“Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”
Olga Tokarczuk
(Cavalo de Ferro)
“Os
mecanismos naturais foram desregulados e, agora, é preciso ter tudo
controlado para não haver uma catástrofe.” (p. 207)
“Nós
temos uma visão do mundo e os Animais têm um sentido do mundo,
sabias?” (p. 214)
A
publicação do romance “Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos
Mortos” coincide com a nomeação da escritora polaca Olga
Tokarczuk (n. 1962) para o Prémio Nobel de Literatura. Este é o
segundo romance da escritora publicado em Portugal após a edição
de “Viagens” no início do ano e ambos os títulos estão
publicados pela Cavalo de Ferro.
“Viagens”
veio a baralhar o universo literário no que concerne à tentativa de
classificar a natureza da obra na medida em que é uma miscelânea de
géneros, desde o romance à narrativa breve, o ensaio, além de
muitas notas autobiográficas e pensamentos soltos.
A
nova obra recentemente publicada, embora assuma características mais
comuns no que respeita à ideia de romance clássico, mantém a
irreverência apresentada ao longo da narrativa que tem como pano de
fundo um thriller que mistura o macabro com questões políticas e
ambientais.
Passado
numa pequena comunidade rural da Polónia próxima da fronteira com a
República Checa, este romance tece inúmeras considerações aos
direitos dos animais, assim como à preservação da natureza,
algumas ideias mais como fruto das obsessões de Janina Duszejko, a
personagem principal, revoltada na sequência de as suas duas cadelas
terem sido mortas.
Antiga
engenheira e professora reformada, Janina Duszejko ocupa os seus dias
a traduzir as obras de William Blake com o seu antigo aluno Dyzio que
é polícia, dedicando-se também com particular afinco à
astrologia.
Isolada
de tudo e de todos, Janina Duszejko é encarada como uma ‘outsider’
face às ideias em que acredita, na supremacia da natureza e dos
animais em relação aos homens. Aquilo que vê através do
alinhamento dos planetas não é bom, aludindo frequentes vezes à
ideia de Catástrofe que se instalará, acabando mesmo por
desenvolver uma teoria da conspiração na sequência do aparecimento
de vários indivíduos ligados ao clube de caça local que aparecem
mortos, indiciando a ideia de um assassinato de modo violento e
cruel.
Janina
Duszejko prontifica-se a colaborar com a polícia local perante o
mistério dos assassinatos que ocorreram, sugerindo às autoridades
que devam estudar os astros porque atendendo à hora de nascimento,
ano e local das vítimas, os planetas ditavam um mau augúrio.
O
desfiar da narrativa sucede ao sabor das estações do ano enquanto
percebemos do quotidiano da pequena comunidade esquecida pelo poder
central, onde nada acontece e onde agora os habitantes são
surpreendidos com as mortes em série.
Percebemos
nas entrelinhas por que razão Olga Tokarczuk se tornou uma voz
incómoda no seu país na medida em que denuncia o esquecimento e,
por isso, uma menor intervenção do poder central em relação às
populações mais afastadas dos grandes centros urbanos e, fruto
destas questões de natureza geográfica e política, constitui
terreno fértil para a fomentação de pequenas máfias e corrupção
no seio das próprias instituições públicas.
A
narrativa avança e o leitor é surpreendido com uma linha muito
ténue que constitui a fronteira entre a lucidez e a loucura e, em
função disso, são colocadas em causa as tradições de todo um
país e até o próprio sentido de justiça.
Numa
época em que as questões ambientais e a defesa do planeta assumem
um papel determinante, são muitas as vozes que saem em defesa destes
valores, mas o que Olga Tokarczuk vem a defender é que nem tudo o
que parece é, e que alguns dos heróis com grande projecção não
passam de falsos profetas com objectivos muito próprios e pouco
claros.
Mas
mesmo em assuntos menos sérios, Olga Tokarczuk critica muitas
situações do quotidiano alternando entre o tom irónico e o
cáustico. Somos levados a rir ou a esboçar um sorriso amarelo
porque também nos revemos naquele que é o espelho da humanidade com
todas as virtudes e defeitos.
“Conduz o Teu Arado sobre os
Ossos dos Mortos” é um romance que nos desconcerta ao longo de
toda a narrativa. É literatura. É política. É intervenção. Mas
também é arte feita de palavras. Não estamos habituados a este
género tão próprio de Olga Tokarczuk, mas quem disse que cada um
tem de se encaixar numa gaveta própria? Olga Tokarczuk rompe com
géneros e estilos e voa. E nós leitores, voamos também…
Excertos:
“O
mundo é uma prisão cheia de sofrimento, construída de modo que,
para se sobreviver, seja preciso infligir dor a outros. (…) Que
mundo é este? Um corpo transformado em calçado, em almôndegas, em
salsichas, em tapete estendido junto à cama, em caldo feito com os
ossos de outro ser… Sapatos, sofás, malas de pendurar ao ombro
feitos da barriga de outros seres, aquecer-se à custa do pelo de
outrem, comer o corpo de outrem, cortá-lo aos pedaços e fritá-lo
no óleo… Será verdade? Será possível tal pesadelo macabro,
tamanha matança, cruel, desapaixonada, mecânica, sem pesos na
consciência, sem a mínima reflexão, reflexão que é afinal o
objecto dos engenhosos campos da Filosofia e da Teologia?” (p. 117)
“Eu
tinha a minha Teoria sobre estas bengalas linguísticas: todo o Homem
tem uma palavra da qual abusa. Ou que emprega de modo inadequado.
Estas palavras são a chave para a nossa mente. O Senhor «Ao que
parece», o Senhor «Geralmente», a Senhora «Provavelmente», o
Senhor «Foda-se», a Senhora «Não Acha?», o senhor «Como Se». O
Presidente era o Senhor «Verdade». É claro que existem modas para
usar determinadas palavras, tal como existem modas que, de repente,
levam as pessoas, movidas por um desvario qualquer, a calçar botas
idênticas ou a usar roupas iguais; o mesmo acontece com as pessoas
que de repente começam a usar uma palavra em concreto. Nos últimos
tempos, esteve em voga o «geralmente»; agora, domina o
«basicamente».” (p. 197)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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