alternativa em que nada disto tivesse acontecido.”

Sendo um livro bastante directo, coloca-nos, no entanto, vários temas para reflexão: o peso da ausência da figura paterna numa sociedade que encara isso uma “falha”, desde logo quando na escola se espera que as crianças desenhem uma árvore genealógica onde a mãe e o pai têm de existir; a dor de uma relação entre mãe e filha em que não há comunicação, onde não há intimidade, onde até o toque e a emoção estão ausentes e os efeitos no futuro adulto; a pressão e o assédio sobre uma rapariga tão comuns numa empresa de homens; como uma relação possessiva e que não respeita o outro, passa pela despersonalização e termina numa relação abusiva e violenta. De forma subtil, a narradora Ana Luís conseguiu, através da caracterização das personagens (mãe, tia Ermelinda, Fernando, Raul) levar o/a leitor/a a prever o desfecho. Aliás, por vezes dialoga com quem a está a ler e levanta o véu, antecipando o que vai acontecer. Gostei do recurso às cartas enviadas pela mãe ao pai que sintetizam uma relação de abandono, de solidão, de falta de comunicação. 

Desejo a Rita da Nova muitas leituras, a convicção de que um próximo ainda será uma história com uma relação muito umbilical “o resto será uma história para outra altura” (pág. 253), mas a certeza de que no futuro os voos a irão levar a outras geografias.

2 de Abril de 2023 

Almerinda Bento