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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A Escolha do Jorge: "Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”

“Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”
Olga Tokarczuk 
(Cavalo de Ferro)

“Os mecanismos naturais foram desregulados e, agora, é preciso ter tudo controlado para não haver uma catástrofe.” (p. 207)
“Nós temos uma visão do mundo e os Animais têm um sentido do mundo, sabias?” (p. 214)

A publicação do romance “Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos” coincide com a nomeação da escritora polaca Olga Tokarczuk (n. 1962) para o Prémio Nobel de Literatura. Este é o segundo romance da escritora publicado em Portugal após a edição de “Viagens” no início do ano e ambos os títulos estão publicados pela Cavalo de Ferro.
“Viagens” veio a baralhar o universo literário no que concerne à tentativa de classificar a natureza da obra na medida em que é uma miscelânea de géneros, desde o romance à narrativa breve, o ensaio, além de muitas notas autobiográficas e pensamentos soltos.
A nova obra recentemente publicada, embora assuma características mais comuns no que respeita à ideia de romance clássico, mantém a irreverência apresentada ao longo da narrativa que tem como pano de fundo um thriller que mistura o macabro com questões políticas e ambientais.
Passado numa pequena comunidade rural da Polónia próxima da fronteira com a República Checa, este romance tece inúmeras considerações aos direitos dos animais, assim como à preservação da natureza, algumas ideias mais como fruto das obsessões de Janina Duszejko, a personagem principal, revoltada na sequência de as suas duas cadelas terem sido mortas.
Antiga engenheira e professora reformada, Janina Duszejko ocupa os seus dias a traduzir as obras de William Blake com o seu antigo aluno Dyzio que é polícia, dedicando-se também com particular afinco à astrologia.
Isolada de tudo e de todos, Janina Duszejko é encarada como uma ‘outsider’ face às ideias em que acredita, na supremacia da natureza e dos animais em relação aos homens. Aquilo que vê através do alinhamento dos planetas não é bom, aludindo frequentes vezes à ideia de Catástrofe que se instalará, acabando mesmo por desenvolver uma teoria da conspiração na sequência do aparecimento de vários indivíduos ligados ao clube de caça local que aparecem mortos, indiciando a ideia de um assassinato de modo violento e cruel.
Janina Duszejko prontifica-se a colaborar com a polícia local perante o mistério dos assassinatos que ocorreram, sugerindo às autoridades que devam estudar os astros porque atendendo à hora de nascimento, ano e local das vítimas, os planetas ditavam um mau augúrio.
O desfiar da narrativa sucede ao sabor das estações do ano enquanto percebemos do quotidiano da pequena comunidade esquecida pelo poder central, onde nada acontece e onde agora os habitantes são surpreendidos com as mortes em série.
Percebemos nas entrelinhas por que razão Olga Tokarczuk se tornou uma voz incómoda no seu país na medida em que denuncia o esquecimento e, por isso, uma menor intervenção do poder central em relação às populações mais afastadas dos grandes centros urbanos e, fruto destas questões de natureza geográfica e política, constitui terreno fértil para a fomentação de pequenas máfias e corrupção no seio das próprias instituições públicas.
A narrativa avança e o leitor é surpreendido com uma linha muito ténue que constitui a fronteira entre a lucidez e a loucura e, em função disso, são colocadas em causa as tradições de todo um país e até o próprio sentido de justiça.
Numa época em que as questões ambientais e a defesa do planeta assumem um papel determinante, são muitas as vozes que saem em defesa destes valores, mas o que Olga Tokarczuk vem a defender é que nem tudo o que parece é, e que alguns dos heróis com grande projecção não passam de falsos profetas com objectivos muito próprios e pouco claros.
Mas mesmo em assuntos menos sérios, Olga Tokarczuk critica muitas situações do quotidiano alternando entre o tom irónico e o cáustico. Somos levados a rir ou a esboçar um sorriso amarelo porque também nos revemos naquele que é o espelho da humanidade com todas as virtudes e defeitos.
“Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos” é um romance que nos desconcerta ao longo de toda a narrativa. É literatura. É política. É intervenção. Mas também é arte feita de palavras. Não estamos habituados a este género tão próprio de Olga Tokarczuk, mas quem disse que cada um tem de se encaixar numa gaveta própria? Olga Tokarczuk rompe com géneros e estilos e voa. E nós leitores, voamos também…
Excertos:
“O mundo é uma prisão cheia de sofrimento, construída de modo que, para se sobreviver, seja preciso infligir dor a outros. (…) Que mundo é este? Um corpo transformado em calçado, em almôndegas, em salsichas, em tapete estendido junto à cama, em caldo feito com os ossos de outro ser… Sapatos, sofás, malas de pendurar ao ombro feitos da barriga de outros seres, aquecer-se à custa do pelo de outrem, comer o corpo de outrem, cortá-lo aos pedaços e fritá-lo no óleo… Será verdade? Será possível tal pesadelo macabro, tamanha matança, cruel, desapaixonada, mecânica, sem pesos na consciência, sem a mínima reflexão, reflexão que é afinal o objecto dos engenhosos campos da Filosofia e da Teologia?” (p. 117)
“Eu tinha a minha Teoria sobre estas bengalas linguísticas: todo o Homem tem uma palavra da qual abusa. Ou que emprega de modo inadequado. Estas palavras são a chave para a nossa mente. O Senhor «Ao que parece», o Senhor «Geralmente», a Senhora «Provavelmente», o Senhor «Foda-se», a Senhora «Não Acha?», o senhor «Como Se». O Presidente era o Senhor «Verdade». É claro que existem modas para usar determinadas palavras, tal como existem modas que, de repente, levam as pessoas, movidas por um desvario qualquer, a calçar botas idênticas ou a usar roupas iguais; o mesmo acontece com as pessoas que de repente começam a usar uma palavra em concreto. Nos últimos tempos, esteve em voga o «geralmente»; agora, domina o «basicamente».” (p. 197)

Texto da autoria de Jorge Navarro


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