É um romance impressionante, baseado na história verdadeira de Carolina Loff da Fonseca, uma militante comunista com um percurso de vida cheio de aventuras, desafios e escolhas, algumas bem difíceis. Mais uma vez, Ana Cristina Silva surpreende pela extraordinária capacidade de retratar as suas personagens, de pôr quem a lê na pele dessas personagens, pela profundidade, verdade e sinceridade com que transmite os seus sentimentos.
Desta feita, Carol uma mulher jovem e bonita que desde sempre soube olhar para as discriminações sociais como algo contra as quais era preciso lutar, para lhes pôr fim. As circunstâncias da vida levaram-na a abraçar os ideais da igualdade e da justiça e a ingressar no partido comunista. Mas a generosidade incondicional da sua militância que se prolongou por bastante tempo e que a levou ao maior sacrifício da sua vida – abandonar a filha em Moscovo com apenas quatro anos – foi esbarrando, no terreno e no contacto com os círculos do poder das elites comunistas, com a dura realidade. A descrição da imagem da militante forte e segura que esconde o seu drama pessoal, num ambiente em que a afirmação de sentimentos de receio ou de dúvida é sinal de fraqueza e por isso precisa ser reprimida; o sentido de responsabilidade e a força de um ideal de justiça para a humanidade que apaga o remorso e as necessidades individuais, os ideais que se sobrepõem à realidade e que não deixam ver com objectividade, tudo isto surge neste romance de Ana Cristina Silva.
O afastamento entre Carol e a pequena Helena que se previa ser por um curto período acabou afinal por se prolongar por duas décadas. Ao longo desse período e por circunstâncias diversas que as foram afastando cada vez mais, se muitas vezes Carol sentia remorso por ter deixado a filha longe, outras tantas vezes o empenhamento e as responsabilidades apagavam esse remorso pelo abandono da filha numa escola em Moscovo. O reencontro entre as duas, marcado pela frieza e desconfiança de Helena, não mais criança mas já mulher, levará Carol a decidir tentar redimir-se aos olhos da filha, através da escrita romanceada da sua vida e actividade como militante. E é este o tema deste romance psicológico, muito rico. Considero que é o drama do abandono de uma criança por uma mãe por apego a um ideal, embora dilacerada por contradições íntimas muito fortes, o centro deste romance. Ao invés, discordo da nota da editora na capa do livro – “A história de uma militante comunista que se apaixona por um inspector da PIDE” – por considerá-la redutora e apenas realçar um aspecto da vida desta militante que a fez cair em desgraça dentro do partido.
No relato de “Cartas Vermelhas”, acompanhamos a vida de Carol que tem de alterar a sua identidade e assumir personalidades diversas adaptadas aos papéis que lhe são conferidos nas diferentes missões que lhe são atribuídas, o que faz com grande mestria. O mundo está em mudança e as qualidades que demonstrara na prisão onde teve a filha, levaram o partido comunista a dar-lhe a missão de tradutora em Moscovo onde o clima de suspeições e denúncias passa a ser normal; o Brasil sucumbe a uma ditadura militar e a derrota do PC do Brasil liderado por Carlos Luís Prestes é um duro golpe para o movimento comunista internacional; em Espanha é-lhe dada a missão de jornalista no período da Guerra Civil onde a luta entre as facções se mistura com a desumanização e a crueza da guerra. Carol vai depois para Portugal dominado pelo medo da delação exercida pela PVDE. Em Portugal, após um período de regresso à actividade partidária e à prisão, a sua ligação a um inspector da polícia política salazarista levou à sua expulsão do partido comunista. Entretanto, a guerra que abala toda a Europa torna cada vez mais difícil um reencontro entre mãe e filha!
Este livro provoca muitas interrogações para as quais certamente há diferentes respostas. O que faz que seja possível deixar uma criança abandonada numa instituição para responder a um ideal maior de justiça para a humanidade? Como é possível que uma mulher com uma vivência tão rica, diversificada e extrema e com ideais tão fortes sucumba à sedução de um inimigo desses ideais? Será que nos dias de hoje tal seria possível?
Creio que não. Mas este livro dá muito que pensar.
Julho 2017
Almerinda Bento