Escrito no exílio francês, “O Leviatã” é uma das novelas mais significativas de Joseph Roth (1894-1939) que reflecte o espírito da cultura judaica enraizado naquele que foi o Império Austro-Húngaro. Herdeiro dessa mesma cultura e natural da Galícia Oriental, o próprio Joseph Roth é um dos autores que mais contribuiu para a transmissão de todo um universo cultural de referência da Europa Central e de Leste e que foi aniquilado com a ascensão do nazismo e consequente 2ª Guerra Mundial que vitimou mais de seis milhões de judeus na Europa.
A ideia de destino está presente nas obras de Joseph Roth à semelhança de todos os autores de origem judaica como se de certa forma se tratasse de uma garantia de cumprimento desse mesmo destino pela via do sofrimento e da dor. A doce melancolia que atravessa “O Leviatã” funciona como o prenúncio de uma tragédia anunciada, ainda que a título particular, mas que, em sentido lato, tem eco na conjuntura que se vivia na Europa, em 1934, quando a novela foi escrita. A vida comezinha de um judeu comerciante de corais é abalada de modo vertiginoso à semelhança da Europa que vê a sua paz comprometida com a subida de Hitler ao
poder.
“(…) Nissen Piczenik, o comerciante de corais, era um judeu ruivo, cuja barba de bode acobreada lembrava uma espécie de sargaço avermelhado e dava ao homem um aspecto surpreendente de um deus do mar. Era como se ele próprio criasse ou plantasse e colhesse os corais que comercializava. E tão forte era a relação da sua mercadoria com o seu aspecto que, na pequena cidade de Progrody, ninguém o chamava pelo seu nome, que com o tempo até foi esquecido, sendo conhecido simplesmente pela sua profissão. Dizia-se, por exemplo: vem aí o comerciante de corais – como se em todo o mundo, para além dele, não houvesse mais nenhum.” (pp. 26-27)
Parece-me ser a doçura destas palavras que caracterizam de certa forma a literatura judaica, a capacidade de fascinar os leitores que se identificam e maravilham com a literatura e também com este universo muito próprio capaz de inebriar a alma como se tratasse de um alimento cultural. O misticismo ou o carácter mágico impregnado nas palavras de Joseph Roth não deixa o leitor indiferente. A literatura, a boa literatura não só conduz à formação do leitor atento, mas deve também permitir a sua distracção, o gozar bons momentos que o permite sonhar e viajar no rio do tempo e dos sonhos e, neste caso em concreto, graças a uma cultura e um modo de vida muito específicos que perdeu o seu lugar na Europa.
Quem fica indiferente a excertos tão belos e que também nos transportam para a aventura?
“Todos os habitantes de Progrody e das redondezas estavam convictos que os corais eram animais vivos, cujo crescimento e comportamento debaixo dos mares eram vigiados pelo peixe primitivo Leviatã. Não se podia duvidar do facto, já que fora o próprio Nissen Piczenik que o contara.” (p. 29)
Mas a vida pacata de Nissen Piczenik está prestes a levar uma reviravolta. A chegada do húngaro Jenö Lakatos à região vai trazer consequências irreversíveis na medida em que vai introduzir corais falsos neste comércio. Seduzido pela riqueza fácil e rápida, Nissen Piczenik vai passar a alimentar-se de uma mentira que destruirá em pouco tempo o seu negócio e, no fundo, a si próprio.
É também este jogo da palavra fácil, da sedução, dos mitos e histórias que se criam em torno de pequenas e grandes mentiras que também tem o seu paralelismo com o eco fácil do nazismo que conduziu à ascensão de Hitler ao poder que teve como consequência, entre tantas, o extermínio dos judeus (holocausto) e a sua cultura como referência na Europa.
Quanto a Nissen Piczenik “que descanse lá em paz, junto do Leviatã, até ao advento do Messias.” (p. 75)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Excelente recensão Jorge. Adorei as tuas palavras, vou ler. Obrigado
ResponderEliminarMuito obrigado pelas palavras! Votos de boas leituras!
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