O Senhor
de Miljenko Jergović
“Antigamente,
ao longo de Sepetarovac, carreteiros levavam às costas canastras
cheias de mercadorias, até aos armazéns de Bjelava e às lojas de
Pothrastovi. Durante séculos subiam por essa rua infinitamente
íngreme para, mesmo lá no alto, serem acolhidos por uma bica
debaixo do jorro da qual encontravam o refrigério e a esperança de
que um dia esse monte cedesse debaixo do peso do seu sofrimento. A
bica foi, em tempos remotos, já ninguém se recorda quando,
construída por um rei para fazer bem às pessoas e para que isso lhe
fosse reconhecido no outro mundo. A sua água nunca secou, nem no
tempo em que os carreteiros foram substituídos por camiões, e em
que ficou apenas o nome da rua para evocar as suas canastras.
O
Senhor Ivo tem vivido quase toda a sua vida perto do fundo da
Sepetarovac, mas tanto para si próprio como para todos os demais
continuou a ser o Senhor de Dubrovnik. As rosas do seu jardim eram
mais robustas do que as outras, o caminho de pedra sempre limpo e a
sua saudação
exactamente tão cordial como devia sê-lo, nem íntima demais como a do povo da Baixa, nem distante como a dos senhores cidadãos novos-ricos.
exactamente tão cordial como devia sê-lo, nem íntima demais como a do povo da Baixa, nem distante como a dos senhores cidadãos novos-ricos.
No
início do Outono de 1991, depois do ataque dos tchetniks
a Dubrovnik, o Senhor Ivo comprou cinco galinhas e um galo, arrancou
as rosas e cavou a terra e ainda encontrou no jardim um antigo poço
enterrado. Limpou-o, pôs-lhe cascalho e rodeou-o de finas pedras
brancas. Os vizinhos sabiam o que tinha na ideia, mas mesmo assim
custava-lhes meter na cabeça que alguém pudesse ter pensamentos tão
negros e que um senhor se pudesse transformar num trabalhador
enlameado e num camponês disposto a aguentar o fedor das galinhas.
-
Deixa lá, se acontecer algo, Deus não o permita, eu estou
preparado, e se não acontecer, diverti-me muito. Há trinta anos que
vivo entre rosas, e não vá por acaso morrer sem sentir em que é
que elas diferem das galinhas.
O
início da guerra encontrou-o com uma excelente colheita de tomate e
alface e os primeiros cortes de água com a límpida e fresca água
do poço. Com o passar do tempo, o alegre cacarejo parecia à
vizinhança, o canto das aves do paraíso, era o som que do mundo das
trevas te guia à luz do dia.
-
Um senhor é sempre um senhor, e canalha é canalha, e não há nada
a fazer. Ontem víamo-lo entre rosas e pensávamos - «olha, chegou
um senhor de Dubrovnik», e hoje, lá está, em caca de galinhas, e
continua o mesmo senhor.
Mas
quando uma vez a água da torneira não veio durante dez dias e mesmo
a bica do alto de Sepetarovac secou, os vizinhos, com baldes nas
mãos, pela primeira vez bateram na janela de Ivo. Ele tirou-lhes
água, e eles, claro, fizeram correr a boa nova pelo bairro. No dia
seguinte já se juntaram diante da casa de Ivo umas cinquenta
pessoas, ele atendeu-as, mas vieram mais cinquenta. Para não
enturvar o poço ninguém podia tirar a água sozinho.
Depois
de uns quantos dias, o Senhor Ivo pendurou um aviso na porta:
«Estimados vizinhos, o horário do poço é das 10 às 12 e das 16
às 18. Fora dessas horas não tenho possibilidade de vos atender.»
Diante da casa estendeu-se uma fila longa e excepcionalmente bem
ordenada, Ivo deixava entrar três aguadeiros de cada vez, ninguém
protestava nem sequer falava um pouco mais alto. As normas de
comportamento tinham de ser respeitadas como na mesquita ou na
igreja. Os incautos eram avisados, quer por Ivo, quer pelas pessoas
da fila, de que tinham vindo à água e não ao café, e que se
deviam comportar em conformidade.
Nos
dias em que havia grandes bombardeamentos ou quando soprava o siroco,
o Senhor ficava um pouco nervoso, mas as pessoas tentavam pô-lo
bem-humorado com olhares, perguntas de cortesia e pequenos gestos de
atenção. Às vezes conseguiam-no, mas outras Ivo comportava-se como
um nobre altivo; choviam observações irónicas, repreensões sem
motivo, até mesmo insultos. Mas jamais negou a água a alguém.
Quando
os ventos do sul, e também os tchetniks,
se acalmavam, o Senhor voltava a ser o de sempre; emanava dignidade
quer quando estava assim dobrado sobre o poço, quer quando o suor
lhe escorria pela cara, quer quando lhe dava a fraqueza e tinha de se
sentar por uns cinco minutos.
Nas
alturas em que o abastecimento público de água voltava a funcionar
o Senhor Ivo podia suspirar de alívio. Nesses dias ninguém o
mencionava, nem lhe batia à porta. Era preciso deixar o homem
descansar um pouco da gente. E não esquecer que voltarias a ele,
feliz por teres nascido debaixo de uma estrela boa e por não teres
de caminhar até à bica municipal junto à Cervejaria para onde os
tchekniks
de quando em quando mandavam granadas.
Na
véspera de Natal, o Senhor Ivo informou o povo de que, no dia
seguinte, a título excepcional, não iria trabalhar porque, para
ele, era um dia de festa, mas que em troca permaneceria junto do poço
na véspera. No dia santo os aguadeiros trouxeram presentes. Pitas,
baklavas, jarros de quefir feito com leite em pó, pequenos
embrulhinhos de café moído, um jovem até conseguiu um maço de
Croatia
com filtro, o que comoveu particularmente Ivo.
O
primeiro dia depois do Natal foi como todos os outros. De um lado,
uma longa fila de homens, mulheres e crianças com baldes, e do
outro, Ivo com os olhos pregados no fundo do poço. Para um bairro de
Sarajevo, na sua limpidez estava recolhida toda a bondade deste
mundo. O Senhor encheria todos os baldes e os fregueses teriam depois
de subir a encosta com eles.
-
Todos os dias, quando acarreto a água, lembro-me de Cristo e do seu
Calvário. Penso se é possível que o Calvário fosse sempre a
subir, ou se seria um pouco a subir, e um pouco a descer – dizia a
minha mãe a uma muçulmana, carregando-lhe às costas mais essa
preocupação.”
Cavalo de
Ferro
1ª edição, 2004
pp. 35-38
Texto escolhido por Jorge Navarro
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