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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A Escolha do Jorge: "Chuva Miúda"

“Chuva Miúda”
Luis Landero (Porto Editora)

"«Ei, oiça! Se for aqui, vou bem para o futuro?»” (p. 238)
Considerado o melhor livro de 2019 pelo El País, Chuva Miúda de Luis Landero (n. 1948) chega agora às livrarias portuguesas, com uma excelente tradução de Miguel Filipe Mochila, constituindo uma grande surpresa no mercado editorial neste início de ano.
A narrativa de Chuva Miúda decorre em Madrid, abrangendo um arco cronológico que abarca desde o final do franquismo até aos nossos dias. O leitor vai percebendo as alterações na sociedade, fruto da consolidação da liberdade, trazendo à luz muitos recalcamentos e situações ainda por resolver no seio da família retratada na obra.
De modo sintético, a narrativa tem como pano de fundo a organização da festa do octogésimo aniversário da mãe de Sonia, Andrea e Gabriel, tendo sido este quem tomou a iniciativa do evento.
Nunca chegaremos a saber se se chegará a concretizar tal festa na medida em que os sucessivos contactos telefónicos entre os irmãos vão despertar antigos ódios e rancores, além de inúmeras histórias mal resolvidas do passado familiar.
Aurora, a esposa de Gabriel, é a personagem central de Chuva Miúda que foi sempre considerada por todos os elementos da família como a mais assertiva, bondosa, boa ouvinte e incapaz de fazer um juízo sobre os seus interlocutores. “E Aurora ouve, cala e compreende, e, com aquela sua maneira tão doce de ouvir, parece que alivia os pesares de todos e pacifica as discórdias.” (p. 80)
Chuva Miúda é também um romance sobre memória e verdade. Cada família tem os seus mistérios, os seus segredos, as suas loucuras e o relato das experiências pessoais por parte de cada um dos irmãos é sempre exponenciado face à tentativa de, cada um, à sua maneira, fazer levar a água ao seu moinho, em detrimento dos irmãos e até da mãe. Cada um dos interlocutores faz junto de Aurora a apologia da vitimização no contexto de uma família pejada de contradições e absurdos, marcada pelas dificuldades económicas do período franquista e com sérias consequências nas décadas seguintes, pelo menos ao nível psicológico face às experiências de vida dos vários personagens, a que foram sujeitos por parte da mãe.
É na conversa com os demais interlocutores que Aurora, esposa de Gabriel e cunhada de Sonia e Andrea, procura um equilíbrio entre o relato e a verdade da família. No meio de tanta loucura, mágoas e até alguma esquizofrenia, Aurora vai urdindo a verdadeira história de cada um e, no seu conjunto, a verdade desta família.
É nas conversas tidas com as cunhadas que Aurora é levada a confrontar-se com as desconfianças em relação a Gabriel, acabando por perceber de facto com quem está casada e que a ideia que as cunhadas fazem do irmão não corresponde de todo à verdade.
Ao fim de cerca de uma semana, período em que decorrem os sucessivos contactos telefónicos, Aurora sente-se esgotada com o peso das histórias de cada elemento da família, tentando, ela própria, reconstituir aquilo que será a história da família, partindo de memórias que, mesmo apresentando-se turvas, aparentemente são projectadas de modo muito intenso como se os acontecimentos tivessem tido agora lugar. “Não estaria também ela a reinventar o passado e a construir uma história à sua medida, baseada em suspeitas, minúcias e imaginações, como Sonia e Andrea? E pensou novamente se não estaria já a germinar a semente da loucura que se abrigava no seu interior.” (p. 202)
Luis Landero neste magistral romance sobre a família contemporânea e os costumes agarra o leitor nas primeiras páginas graças à sua escrita apelativa e enredo intenso. A narrativa vai evoluindo entre o humor negro e a tragédia, atirando-nos para o fundo do poço sem direito à corda de salvação. Há momentos tensos e de uma crueldade sem precedentes, a violência doméstica que tem empurrado tantas mulheres para o silêncio em detrimento dos filhos, optando, tantas vezes pela paz pobre, ainda que sofrendo no corpo e na alma.
Chuva Miúda desperta os rancores e ódios do passado que ao longo de uma semana de contactos telefónicos, perceberá o leitor que se transformarão finalmente em gritos, sendo então lícito questionar “«Ei, oiça! Se for por aqui, vou bem para o futuro?»” (p. 238)
Excerto:
“Hoje é quinta-feira. Há seis dias que Gabriel se lembrou de organizar uma festa para a mãe. Uma festa onde todos pudessem perdoar e expiar as culpas e os erros, e onde as ofensas e os equívocos do passado fossem enfim redimidos. (…) São histórias, impressões, conjeturas e sonhos, que, uma vez encarnados e materializados em palavras, passam a ser reais e, com o tempo, invulneráveis a qualquer discussão. Um dia, não se lembra a propósito de quê, [Aurora] disse a Andrea «Esta é que é a verdade», e Andrea replicou: «Pois então a verdade é mentira.» E talvez não lhe falte razão. E é curioso, pensa Aurora, porque às vezes a memória vai reconstituindo e ampliando com notícias fornecidas pela imaginação e pela nostalgia o que o esquecimento destrói, de modo que se dá então o paradoxo: quanto maior é o esquecimento, mais rica e detalhada é também a lembrança.” (pp. 233-234)
Texto da autoria de Jorge Navarro

1 comentário:

  1. Já tinha tido conhecimento deste livro e já me tinha despertado interesse. Agora, ao ler esta publicação, o meu interesse ficou reforçado.

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