“Chuva Miúda”
Luis Landero (Porto Editora)
"«Ei, oiça! Se for aqui,
vou bem para o futuro?»” (p. 238)
Considerado
o melhor livro de 2019 pelo El
País, Chuva
Miúda de Luis
Landero (n. 1948) chega agora às livrarias portuguesas, com uma
excelente tradução de Miguel Filipe Mochila, constituindo uma
grande surpresa no mercado editorial neste início de ano.
A
narrativa de Chuva
Miúda decorre em
Madrid, abrangendo um arco cronológico que abarca desde o final do
franquismo até aos nossos dias. O leitor vai percebendo as
alterações na sociedade, fruto da consolidação da liberdade,
trazendo à luz muitos recalcamentos e situações ainda por resolver
no seio da família retratada na obra.
De
modo sintético, a narrativa tem como pano de fundo a organização
da festa do octogésimo aniversário da mãe de Sonia, Andrea e
Gabriel, tendo sido este quem tomou a iniciativa do evento.
Nunca
chegaremos a saber se se chegará a concretizar tal festa na medida
em que os sucessivos contactos telefónicos entre os irmãos vão
despertar antigos ódios e rancores, além de inúmeras histórias
mal resolvidas do passado familiar.
Aurora,
a esposa de Gabriel, é a personagem central de Chuva
Miúda que foi
sempre considerada por todos os elementos da família como a mais
assertiva, bondosa, boa ouvinte e incapaz de fazer um juízo sobre os
seus interlocutores. “E Aurora ouve, cala e compreende, e, com
aquela sua maneira tão doce de ouvir, parece que alivia os pesares
de todos e pacifica as discórdias.” (p. 80)
Chuva
Miúda é também
um romance sobre memória e verdade. Cada família tem os seus
mistérios, os seus segredos, as suas loucuras e o relato das
experiências pessoais por parte de cada um dos irmãos é sempre
exponenciado face à tentativa de, cada um, à sua maneira, fazer
levar a água ao seu moinho, em detrimento dos irmãos e até da mãe.
Cada um dos interlocutores faz junto de Aurora a apologia da
vitimização no contexto de uma família pejada de contradições e
absurdos, marcada pelas dificuldades económicas do período
franquista e com sérias consequências nas décadas seguintes, pelo
menos ao nível psicológico face às experiências de vida dos
vários personagens, a que foram sujeitos por parte da mãe.
É
na conversa com os demais interlocutores que Aurora, esposa de
Gabriel e cunhada de Sonia e Andrea, procura um equilíbrio entre o
relato e a verdade da família. No meio de tanta loucura, mágoas e
até alguma esquizofrenia, Aurora vai urdindo a verdadeira história
de cada um e, no seu conjunto, a verdade desta família.
É
nas conversas tidas com as cunhadas que Aurora é levada a
confrontar-se com as desconfianças em relação a Gabriel, acabando
por perceber de facto com quem está casada e que a ideia que as
cunhadas fazem do irmão não corresponde de todo à verdade.
Ao
fim de cerca de uma semana, período em que decorrem os sucessivos
contactos telefónicos, Aurora sente-se esgotada com o peso das
histórias de cada elemento da família, tentando, ela própria,
reconstituir aquilo que será a história da família, partindo de
memórias que, mesmo apresentando-se turvas, aparentemente são
projectadas de modo muito intenso como se os acontecimentos tivessem
tido agora lugar. “Não estaria também ela a reinventar o passado
e a construir uma história à sua medida, baseada em suspeitas,
minúcias e imaginações, como Sonia e Andrea? E pensou novamente se
não estaria já a germinar a semente da loucura que se abrigava no
seu interior.” (p. 202)
Luis
Landero neste magistral romance sobre a família contemporânea e os
costumes agarra o leitor nas primeiras páginas graças à sua
escrita apelativa e enredo intenso. A narrativa vai evoluindo entre o
humor negro e a tragédia, atirando-nos para o fundo do poço sem
direito à corda de salvação. Há momentos tensos e de uma
crueldade sem precedentes, a violência doméstica que tem empurrado
tantas mulheres para o silêncio em detrimento dos filhos, optando,
tantas vezes pela paz pobre, ainda que sofrendo no corpo e na alma.
Chuva
Miúda desperta os
rancores e ódios do passado que ao longo de uma semana de contactos
telefónicos, perceberá o leitor que se transformarão finalmente em
gritos, sendo então lícito questionar “«Ei, oiça! Se for por
aqui, vou bem para o futuro?»” (p. 238)
Excerto:
“Hoje é quinta-feira. Há
seis dias que Gabriel se lembrou de organizar uma festa para a mãe.
Uma festa onde todos pudessem perdoar e expiar as culpas e os erros,
e onde as ofensas e os equívocos do passado fossem enfim redimidos.
(…) São histórias, impressões, conjeturas e sonhos, que, uma vez
encarnados e materializados em palavras, passam a ser reais e, com o
tempo, invulneráveis a qualquer discussão. Um dia, não se lembra a
propósito de quê, [Aurora] disse a Andrea «Esta é que é a
verdade», e Andrea replicou: «Pois então a verdade é mentira.» E
talvez não lhe falte razão. E é curioso, pensa Aurora, porque às
vezes a memória vai reconstituindo e ampliando com notícias
fornecidas pela imaginação e pela nostalgia o que o esquecimento
destrói, de modo que se dá então o paradoxo: quanto maior é o
esquecimento, mais rica e detalhada é também a lembrança.” (pp.
233-234)
Texto da autoria de Jorge Navarro