Cris
“Torto Arado”, Itamar Vieira Junior, 2018
Este foi um daqueles livros que não parei de sublinhar, sublinhar, sublinhar. Um livro verdadeiramente excepcional, poético, poderoso, brutal, que me permitiu viver sentimentos muito fortes, como a raiva, respeito pela coragem das personagens e profunda admiração por um escritor que consegue de forma intensa e admirável assumir a pele de mulheres narradoras.
O exemplar que comprei tinha uma cinta com a indicação dos prémios obtidos por este romance do escritor baiano Itamar Vieira Junior: vencedor do Prémio Leya 2018 atribuído por unanimidade pelo júri, vencedor do Prémio Jabuti e finalista do Prémio Oceanos. Independentemente da sinopse motivadora na contracapa, o livro agarra o leitor desde a primeira página e consegue, ao longo das cerca de trezentas páginas, manter o interesse e a expectativa até ao final. Ao lê-lo, revivi “Beloved” de Toni Morrison e foi com satisfação que o encontrei na lista dos livros sugeridos pelo Plano Nacional de Leitura.
Oficialmente, a escravatura no Brasil terminou em 1888. O romance começa por volta dos finais dos anos vinte do século passado, mas os moradores da fazenda de Água Negra não sabem o que é serem livres. Descendentes de escravos vindos de África, as suas histórias têm um traço comum de errância, procurando um pedaço de terra onde pudessem trabalhar, instalar-se e criar família. Trabalham de domingo a domingo, vivem em casas precárias feitas de lama, não recebem salário e são espoliados dos poucos produtos que conseguem plantar nas suas pequenas roças, para além do armazém que o fazendeiro instalou e a que ficam amarrados, o qual os trabalhadores baptizaram de “um roubo” (p. 106). Os anos passam, as crianças crescem e tornam-se adultas, as leis mudam e o progresso vai chegando, mas para os trabalhadores e moradores da fazenda é “a mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade” (p. 234).
Num mundo aparentemente imutável, com uma hierarquia de poder na fazenda em que os capatazes e subalternos reproduzem o poder e a ordem coloniais, os trabalhadores vivem submetidos a práticas religiosas de matriz africana, encontrando aí resposta aos seus males e aos seus medos. Mas a exploração não é só dos fazendeiros relativamente aos trabalhadores, invisíveis e sem quaisquer direitos. O padrão do poder patriarcal vive-se nas famílias. Os homens cobiçam as raparigas mal elas começam a tornar-se mulheres “com os olhares invasivos que nos despetalavam como flores” … “Muitas caíam sob o peso da insistência, não resistiam às abordagens, e com as bênçãos dos pais se uniam com seus corpos ainda em formação. Sucumbiam ao domínio do homem, dos capatazes, dos fazendeiros das cercanias.” (p. 55). “Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro lugar onde precisassem” (p. 135). Mulheres tratadas como criadas, como receptáculos para a satisfação sexual dos homens, vítimas de violência extrema… Mas, para além de os pais de Bibiana e Belonísia terem uma visão diferente e perceberem que era preciso construir uma escola para os filhos dos trabalhadores, Severo, que vai ser sindicalista e lutar pela emancipação do seu povo, será quem, pela primeira vez, irá abrir novos horizontes e uma perspectiva de mudança e uma nova vida a Bibiana. “Nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida além da fazenda. Achava que ali havia nascido e que ali morreria, como acontecia à maioria das pessoas”. “Queria experimentar a vida, para ver o que poderia nos acontecer” (p. 76).
O desejo de liberdade, o direito à terra, o tomar a palavra e exprimir a revolta de séculos, a luta de resistência e emancipação dos quilombolas são os grandes temas deste maravilhosos romance que nos narra as lutas dos povos de uma fazenda no sertão do Brasil, centrado na personalidade e na coragem das mulheres. Bibiana e Belonísia, inesquecíveis personagens deste livro, apesar de as suas personalidades serem tão diferentes, ficarão, após um acidente que lhes mudará a vida para sempre, ligadas como se de siamesas se tratasse.
A uma semana de um resultado eleitoral decisivo para o futuro do Brasil, este romance é um grito de revolta contra a opressão, a força da coragem e da união quando chega o momento de desobedecer e de mudar. Oxalá o povo brasileiro tenha o discernimento para vencer o obscurantismo, a prepotência e a mentira.
22 de Outubro de 2022
Almerinda Bento
Considero que estes livrinhos pequenos em tamanho são direcionados a um público um pouquito mais velho. Alguém que esteja já a abordar as primeiras letras poderá, creio, beneficiar de uma leitura conjunta com os adultos ou, até mesmo, separada, já tentando ler sozinhos o que lhes pode abrir o fantástico mundo das letras.
Este livro possui bastante texto mas é sempre acompanhado de imagens representativas, coloridas e divertidas que fazem da leitura um momento prazeroso.
Então, que história temos aqui? Tom e Penny são dois amigos que vivem numa floresta rodeados de outros tantos amigos e vão viver uma aventura que começa mal mas que acaba bem! Penny é raptada por Átila, um rato mau que vive num castelo longe da floresta. E o que faz Tom? O que fazem os amigos quando alguém está em apuros?
Uma história sobre a amizade, sobre a grande família que podemos construir com os nossos amigos!
Muito giro e educativo! Ora vejam algumas imagens:
Cris
Um dia hei-de gostar de contos/crónicas! Evito, por achar que é uma leitura que se faz com demasiada rapidez e com mudanças de temas que não aprecio, mas estou sempre a tropeçar em livros que na sua essência possuem poucas páginas! Este foi o livro recomendado num grupo de leitura por um autor que admiro. Só assim iria pegar nele e a biblioteca foi o lugar certo para o encontrar. Normalmente, por uma questão de proximidade, frequento a Biblioteca das Galveias. Se ainda não foram lá e puderem, vão espreitar. Vale bem a pena apreciar o palácio e correr a vista pelos livros.
Apercebi-me que este "Em Todos Os Sentidos" é a compilação de 41 crónicas emitidas na Antena 2 em 2019. Estão disponíveis na net, basta procurar pelo nome do livro que mais não é que o nome do programa. Confesso que a minha disposição para ouvir estas crónicas será diferente, para melhor, do que a que me atacava quando submergia nestas páginas. E portanto, vou ouvir a Lídia Jorge!
E vou fazer isso sobretudo porque reconheço a mestria da sua escrita e o poder das suas palavras claras e sábias! Gostei muito de algumas crónicas e estou expectante para ouvir a "Agustina como ninguém" porque me divertiu muito aquele episódio passado num comboio com Lídia Jorge e Agustina Bessa Luís! Imagino a entoação da autora ao contar-nos esse episódio!
A crónica que mais me tocou - tanto mais que tem como pano de fundo um episódio, desconhecido para mim, ocorrido em Terezin, no campo de concentração - já a ouvi. Fiquei sem palavras. Por tudo o que aconteceu que envergonha a Humanidade mas também pela profundeza da análise e comentários de Lídia Jorge.
Ela fala-nos um pouco de tudo. Em todos os sentidos, mesmo. Sobre o passado e o presente, História e Política, sobre Literatura e seus autores, sobre alguns aspectos pessoais e o privilégio de contactar com tanta gente das artes...
Se gostam de crónicas recomendo muitíssimo este livro. Caso contrário, vão ouvi-las! Para mim, o facto de as ouvir pela voz da autora tem um sabor especial.
Terminado em 8 de Outubro de 2022
Estrelas: 4*
Sinopse
Na introdução que abre este livro, Lídia Jorge define a crónica como uma
homenagem ao deus que faz escorregar os grãos de areia, mirando-nos de
soslaio. E acrescenta: «Como não podemos vencer o Tempo, escrevemos
textos que o desafiam a que chamamos crónicas.»
Em Todos os Sentidos, conjunto de quarenta e uma crónicas que
Lídia Jorge leu, ao longo de um ano, aos microfones da Rádio Pública,
Antena 2, corresponde a essa definição - são crónicas que encaram de
frente a fúria do mundo contemporâneo, interpretando os seus desafios,
perigos e simulacros com um olhar crítico acutilante.
Mas a singularidade destas páginas de intervenção provém, sobretudo, do
facto de a autora ser capaz de juntar no mesmo palco da reflexão o
pensamento crítico sobre a realidade e o discurso subjectivo da memória
íntima, com um olhar profundamente sentido.
No interior deste livro, há páginas inesquecíveis sobre a vida humana.
Cris
Truman Capote, nas suas obras "Boneca de Luxo" e "A Sangue Frio", foi o escritor escolhido para um grupo de leitura a que passei a ir recentemente. São dois livros muito diferentes mas, percebi depois da discussão que se fez à volta deste autor, que possuem muitas das suas características, resultado das suas vivências pessoais.
Este "A Sangue Frio" foi o resultado de alguns anos de investigação (cinco, creio) de Truman Capote sobre um caso verídico passado nos EUA em que uma família de 4 pessoas foi assassinada sem que restassem muitos indícios ou provas de quem o praticou.
Não sabia bem ao que ia quando comecei a ler e a apresentação, logo no início, dos membros dessa família, os seus gostos e vontades, despoleta no autor sentimentos de compaixão, como é natural. O autor vai deixando escapar, por entre linhas, qual o desfecho macabro que essa família terá.
Por outro lado, são-nos apresentados os assassinos e as suas vidas atribuladas. Sem críticas, sem desculpas, sem julgamentos. As diversas camadas que todos os indivíduos possuem é muito bem abordada nesta obra e estão plasmadas sobretudo na caracterização dos jovens assassinos.
Há filme. Ide ver que eu farei o mesmo, agora que já li o livro.
Terminado em 30 de Setembro de 2022
Estrelas : 4*
Sinopse
Um dos grandes romances da literatura americana do século XX. O americano Truman Capote foi um escritor versátil, mas a sua grande obra foi o romance não-ficção "A Sangue Frio", que conta a história da morte da família Clutter, em Holcomb, Kansas, e dos autores da chacina.
Capote decidiu escrever sobre o assunto ao ler no jornal a notícia do assassinato da família, em 1959. Quase seis anos depois, em 1965, a história foi publicada em quatro partes na revista The New Yorker. Além de narrar o extermínio do fazendeiro Herbert Clutter, de sua esposa Bonnie e dos filhos Nancy e Kenyon -uma típica família americana dos anos 50, pacata e integrada na comunidade-, o livro reconstitui a trajectória dos assassinos. Perry Smith e Dick Hikcock planearam o crime acreditando que se apropriariam de uma fortuna, mas não encontraram praticamente nada. Perry era um sonhador. Cresceu de uma forma conturbada e violenta, e achava que a vida lhe tinha dado golpes injustos. Dick, considerado o cérebro da dupla, queria apenas arrebatar o dinheiro e desaparecer. Presos e condenados, ambos morreram na forca em 1965.
A intensa relação que Capote estabeleceu com as suas fontes foi determinante para o êxito da obra. Além de passar mais de um ano na região de Holcomb, investigando e conversando com moradores, aproximou- se dos criminosos e conquistou a sua confiança. Traçou um perfil humano e eloquente dos dois «meninos», como costumava chamar-lhes.
Cris
“As Pequenas Memórias”, José Saramago, 2006
Há alguns anos que não leio nada de José Saramago, o que significa que quebrei o meu compromisso de ler um livro deste autor todos os anos, para ver se consigo ler toda a sua vasta obra. Assim, peguei n’ ”As Pequenas Memórias”, numa edição da Caminho de 2006, para me redimir do atraso.
Começa com a sua Azinhaga, quando menino. Mas rapidamente as memórias de infância levam-nos a Lisboa, para onde a família foi viver na Primavera de 1924. Em Lisboa e ao longo de 10 anos, ele, os pais e o irmão Francisco que viria a morrer na véspera de Natal de 1924, iriam viver em dez casas diferentes, partilhando casas com outros casais, como os Baratas.
José Saramago tinha tido a ideia de escrever este livro e chamar-lhe “O Livro das Tentações”, mas acabou por lhe chamar “As Pequenas Memórias”, por serem “ as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente” (p. 38) É um pequeno livro, que se lê rapidamente e com prazer, porque é divertido e cheio de graça. Saramago fala dos pais, dos avós paternos e maternos, dos primos, dos vizinhos, dos colegas de escola, das descobertas, dos sonhos, dos medos, das lembranças mais remotas até aproximadamente à idade dos vinte anos.
São recordações de infância, momentos como o assombro da visão da luz da Lua numa madrugada que vai persistir na memória como uma paisagem única e inesquecível, o rio Almonda da sua aldeia, as pessoas marcantes no seu percurso. Escreve sobre as paixonetas de juventude, as descobertas sexuais precoces, as marotices da idade, os desastres que deixam cicatrizes, a descoberta de outros contextos sociais muito diferentes do da sua família que tem de compartilhar uma casa com outras famílias… Enfim, são flashes onde a ingenuidade e a ternura nos remetem para a epígrafe da contracapa do livro – “Deixa-te levar pela criança que foste” – retirada de “O Livro dos Conselhos”.
Explica-nos por que se chama Saramago e não apenas José de Sousa (p. 48) e, embora erradamente por vezes se diga que o seu nascimento foi a 18, de facto, ele nasceu a 16 de Novembro de 1922 (p.51). Apesar dos seus problemas de dislexia “calsse; sacanavense”…, a verdade é que a sua aprendizagem autónoma da leitura através do “Diário de Notícias” que o pai trazia (p. 98) deixou todos estupefactos. Recorda a escolinha na Morais Soares onde aprendeu a desenhar as primeiras letras numa pedra. “A Toutinegra do Moinho”, o único livro que havia lá em casa (p.99), foi a sua primeira experiência de leitor, embora reconheça não se lembrar de nada do que lá estava, ao contrário de “Maria, a Fada dos Bosques”, um daqueles romances em fascículos então na moda, que eram lidos por uma vizinha à mãe analfabeta e a ele ainda muito criança. Na escola destacou-se na leitura e na escrita e também fez um brilharete com o Francês. Fez dois anos no Liceu Gil Vicente e depois seguiu para a Escola Industrial de Afonso Domingues em Xabregas, porque os recursos dos pais não permitiam um percurso liceal como estava destinado aos meninos com outras posses.
Nestas “As Pequenas Memórias”, Saramago quer tirar do olvido certas pessoas que viveram pouco tempo como o seu irmão Francisco que morreu com 4 anos, ou o primo José Dinis, com quem andava permanentemente à bulha. De forma comovente, os avós maternos estão muito presentes neste livro de memórias. O avô Jerónimo “ um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável” (p. 129), pressentiu o fim poucos dias antes de morrer e foi “de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer” (p.130). E a avó Josefa a quem ouviu dizer, tinha ela noventa anos, “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer” (p. 131). Os avós maternos que, nas noites de frio, iam à pocilga buscar os bacorinhos mais frágeis e os deitavam na sua própria cama.
Este livro é de facto diferente de todos os que li até agora de José Saramago e não quero terminar este meu texto sem transcrever aqui o primeiro poema que ele escreveu, destinado a Ilda Reis com quem casou aos 22 anos. Saramago, que gostava de ir a casa do vizinho Chaves, pintor na Viúva Lamego, pediu-lhe que pintasse este poema num prato de cerâmica em forma de coração para oferecer à sua apaixonada:
“Cautela
que ninguém ouça
O segredo que te digo:
Dou-te um coração de louça
Porque o meu anda contigo.” (p. 54)
Notas:
Terminei este livro, exactamente no dia em que José Saramago, em 1998 recebeu o Prémio Nobel da Literatura.
Também neste dia assisti a um impressionante espectáculo de Dança pela Companhia de Dança Contemporânea de Évora em torno do “Ensaio sobre a Cegueira”, no Auditório Municipal do Seixal. Tal como com o livro, é impossível ficar indiferente depois de ver aqueles três bailarinos a actuar.
8 de Outubro de 2022
Almerinda Bento
Este é o link para o post onde se encontra anunciado o passatempo.
Assim, através do Random.Org, de todos os comentários efectuados nesse mês, foi seleccionado uma vencedora! Foi ela:
Alexandra Guimarães
Parabéns! Terás que comentar este post e enviar um email para otempoentreosmeuslivros@gmail.com até ao próximo dia 25, com os teus dados e escolher um de entre estes dois livros:
Cris
Quem não ouviu esta frase - Mãe, ainda não posso ir dormir! - ponha o dedo no ar!
Um livro muito divertido, que retrata com assertividade todas as invenções que as crianças arranjam para prolongar o seu dia! E o nosso...
E já vos disse que adoro as ilustrações de Paulo Galindro? São ma-ra-vi-lho-sas!
Cris
Aposto que muitos de vocês nunca ouviram falar de Carlos Campaniço! Ou, pelo menos, não da forma que ele merece! A sua escrita remete-nos para ambientes rurais, nossos, e uma das suas obras possui um toque de realismo mágico. Depois de se entrar nesses mundos é difícil de lá sair. Aconteceu-me isso em "Os Demónios de Álvaro Cobra" (ver opjnião aqui).
Neste "Velhos Lobos", o realismo mágico não está presente. Presente está a escrita viciante de Campaniço, as histórias de vizinhos rivais, os ódios intemporais de famílias que lado a lado vivem anos de guerras que parecem não ter fim. E a solidão. Uma solidão profunda, marcada pela quase inexistente vida social, que parece instalada no dia a dia dessas gentes.
Algures no Alentejo, num tempo em que os automóveis não povoavam os lugares, de contrabandistas e refugiados espanhóis a monte, de telegramas que anunciavam as boas novas, sobretudo as más, duas famílias partilham ódios profundos e amores estranhos.
A família Velho e a familia Lobo - uma pobre, outra rica - que, piores que velhos lobos, se atiçam com quesílias toda uma vida e passam aos seus descendentes esse desamor, esses ciúmes e esse ódio que sentem uma pela outra e que é vivido também dentro de cada família.
Vale tanto a pena conhecer os segredos que estão por detrás destas duas famílias! Que amores se escondem dentro desses ódios?
Terminado em 17 de Setembro de 2022
Estrelas: 5*
Sinopse
Quando Francisco d'Almeida Lobo decide passar a viver o ano inteiro no Monte do Azinhal para cuidar pessoalmente da propriedade, ignora que a presença da família Velho no Montinho lhe vai criar tensões impossíveis de ultrapassar. Primeiro, porque Jacinto Velho se recusa a dar-lhe uma mão; depois, porque descobre que a mulher dele não é senão Maria Barnabé, com quem teve uma história longe de estar resolvida. Os ânimos, porém, só ficarão ao rubro quando – contra a vontade do pai – o primogénito dos Velho lhe pedir trabalho…
No mesmo espaço agreste, debaixo do mesmo sol escaldante, duas famílias distintas em tudo vivem um litígio insanável. Em comum, têm apenas o amor e o ódio e uma solidão que parece não ter cura.
Será que algum dia conseguirão sobreviver a uma vizinhança tão declaradamente hostil?
Depois do realismo mágico de Os Demónios de Álvaro Cobra, do virtuosismo de Mal Nascer e da comédia de enganos que é o romance As Viúvas de D. Rufia, Carlos Campaniço regressa com uma ficção desafiante que nos faz pensar como a vida social e a civilidade são absolutamente essenciais ao equilíbrio dos seres humanos.
Cris
“À Procura da Manhã Clara”, Ana Cristina Silva, 2022
Desde que li pela primeira vez o livro “O Rei do Monte Brasil” de Ana Cristina Silva, nunca mais deixei de acompanhar a sua produção literária. Fascina-me a sua capacidade de caracterização das personagens e o modo como organiza as suas narrativas, conseguindo criar uma empatia perfeita com o leitor.
Em “À Procura da Manhã Clara”, a narrativa é entremeada por cartas de Annie Silva pais, filha do último director da PIDE, dirigidas a diferentes pessoas. Logo no Prólogo, Annie estabelece a diferença entre a mãe que anotava na sua pequena agenda “coisas verdadeiramente ridículas” (pág. 11), e ela que desde sempre escreveu cartas “para exorcizar os sofrimentos de infância” (pág. 12). Amarfanhava-as, deitava-as fora e depois disso era capaz de sorrir. Mais tarde, já adulta, escreveu várias cartas aos pais, aos amores, aos amigos, mas nunca as enviou: “Nessas cartas jogava mais audaciosamente com a verdade e por isso mesmo nunca as enviei.” (pág. 13). Guardou-as numa caixa de sapatos e, ao relê-las, perto da morte, descobriu “quem tinha sido verdadeiramente” (pág. 13). Na última carta, dirigida a Che, Annie escreve “Estas cartas nunca enviadas retratam-me melhor do que todos os discursos por mim proferidos.” (pág. 273).
Annie é uma mulher idealista, apaixonada, com uma profunda ânsia de liberdade que sufoca numa relação de absoluto antagonismo com a mãe e com o regime retrógrado, conservador e opressivo da ditadura. Se o antagonismo entre filha e mãe não lhes dá azo a qualquer laivo de amor filial e maternal, tal não acontece na sua relação com o pai, cheia de sentimentos ambíguos, por estarem ideologicamente em lados opostos. Se a antipatia pela mãe tem a ver com um ideal de vida baseado nas aparências e na futilidade, saber que o pai, que sempre fora o seu herói, é o responsável pelo aparelho repressivo que persegue, tortura e mata, causa-lhe um imenso desgosto.
Portugal é um país triste e pobre, de mulheres sofridas, vestidas de negro, de olhos baixos, subjugadas e submissas. D. Nita, a mãe de Annie, é o símbolo da mulher da elite ligada ao poder, fútil e inclemente, minuciosamente caracterizada na sua vacuidade ao longo do livro, quer nos momentos em que está em alta, quer em situações como quando vai para a prisão ou quando é confrontada com a necessidade de apoiar a filha gravemente doente.
Os sentimentos altruístas e de apego à revolução cubana por parte de Annie, materializados na sua paixão por Che e pelos heróis da Sierra Maestra, no espírito de sacrifício em prol do colectivo e no seu empenhamento profissional nas missões em que participa como tradutora e intérprete, permanecem vivos até ao fim. Os desencontros amorosos, a degradação do rumo político a que aspirava em Portugal e no mundo, a morte do pai, as traições no país que escolheu para viver e a sua doença tornam Annie uma figura trágica e solitária, que a autora tão bem retrata.
Nota: Quando terminei a leitura das quase trezentas páginas do livro, voltei ao princípio e reli todas as cartas que Annie nunca enviou e que guardou na caixa de sapatos.
30 de Setembro de 2022
Almerinda Bento