“À Procura da Manhã Clara”, Ana Cristina Silva, 2022
Desde que li pela primeira vez o livro “O Rei do Monte Brasil” de Ana Cristina Silva, nunca mais deixei de acompanhar a sua produção literária. Fascina-me a sua capacidade de caracterização das personagens e o modo como organiza as suas narrativas, conseguindo criar uma empatia perfeita com o leitor.
Em “À Procura da Manhã Clara”, a narrativa é entremeada por cartas de Annie Silva pais, filha do último director da PIDE, dirigidas a diferentes pessoas. Logo no Prólogo, Annie estabelece a diferença entre a mãe que anotava na sua pequena agenda “coisas verdadeiramente ridículas” (pág. 11), e ela que desde sempre escreveu cartas “para exorcizar os sofrimentos de infância” (pág. 12). Amarfanhava-as, deitava-as fora e depois disso era capaz de sorrir. Mais tarde, já adulta, escreveu várias cartas aos pais, aos amores, aos amigos, mas nunca as enviou: “Nessas cartas jogava mais audaciosamente com a verdade e por isso mesmo nunca as enviei.” (pág. 13). Guardou-as numa caixa de sapatos e, ao relê-las, perto da morte, descobriu “quem tinha sido verdadeiramente” (pág. 13). Na última carta, dirigida a Che, Annie escreve “Estas cartas nunca enviadas retratam-me melhor do que todos os discursos por mim proferidos.” (pág. 273).
Annie é uma mulher idealista, apaixonada, com uma profunda ânsia de liberdade que sufoca numa relação de absoluto antagonismo com a mãe e com o regime retrógrado, conservador e opressivo da ditadura. Se o antagonismo entre filha e mãe não lhes dá azo a qualquer laivo de amor filial e maternal, tal não acontece na sua relação com o pai, cheia de sentimentos ambíguos, por estarem ideologicamente em lados opostos. Se a antipatia pela mãe tem a ver com um ideal de vida baseado nas aparências e na futilidade, saber que o pai, que sempre fora o seu herói, é o responsável pelo aparelho repressivo que persegue, tortura e mata, causa-lhe um imenso desgosto.
Portugal é um país triste e pobre, de mulheres sofridas, vestidas de negro, de olhos baixos, subjugadas e submissas. D. Nita, a mãe de Annie, é o símbolo da mulher da elite ligada ao poder, fútil e inclemente, minuciosamente caracterizada na sua vacuidade ao longo do livro, quer nos momentos em que está em alta, quer em situações como quando vai para a prisão ou quando é confrontada com a necessidade de apoiar a filha gravemente doente.
Os sentimentos altruístas e de apego à revolução cubana por parte de Annie, materializados na sua paixão por Che e pelos heróis da Sierra Maestra, no espírito de sacrifício em prol do colectivo e no seu empenhamento profissional nas missões em que participa como tradutora e intérprete, permanecem vivos até ao fim. Os desencontros amorosos, a degradação do rumo político a que aspirava em Portugal e no mundo, a morte do pai, as traições no país que escolheu para viver e a sua doença tornam Annie uma figura trágica e solitária, que a autora tão bem retrata.
Nota: Quando terminei a leitura das quase trezentas páginas do livro, voltei ao princípio e reli todas as cartas que Annie nunca enviou e que guardou na caixa de sapatos.
30 de Setembro de 2022
Almerinda Bento
Gostava muito de ler este livro. Há poucos dias, numa saída com a minha irmã, vi-o numa livraria e chamei-lhe a atenção para o livro. Só falta mesmo vir parar às minhas estantes :)
ResponderEliminarFiquei a conhecer a história da Annie há uns anos numa reportagem do Expresso. Já estava com vontade de ler este livro, e agora ainda fiquei com mais.
ResponderEliminarComo complemento, aconselho a série "Cuba Livre" às quartas-feiras, 21h na rtp1. Gostei muito dos dois episódios que vi.
Boas leituras! 📚
Boa dica!
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