É bonito este livro. Embora não seja habitual nas minhas escolhas este género de livros (Poemas? Pequenas relexões?) sendo do AC, como costumamos dizer num dos grupos de leitura a que pertenço, foi com agrado que peguei nele e comecei a ler.
O AC sabe brincar com as palavras, que brotam deste livro (como cogumelos?), e é delicioso saborear as pequenas frases cheias de profundidade, às vezes engraçadas mas sempre com um segundo sentido. Não é para ser lido rapidamente porque se perderiam os pormenores. Por essa razão, intercalei com outro.
A mensagem que está por detrás das palavras e que o título traduz um pouco, é enorme. Um pequeno gesto de amor pode desencadear um mundo de amor, em mudança, em movimento. Um pequeno gesto de indiferença, de desamor, pode chegar bem longe e contaminar a terra inteira.
Fisicamente o livro também é belo. Pequeno, capa dura, com desenhos ilustrados pelo autor.
Embora não sendo um tipo de leitura habitual em mim, e talvez por isso não saiba dar o valor merecido, este livro tocou-me verdadeiramente porque algumas passagens são belíssimas.
Terminado em 26 de Dezembro de 2019
Estrelas: 4*+
Sinopse
Da narradora d’O LIVRO DO ANO, aquela menina que carrega um jardim na cabeça e atira palavras aos pombos, chega-nos um novo diário com os seus pensamentos, inquietações, experiências e os sonhos de melhorar o mundo através de pequenos gestos ou actos heroicos, atacando o absurdo com o absurdo e a noite com canteiros de flores. Páginas feitas de inusitada poesia, para leitores de todos os feitios. Até os normais
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terça-feira, 31 de dezembro de 2019
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
"O Arquipélago do Cão" de Philippe Claudel
Quase a terminar este ano de leituras com um autor que descobri recentemente e pelo qual me apaixonei. Pela sua escrita, claro está! Este é o terceiro livro que leio dele e a opinião mantém-se: a sua escrita é maravilhosa, cheia de mistério, intenções não declaradas à primeira vista, referências directas e indirectas a problemas mundiais actuais, de resolução urgente.
Fico presa às suas histórias, aos seus enredos quase macabros, aos seus personagens profundos, reveladores dos defeitos e qualidades do ser humano. Existem parágrafos que mereciam uma atenção redobrada não fora a impaciência que se apodera de mim e que me leva a desejar saber o final que antevejo espectacular.
O autor cria uma atmosfera estranha, imbuída de mistério. O leitor sente-a e, em todas as páginas, o presságio de acontecimentos misteriosos, levam-no a estar num estado de alerta permanente. Para além desse ambiente, caracterizado com mestria, Claudel sabe falar-nos dos sentimentos humanos, daqueles que desejamos esconder porque feios e sujos.
Numa ilha sombria e quente, onde um vulcão ameaça vomitar a qualquer instante, três corpos vêm dar à praia. Que fazer quando está em jogo um empreendimento termal que pode assegurar um futuro próspero à ilha e aos seus habitantes?
Sem dúvida alguma o meu autor de 2019. Philippe Claudel. Que 2020 me traga mais livros dele!
Terminado a 22 de Dezembro de 2019
Estrelas: 6*
Sinopse
«A história que ides ler é tão real como vós o sois. Passa-se aqui, tal como teria podido desenrolar-se ali. Seria demasiado cómodo pensar que aconteceu noutro lugar. Os nomes dos seres que a povoam pouco importam. Poderiam ser alterados. Pôr os vossos no lugar deles. Assemelhais-vos tanto, procedendo do mesmo molde inalterável. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, fareis a vós próprios uma pergunta legítima: terá ele sido testemunha do que nos conta? A minha resposta é: sim, fui testemunha disso. Tal como vós o fosteCriss, mas não quisestes ver.»
Três cadáveres de homens negros dão à praia, numa pequena ilha perdida do arquipélago do Cão. Dominados pela força divina do vulcão Brau, as gentes do Cão vivem da pesca, da agricultura, da vinha. Todos se conhecem. Que fazer com aqueles corpos? Philippe Claudel, com mão de mestre, escreve uma história notável, uma negra parábola sobre o cinismo, a indiferença e a apatia moral que invade o nosso tempo, tendo como pano de fundo a tragédia das migrações mediterrâneas de hoje.
Cris
Fico presa às suas histórias, aos seus enredos quase macabros, aos seus personagens profundos, reveladores dos defeitos e qualidades do ser humano. Existem parágrafos que mereciam uma atenção redobrada não fora a impaciência que se apodera de mim e que me leva a desejar saber o final que antevejo espectacular.
O autor cria uma atmosfera estranha, imbuída de mistério. O leitor sente-a e, em todas as páginas, o presságio de acontecimentos misteriosos, levam-no a estar num estado de alerta permanente. Para além desse ambiente, caracterizado com mestria, Claudel sabe falar-nos dos sentimentos humanos, daqueles que desejamos esconder porque feios e sujos.
Numa ilha sombria e quente, onde um vulcão ameaça vomitar a qualquer instante, três corpos vêm dar à praia. Que fazer quando está em jogo um empreendimento termal que pode assegurar um futuro próspero à ilha e aos seus habitantes?
Sem dúvida alguma o meu autor de 2019. Philippe Claudel. Que 2020 me traga mais livros dele!
Terminado a 22 de Dezembro de 2019
Estrelas: 6*
Sinopse
«A história que ides ler é tão real como vós o sois. Passa-se aqui, tal como teria podido desenrolar-se ali. Seria demasiado cómodo pensar que aconteceu noutro lugar. Os nomes dos seres que a povoam pouco importam. Poderiam ser alterados. Pôr os vossos no lugar deles. Assemelhais-vos tanto, procedendo do mesmo molde inalterável. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, fareis a vós próprios uma pergunta legítima: terá ele sido testemunha do que nos conta? A minha resposta é: sim, fui testemunha disso. Tal como vós o fosteCriss, mas não quisestes ver.»
Três cadáveres de homens negros dão à praia, numa pequena ilha perdida do arquipélago do Cão. Dominados pela força divina do vulcão Brau, as gentes do Cão vivem da pesca, da agricultura, da vinha. Todos se conhecem. Que fazer com aqueles corpos? Philippe Claudel, com mão de mestre, escreve uma história notável, uma negra parábola sobre o cinismo, a indiferença e a apatia moral que invade o nosso tempo, tendo como pano de fundo a tragédia das migrações mediterrâneas de hoje.
Cris
sábado, 28 de dezembro de 2019
sexta-feira, 27 de dezembro de 2019
"Última Paragem: Auschwitz" de Eddy de Wind
Pode parecer que este é mais um livro sobre Auschwitz e os horrores que lá se viveram. Não é! Este livro foi escrito pelo autor depois da libertação do campo e nos meses que se seguiram e em que Eddy permaneceu lá, ajudando no que podia como médico.
Em certos aspectos lembrou-me o "Se isto é um homem" de Primo Levy porque o tom da narrativa é semelhante: embora descreva horror atrás de horror, Eddy fala dos acontecimentos num tom frio, quase ausente. Quem for da área do comportamento humano saberá, certamente, analisar a questão e explicá-la. O leitor fica incomodado mas lê o que é narrado de uma forma desprendida, quase como se os factos fossem irreais. Não são, não foram, infelizmente!
Creio que, como leitora, não poderia ler este livro de forma diferente da referida anteriormente e, embora uma parte do meu cérebro tentasse visualizar o que lia, outra tentava não o fazer. As imagens não seriam agradáveis de todo e poderiam impedir-me de continuar...
Eddy e a esposa sobreviveram. Foram dos poucos que, por diversas vezes conseguiram manter contacto um com o outro durante os dois anos que estiveram em Auschwitz e, a maior parte das vezes, conseguiram sobreviver por uma questão de sorte. Um jogo de sorte ou azar. Era nisso que dependia a vida daquelas milhares de pessoas aprisionadas.
Eddy e Friedel sobreviveram. Mas quando o livro foi escrito, Eddy não sabia que Friedel sobrevivera também. Pena que não se conheça o seu percurso depois de ter sido forçada a sair do campo na hoje conhecida "marcha da morte". Juntar os dois relatos teria sido fantástico. No posfácio matamos a nossa curiosidade sobre aquilo que se sabe da vida de Eddy após os seus anos em Auschwitz. É por demais importante conhecer a forma como alguém conseguiu levar a sua vida para a frente, como foram tratados os sobreviventes quando chegaram a "casa", como o forte desejo de reconstrução impediu a ajuda correcta desses sobreviventes e como todos queriam esquecer o que se tinha passado. O horror vivido por muitos e o consequente desejo de recomeçar, a falta de informação que grassava nessa época, levaram a que não se desse a devida atenção a relatos semelhantes a este.
No entanto, o desejo de recomeçar a vida deixada para trás não impediu que muitos sobreviventes do Holocausto quisessem contar/escrever para não esquecer e para que o mundo soubesse o que se tinha passado por detrás dos muros.
Este livro é um relato histórico de uma parte negra da História. Não é para ser esquecido.
Terminado em Dezembro de 2019
Estrelas: 5*+
Sinopse
Em certos aspectos lembrou-me o "Se isto é um homem" de Primo Levy porque o tom da narrativa é semelhante: embora descreva horror atrás de horror, Eddy fala dos acontecimentos num tom frio, quase ausente. Quem for da área do comportamento humano saberá, certamente, analisar a questão e explicá-la. O leitor fica incomodado mas lê o que é narrado de uma forma desprendida, quase como se os factos fossem irreais. Não são, não foram, infelizmente!
Creio que, como leitora, não poderia ler este livro de forma diferente da referida anteriormente e, embora uma parte do meu cérebro tentasse visualizar o que lia, outra tentava não o fazer. As imagens não seriam agradáveis de todo e poderiam impedir-me de continuar...
Eddy e a esposa sobreviveram. Foram dos poucos que, por diversas vezes conseguiram manter contacto um com o outro durante os dois anos que estiveram em Auschwitz e, a maior parte das vezes, conseguiram sobreviver por uma questão de sorte. Um jogo de sorte ou azar. Era nisso que dependia a vida daquelas milhares de pessoas aprisionadas.
Eddy e Friedel sobreviveram. Mas quando o livro foi escrito, Eddy não sabia que Friedel sobrevivera também. Pena que não se conheça o seu percurso depois de ter sido forçada a sair do campo na hoje conhecida "marcha da morte". Juntar os dois relatos teria sido fantástico. No posfácio matamos a nossa curiosidade sobre aquilo que se sabe da vida de Eddy após os seus anos em Auschwitz. É por demais importante conhecer a forma como alguém conseguiu levar a sua vida para a frente, como foram tratados os sobreviventes quando chegaram a "casa", como o forte desejo de reconstrução impediu a ajuda correcta desses sobreviventes e como todos queriam esquecer o que se tinha passado. O horror vivido por muitos e o consequente desejo de recomeçar, a falta de informação que grassava nessa época, levaram a que não se desse a devida atenção a relatos semelhantes a este.
No entanto, o desejo de recomeçar a vida deixada para trás não impediu que muitos sobreviventes do Holocausto quisessem contar/escrever para não esquecer e para que o mundo soubesse o que se tinha passado por detrás dos muros.
Este livro é um relato histórico de uma parte negra da História. Não é para ser esquecido.
Terminado em Dezembro de 2019
Estrelas: 5*+
Sinopse
Em 1942, o médico judeu Eddy de Wind apresentou-se como voluntário para trabalhar em Westerbork, um campo de trânsito de judeus, no este dos Países Baixos, onde conheceu Friedel, uma jovem enfermeira. Os dois apaixonam-se e casam. Em 1943, foram deportados para Auschwitz num comboio de mercadorias e são separados, indo Eddy para o Block 9 e Friedel para o 10, onde se realizavam experiências médicas.
Quando os russos se começam a aproximar de Auschwitz, no Outono de 1944, os nazis decidiram apagar os seus vestígios e foi ordenado aos prisioneiros, entre os quais se encontrava Friedel, recuar até ao interior da Alemanha, no que se conheceria depois como «marchas da morte». Eddy, pelo contrário, escondeu-se e ficou em Auschwitz, onde encontrou um lápis e um caderno e começou a escrever.
Esta é a sua história.
Eddy de Wind escreveu um doloroso e comovedor relato dos horrores no campo, analisa e observa o comportamento das pessoas - tanto boas como más - e o que são capazes de fazer.
Descreve Auschwitz como nunca antes havia sido descrito.
Do interior e com a profunda impressão desse momento.
Cris
Quando os russos se começam a aproximar de Auschwitz, no Outono de 1944, os nazis decidiram apagar os seus vestígios e foi ordenado aos prisioneiros, entre os quais se encontrava Friedel, recuar até ao interior da Alemanha, no que se conheceria depois como «marchas da morte». Eddy, pelo contrário, escondeu-se e ficou em Auschwitz, onde encontrou um lápis e um caderno e começou a escrever.
Esta é a sua história.
Eddy de Wind escreveu um doloroso e comovedor relato dos horrores no campo, analisa e observa o comportamento das pessoas - tanto boas como más - e o que são capazes de fazer.
Descreve Auschwitz como nunca antes havia sido descrito.
Do interior e com a profunda impressão desse momento.
Cris
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Para os Mais Pequeninos: 101 Histórias do Tio Julião Para Fazer OÓ
Hoje trago-vos um livro que pode destinar-se a pequeninos e grandinhos. Pequeninos porque serve perfeitamente para livro "antes de adormecer", com as suas curtas histórias e grandinhos (seis, sete anos) porque aqueles que estão a aprender a ler irão ficar maravilhados com essas mesmas histórias porque, para além de pequenas, elas são apelativas e divertidas também!
Como referi são histórias pequenas, de no máximo 2 páginas, cheias de bicharada divertida, de jogos de palavras engraçados, de personagens criados com muita imaginação!
Um livro cheio de imagens coloridas, alegres e que dispõe bem. E que ensina também! Que tal escolher uma história ao calhas e surpreender os mais pequeninos? 101 histórias para 101 dias, momentos de ternura antes de adormecer!
Deixo-vos com algumas fotos que comprovam o que digo:
Como referi são histórias pequenas, de no máximo 2 páginas, cheias de bicharada divertida, de jogos de palavras engraçados, de personagens criados com muita imaginação!
Um livro cheio de imagens coloridas, alegres e que dispõe bem. E que ensina também! Que tal escolher uma história ao calhas e surpreender os mais pequeninos? 101 histórias para 101 dias, momentos de ternura antes de adormecer!
Deixo-vos com algumas fotos que comprovam o que digo:
Cris
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
A Escolha do Jorge: "O Senhor"
O Senhor
de Miljenko Jergović
“Antigamente,
ao longo de Sepetarovac, carreteiros levavam às costas canastras
cheias de mercadorias, até aos armazéns de Bjelava e às lojas de
Pothrastovi. Durante séculos subiam por essa rua infinitamente
íngreme para, mesmo lá no alto, serem acolhidos por uma bica
debaixo do jorro da qual encontravam o refrigério e a esperança de
que um dia esse monte cedesse debaixo do peso do seu sofrimento. A
bica foi, em tempos remotos, já ninguém se recorda quando,
construída por um rei para fazer bem às pessoas e para que isso lhe
fosse reconhecido no outro mundo. A sua água nunca secou, nem no
tempo em que os carreteiros foram substituídos por camiões, e em
que ficou apenas o nome da rua para evocar as suas canastras.
O
Senhor Ivo tem vivido quase toda a sua vida perto do fundo da
Sepetarovac, mas tanto para si próprio como para todos os demais
continuou a ser o Senhor de Dubrovnik. As rosas do seu jardim eram
mais robustas do que as outras, o caminho de pedra sempre limpo e a
sua saudação
exactamente tão cordial como devia sê-lo, nem íntima demais como a do povo da Baixa, nem distante como a dos senhores cidadãos novos-ricos.
exactamente tão cordial como devia sê-lo, nem íntima demais como a do povo da Baixa, nem distante como a dos senhores cidadãos novos-ricos.
No
início do Outono de 1991, depois do ataque dos tchetniks
a Dubrovnik, o Senhor Ivo comprou cinco galinhas e um galo, arrancou
as rosas e cavou a terra e ainda encontrou no jardim um antigo poço
enterrado. Limpou-o, pôs-lhe cascalho e rodeou-o de finas pedras
brancas. Os vizinhos sabiam o que tinha na ideia, mas mesmo assim
custava-lhes meter na cabeça que alguém pudesse ter pensamentos tão
negros e que um senhor se pudesse transformar num trabalhador
enlameado e num camponês disposto a aguentar o fedor das galinhas.
-
Deixa lá, se acontecer algo, Deus não o permita, eu estou
preparado, e se não acontecer, diverti-me muito. Há trinta anos que
vivo entre rosas, e não vá por acaso morrer sem sentir em que é
que elas diferem das galinhas.
O
início da guerra encontrou-o com uma excelente colheita de tomate e
alface e os primeiros cortes de água com a límpida e fresca água
do poço. Com o passar do tempo, o alegre cacarejo parecia à
vizinhança, o canto das aves do paraíso, era o som que do mundo das
trevas te guia à luz do dia.
-
Um senhor é sempre um senhor, e canalha é canalha, e não há nada
a fazer. Ontem víamo-lo entre rosas e pensávamos - «olha, chegou
um senhor de Dubrovnik», e hoje, lá está, em caca de galinhas, e
continua o mesmo senhor.
Mas
quando uma vez a água da torneira não veio durante dez dias e mesmo
a bica do alto de Sepetarovac secou, os vizinhos, com baldes nas
mãos, pela primeira vez bateram na janela de Ivo. Ele tirou-lhes
água, e eles, claro, fizeram correr a boa nova pelo bairro. No dia
seguinte já se juntaram diante da casa de Ivo umas cinquenta
pessoas, ele atendeu-as, mas vieram mais cinquenta. Para não
enturvar o poço ninguém podia tirar a água sozinho.
Depois
de uns quantos dias, o Senhor Ivo pendurou um aviso na porta:
«Estimados vizinhos, o horário do poço é das 10 às 12 e das 16
às 18. Fora dessas horas não tenho possibilidade de vos atender.»
Diante da casa estendeu-se uma fila longa e excepcionalmente bem
ordenada, Ivo deixava entrar três aguadeiros de cada vez, ninguém
protestava nem sequer falava um pouco mais alto. As normas de
comportamento tinham de ser respeitadas como na mesquita ou na
igreja. Os incautos eram avisados, quer por Ivo, quer pelas pessoas
da fila, de que tinham vindo à água e não ao café, e que se
deviam comportar em conformidade.
Nos
dias em que havia grandes bombardeamentos ou quando soprava o siroco,
o Senhor ficava um pouco nervoso, mas as pessoas tentavam pô-lo
bem-humorado com olhares, perguntas de cortesia e pequenos gestos de
atenção. Às vezes conseguiam-no, mas outras Ivo comportava-se como
um nobre altivo; choviam observações irónicas, repreensões sem
motivo, até mesmo insultos. Mas jamais negou a água a alguém.
Quando
os ventos do sul, e também os tchetniks,
se acalmavam, o Senhor voltava a ser o de sempre; emanava dignidade
quer quando estava assim dobrado sobre o poço, quer quando o suor
lhe escorria pela cara, quer quando lhe dava a fraqueza e tinha de se
sentar por uns cinco minutos.
Nas
alturas em que o abastecimento público de água voltava a funcionar
o Senhor Ivo podia suspirar de alívio. Nesses dias ninguém o
mencionava, nem lhe batia à porta. Era preciso deixar o homem
descansar um pouco da gente. E não esquecer que voltarias a ele,
feliz por teres nascido debaixo de uma estrela boa e por não teres
de caminhar até à bica municipal junto à Cervejaria para onde os
tchekniks
de quando em quando mandavam granadas.
Na
véspera de Natal, o Senhor Ivo informou o povo de que, no dia
seguinte, a título excepcional, não iria trabalhar porque, para
ele, era um dia de festa, mas que em troca permaneceria junto do poço
na véspera. No dia santo os aguadeiros trouxeram presentes. Pitas,
baklavas, jarros de quefir feito com leite em pó, pequenos
embrulhinhos de café moído, um jovem até conseguiu um maço de
Croatia
com filtro, o que comoveu particularmente Ivo.
O
primeiro dia depois do Natal foi como todos os outros. De um lado,
uma longa fila de homens, mulheres e crianças com baldes, e do
outro, Ivo com os olhos pregados no fundo do poço. Para um bairro de
Sarajevo, na sua limpidez estava recolhida toda a bondade deste
mundo. O Senhor encheria todos os baldes e os fregueses teriam depois
de subir a encosta com eles.
-
Todos os dias, quando acarreto a água, lembro-me de Cristo e do seu
Calvário. Penso se é possível que o Calvário fosse sempre a
subir, ou se seria um pouco a subir, e um pouco a descer – dizia a
minha mãe a uma muçulmana, carregando-lhe às costas mais essa
preocupação.”
Cavalo de
Ferro
1ª edição, 2004
pp. 35-38
Texto escolhido por Jorge Navarro
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
A Convidada Escolhe: "A Um Deus Desconhecido"
A um Deus Desconhecido, John Steinbeck, 1933
A escolha deste mês
do Clube de Leitura da Bertrand do Chiado recaiu em John Steinbeck e
na sua obra. De entre os muitos títulos deste autor que recebeu o
Prémio Nobel da Literatura em 1962, a ideia era trazer a diversidade
dos temas a partir das escolhas que cada membro do clube decidisse
fazer. Daquilo que li em tempos remotos quando estudante de
Literatura Norte Americana, certamente constava Steinbeck, mas a
verdade é que qualquer lembrança se perdeu na memória. “A um
Deus Desconhecido” foi o que encontrei na minha biblioteca na zona
da literatura estrangeira e foi isso que partilhei na roda de
conversa do nosso clube.
Um livro
perturbador, em que o centro é a natureza, a terra e a relação dos
humanos com ela. Joseph Wayne é jovem e tem a ambição de ter terra
própria. Parte para oeste, para a Califórnia, onde há grandes
extensões de território à espera de quem lá se queira fixar.
Joseph deixa o pai por quem tem uma forte ligação e os três irmãos
e respectivas famílias. Escolhe para se estabelecer, construir casa
e criar raízes um largo vale verdejante e promissor, embora desde
logo o tenham alertado que nem sempre foi assim, visto ter havido em
tempos uma seca terrível que queimou e deixou tudo seco. Nesse vale
começa a construir próximo de um grande carvalho que, para ele,
corporiza o pai, como se o pai o habitasse. Essa sensação vai
tornar-se cada vez mais forte após a notícia da morte do pai. Chama
os irmãos para junto de si, desejoso de partilhar com eles o sonho
de poderem viver e partilhar aquela terra fértil. Sendo todos muito
diferentes, a figura de Joseph é, no entanto, central e respeitada,
porque comporta em si as semelhanças com a personalidade do
patriarca. Burton, obcecado pela religião, é sectário, moralista e
não aprova Joseph que considera estar dominado pelo diabo e ter
práticas pagãs pelo seu relacionamento com o carvalho. Thomas é
duro, frio, mas tem uma sensibilidade especial para se relacionar com
os animais da quinta. Benjamim leva a vida sem limites, escolheu
viver de forma irresponsável. Os irmãos são casados, têm mulheres
e filhos e Rama, mulher de Thomas, surge como figura feminina forte,
sendo a conversa que tem com Elizabeth ao descrever-lhe Joseph,
reveladora da centralidade de Joseph na família, que ela cosidera
estar mais perto dos deuses do que dos humanos.
“Ignoro se há
homens nascidos fora da Humanidade, ou se alguns deles são tão
humanos que fazem os outros parecer irreais. Talvez uma divindade
venha viver para a Terra, de vez em quando. O Joseph possui força
sob uma visão confusa, tem a calma das montanhas e as suas emoções
são tão selvagens, ferozes e vivas como os relâmpagos, e tão
destituídas de racionalidade quanto eu me possa ter apercebido.
Quando estiveres longe dele, tenta pensar nele e verás o que quero
dizer com isto. A sua figura crescerá até se tornar enorme, até
ser maior que as montanhas, e a sua força parecer-se-á com o
irresistivel impulso do vento. O Benjy morreu. Não se consegue
conceber o Joseph a morrer. Ele é eterno. O seu pai morreu e isso
não foi bem morrer. (…) Garanto-te que esse homem não é um
homem, a não ser que seja todos os homens. A força, a resistência,
o longo e laborioso raciocínio de todos os homens, e também toda a
alegria e sofrimento, anulando-se um ao outro e mantendo-se contudo
presentes. Ele é tudo isso., um repositório de um pedacinho de cada
alma humana e, mais que isso, um símbolo do espírito da Terra.”
A ameaça de uma possível seca, os receios da noiva de Joseph quando
atravessa o desfiladeiro a caminho da casa no vale, a energia
negativa que se sente na clareira rodeada por pinheiros, e o rochedo
coberto de musgo verde são os sinais de alerta que pairam ao longo
do romance. As lendas dos naturais da região, dos índios e dos
mexicanos que há muito habitam a região têm uma aura de mistério,
de superstição e fatalismo que não deixam de fazer prever algo de
funesto e imprevisível que fará quebrar o aparente equilíbrio e
estabilidade. A pujança da Natureza presente naquele vale e que se
reflecte nas colheitas fartas, nos estábulos cheios de feno e nos
animais domésticos que se reproduzem a bom ritmo, marca os ciclos da
vida e das estações ao longo de anos, bafejados pela abundância
vital da água. Até ao dia, quando se descobre que Burton havia
matado o carvalho antes de partir e abandonar o vale, em que a
desgraça vai cair no vale, nos animais, na família e em toda a
região. A partir de então é o declínio e a morte. Falta a água e
é o desespero. Joseph é a terra. Joseph é a Natureza. A morte é
inevitável.
Um livro repleto de
espiritualidade, onde a Natureza tem o papel central. Impressiona.
Mexe com quem o lê.
16 de Dezembro de
2019
Almerinda Bento
sábado, 21 de dezembro de 2019
Na Minha Caixa de Correio
Comprados:
Chernobil e Mataram a Cotovia
Oferta de uma amiga:
O Pecado de Porto Negro
Ofertados pela Planeta:
Nome de Código: Traição
A Fugitiva
sexta-feira, 20 de dezembro de 2019
Passatempo de Natal 2019 / Editorial Presença
Para mais informações sobre o passatempo, clique aqui.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
Para os Mais Pequeninos: O Pequeno Cavaleiro Que Combatia Monstros
O pequeno cavaleiro, protagonista desta história, encontrava-se morto de tédio porque nunca tivera oportunidade de colocar em prática os seus dotes guerreiros! Um dia, repentinamente, bateram-lhe à porta os pais de uns trigémeos que tinham sido raptados por um ogre, por uma bruxa e por um fantasma! Lá sai o pequeno cavaleiro para os salvar...
Cheio de aventuras e com muita cor, este livro vai encantar os mais pequeninos. Como pano de fundo uma história onde o amor, o carinho e a amizade podem transformar todos os seres. Sim, porque até os "maus" podem modificar-se!
Vejam as fotos:
Cris
quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
Experiências na Cozinha: Hamburguers de Grão e Beterraba
Não comecem já a dizer que não gostam de beterraba! Posso garantir-vos que aqui o seu sabor fica muito disfarçado porque o grão e os temperos possuem esse condão! Experimentem, congelem alguns para terem sempre à mão quando necessitarem e digam de vossa justiça o que acharam.
Não vos vamos falar, de novo, nos livros da Gabriela Oliveira. Somos fãs, já sabem. Escolhemos, então, estes hamburguers que ficaram supimpas e com muito bom aspecto. Deixamo-vos a receita e as fotos! Digam lá que não marchavam já...
Palmira e Cris
Não vos vamos falar, de novo, nos livros da Gabriela Oliveira. Somos fãs, já sabem. Escolhemos, então, estes hamburguers que ficaram supimpas e com muito bom aspecto. Deixamo-vos a receita e as fotos! Digam lá que não marchavam já...
Palmira e Cris
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