As Primas, Aurora Venturini, 2007
Aurora Venturini foi
uma escritora argentina que, aos 85 anos, depois de uma carreira com
mais de trinta livros pouco divulgados, acabou por ter os holofotes
do reconhecimento literário com este “As Primas” com o qual
recebeu o Premio Nueva Novela (Argentina) e o Premio Otras Voces
(Espanha). Impossível ficar-se indiferente e mesmo perplexo ao ler
este livro, como aliás aconteceu com Mariana Enríquez, que escreve
o prólogo ao romance e que foi uma das pessoas que trabalhou em 2007
na pré-selecção das obras a concurso ao Prémio Nueva Novela. Tudo
saía fora da norma, até o facto de o original ter sido escrito numa
máquina de escrever e de os erros ortográficos terem sido
corrigidos com corrector líquido.
Um livro delirante
mas muito sério, em que não se consegue deixar de rir pelo insólito
e crueza das descrições. Vai ser difícil esquecer este livro e
Yuna, a narradora, as primas Petra e Carina, a irmã Betina, as tias
Nené e Ingrazia e a mãe “professora de ponteiro e bata branca,
muito severa, mas ensinava bem…” (pág. 21). Um livro de e
com mulheres, mas onde não falta o vizinho, o professor e outros
personagens do sexo masculino.
Mas foquemo-nos em
Yuna. Logo no início, Yuna diz da sua família “Não éramos
comuns, ou seja, não éramos normais.” (pág. 22). Sempre que
algo acontecia na sua vida que a emocionava, transpunha esses
sentimentos para cartões e mais tarde para telas, uma terapia que a
apaziguava. O professor de Belas Artes aposta nela. Ele diz que ela é
“a menina da gravata”pela parecença com “a
jovenzinha melancólica de Modigliani” (pág. 79) e não a
considera uma deficiente, mas sim uma “artista plástica
ensimesmada” (pág. 37). Ela luta com as palavras, com a sua
dificuldade ao nível da linguagem verbal e, quando escreve, não usa
pontos nem vírgulas nem maiúsculas. “Já disse que dentro da
minha psique conhecia detalhes e formas, que era muito diferente da
tonta de fora que falava sem ponto nem vírgula porque se punha ponto
ou vírgula perdia a palavra falada. Às vezes punha ponto ou vírgula
para respirar mas convinha-me comunicar de viva voz rapidamente para
que me entendessem e evitar lacunas silenciosas que revelassem a
minha incapacidade de comunicação verbal porque ao ouvir os
barulhos dentro da minha cabeça e o fluir sibilante das palavras
ficava confusa e boquiaberta a pensar que existiam palavras gordas e
palavras magras, palavras negras e brancas, palavras loucas e
criteriosas, palavras que dormiam nos dicionários e que ninguém
usava. Aqui por exemplo usei vírgulas. E pontos.” (pág. 64).
Explica-se quando dialoga com o/a leitor/a, pede-lhe desculpa quando
se repete e faz ironia com isso: “… não repetirei para não
cansar quem tiver oportunidade de me ler e digo repetindo a quem
tiver oportunidade de me ler e paciência ao mesmo tempo porque eu
própria me ouço e se as palavras que escrevo são tão
cansativamente patetas como as que digo de mim para mim, quem
terminar esta melopeia absurda amaldiçoar-me-á pelo tempo que
perdeu comigo sem poder negar que não conseguiu pôr-me de lado
porque encontrou entre as minhas estúpidas amarguras de amor e morte
muitas das que ele próprio viveu, ou ela caso se trate de uma
senhora.” (pág. 74). E algumas páginas mais à frente “Já
não vou dizer que me cansam os pontos finais e as vírgulas porque
senão pareço ridícula e os bons leitores que simpatizarem comigo
deixarão de me ler.” (pág. 89). Sempre que usa uma nova
palavra que descobriu no dicionário, põe a palavra dicionário
entre parêntesis ou então (idem), esclarecendo “que idem
significa dicionário mas por ser um vocábulo mais curto convém-me
mais e como nunca fico com nada pendente digo que esse vocábulo
corresponde às minhas averiguações da cultura do dicionário que
me ajuda a sair da minha deficiência herdada.” (pág. 121). E
quando há uma palavra que ela não encontra no dicionário, é à
prima Petra que recorre.
Este é também um
romance sobre os corpos e sobre os tabús dos corpos disformes ou
não. Neste romance há pipis, pénis, maminhas, puns, chichi,
vómito, sangrar, nojo, aborto, preservativo, violação, gravidez.
Na sua linguagem directa e simples, Yuna desconstrói o mundo dos
adultos, dos ditos normais, da sociedade organizada e dos psicólogos.
“Eu cresci com má opinião do casamento e da família
organizada. Jurei não casar. Jurei viver para pintar. Jurei muitas
coisas até que me apercebi de que jurar era pecado e nunca mais
jurei.” (pág. 50).
Yuna é um caso de
superação, de alguém que, conhecendo as suas limitações, não
deixa de tentar ultrapassá-las. Pelas palavras e pela arte.
“Sentia-me
acabada de nascer, consegui equilibrar-me, expor. Viajar.
Apaguei. Apaguei.
Apaguei tudo.
Uma enorme
melancolia invadiu as minhas pinturas e valorizou-as porque as
pessoas quando se vêem refletidas na dor conseguem consolar-se um
pouco.” (pág. 203).
Um livro
desconcertante, que consegue oferecer-nos o poder extraordinário da
Literatura e da Arte. Escrito por uma jovem de 85 anos!
21 de Agosto de 2023
Almerinda Bento