“No
fim de contas, só há uma realidade, só há uma felicidade no
mundo, é a juventude.”
(p. 69)
Decidir
publicar Irène Némirovsky (1903-1942) é reabilitar uma das
escritoras mais conceituadas do século XX que não passou
despercebida com a edição de “David Golder”, em 1929. A partir
daí, seguiram-se vários romances e novelas que captaram a atenção
dos leitores constituindo um dos nomes a seguir. A carreira enquanto
escritora apesar de intensa, foi curta, na medida em que a escritora
de ascendência judaica caiu nas malhas dos nazis, acabando por ser
deportada para Auschwitz onde acabaria por falecer com febre tifóide,
em 1942.
A
descoberta do manuscrito incompleto “Suite Francesa” que veio a
ser publicado em 2004 reabilitou a importância de Irène Némirovsky
na literatura contemporânea. Herdeira de toda uma geração de
escritores russos, Irène Némirovsky articula de forma original os
grandes temas da literatura russa com o esplendor e fascínio de
Paris, a grande capital europeia onde fervilhavam as cores, a música,
os grandes salões de baile que atraíam a burguesia que tanto
caracterizavam a “Belle Époque”, no período anterior à 1ª
Guerra Mundial (1914-1918).
São
várias as obras de Irène Némirovsky que reflectem um forte pendor
autobiográfico, nomeadamente no que concerne a ideias que pululam
com frequência algumas das suas narrativas, como a questão de
famílias ricas judaicas que emigram do Império Russo rumo a Paris,
as fortunas que desaparecem e se erguem de novo, a vida faustosa
destas mulheres e a sua vida fútil povoada de bailes, jóias e
amantes, a difícil relação com a mãe…
“Jezabel”
(1936), o romance publicado recentemente pela Cavalo de Ferro
reflecte um pouco os temas acima indicados que, juntamente com “O
Vinho da Solidão” (1935), constituem duas faces da mesma moeda,
publicadas com um ano de diferença.
“Jezabel” é mais um dos
romances de Irène Némirovsky que nas primeiras páginas da obra
mergulhamos numa narrativa cativante acompanhada pela escrita
original e inteligente da autora. Aqui, Irène Némirovsky navega em
ambiente que conhece bem, jogando por isso em casa, retratando com
rigor o ambiente faustoso e glamoroso de Paris antes da 1ª Guerra
Mundial.
Gladys
Eysenach é a personagem principal, uma mulher linda, elegante e
rica, mas profundamente egocêntrica e com uma obsessão doentia com
a sua eterna juventude.
Desde
jovem que Gladys Eysenach percebeu qual seria o seu destino, qual
seria a sua missão: ser bela e ser amada. Ser amada seria sempre um
resultado da sua beleza. Gladys Eysenach não queria, contudo, saber
do amor, não queria prisões, queria tão somente ser adorada,
amada, ter uma legião de admiradores e bajuladores caídos de amores
e de desejo por si para que se sentisse protegida. “Sei
perfeitamente que ainda tenho idade para o amor, mas o que quero não
é amar, é ser amada, sentir-me pequena, fraca, apertada por braços
fortes…” (p. 94)
A
sua beleza era o seu escudo. O seu escudo em igual proporção com a
sua obsessão, a sua doença. A beleza de Gladys Eysenach irradiava a
atenção de tudo e todos. O mundo parava à sua passagem. Fascinante
e bela, Gladys Eysenach tinha a missão de permanecer jovem e bela
toda a vida. Iria a todo o custo driblar a velhice. “(…) Quando
pensava na velhice, parecia-lhe ainda tão longínqua que a olhava de
frente sem tremer, acreditando que a morte lhe ocorreria antes do fim
do prazer.” (p. 63)
Sempre
insaciável tanto quanto pronta para o prazer, Gladys Eysenach “não
se saciava, antes lhe era necessário esse doce veneno como o único
alimento que a fazia viver.” (p. 63) Ainda adolescente a sua prima
Tess “admirava aquela carne delicada que escondia nervos de aço
para o prazer” (p. 51) Tess comentava com Gladys: “Compreendo que
o baile lhe pareça delicioso, mas é necessário saber deixar o
prazer antes que ele a deixe… É tarde. Não se divertiu já que
chegue?...” (p. 53)
Ao
longo da narrativa são várias as passagens que reflectem a obsessão
doentia de Gladys Eysenach com a juventude, passagens que ditam muito
da personagem e do seu modo de pensar. “Faça como eu. Não conte
os anos passados e eles não a vão marcar com mão pesada.” (p.
69) “Que havia de melhor no mundo, que a volúpia comparável à de
agradar?... Esse desejo de agradar, de ser amada, esse prazer banal,
comum a todas as mulheres, tornou-se para ela uma paixão (…) que
nada, jamais, tinha conseguido saciar completamente.” (p. 77)
“Nunca sentira outra coisa que não fosse a sede de ser amada, a
paz deliciosa do orgulho satisfeito…” (pp. 83-84) “(…) Tinha
necessidade do brilho, do triunfo insolente da verdadeira juventude.”
(p. 85) “Não compreende, Tess. Você é diferente. Atravessa
calmamente a vida, friamente. Eu quero queimar a minha e desaparecer…
(…) Estou ciumenta da minha juventude.” (p. 87) “Quero uma vida
que valha a pena viver, ou, então, para que serve viver?... O que me
dará a vida quando eu não puder agradar mais?... No que é que me
vou tornar…” (p. 126)
Mas
ninguém, por mais bela, elegante, rica e fascinante que seja
consegue enganar a passagem do tempo. Os anos podem ser vividos como
um belo sonho, mas um dia a realidade fala mais alto e a consciência
perante o inevitável envelhecimento emerge. O mesmo acontece com a
heroína da narrativa. “Os anos passaram para Gladys com a rapidez
dos sonhos.” (p. 76) Para pessoas como Gladys Eysenach, a vida é
sempre curta e nunca suficiente para concretizar os seus desejos,
nunca são amadas o suficiente porque nunca amaram. Mas a passagem do
tempo traz a consciência de que o seu tempo passou, a juventude deu
lugar à velhice. “Vou ser uma velha maquilhada…” (p. 126)
Dir-lhe-ão “Contentem-se, vocês, as velhas, com tudo aquilo que
não vos conseguimos tirar.” (p. 203)
A
sua frivolidade é uma constante ao longo da narrativa. Vazia e
desprovida de sentimentos, Gladys Eysenach toma consciência que
chegou a um ponto na sua vida que não tem nada para além do seu
dinheiro. “«Foi só isso que amei», pensou. «Amei só o desejo
deles, a submissão, a loucura, o meu poder e o meu prazer… (…) É
horroroso ter posto o sentido da vida no prazer e ver o prazer fugir,
mas que mais há no mundo? Sou apenas uma mulher fraca…»” (p.
127)
Já
sexagenária, Gladys Eysenach num baile de Natal não dava qualquer
sinal de fraqueza ou de dor perante a sua rival, vinte e cinco mais
nova. Gladys aceitava o desafio como uma dura prova que se impunha a
si mesma e aos demais que a sua juventude seria eterna. Gladys dizia
para si mesma “«Anda, corpo meu, vá, carcaça velha…
Obedece-me…»” (p. 196)
Mas
até onde e quando consegue Gladys Eysenach enganar a vida e
enganar-se a si própria? Há acontecimentos que a personagem
desvirtua e sempre com um único propósito: parecer sempre jovem.
Mas conseguirá Gladys alterar o passado sem que este a julgue? Sem
que a vida a julgue? Até onde vai a obstinação de Gladys com a
perseguição da eterna juventude mesmo quando está a ser acusada de
homicídio de um jovem tido por seu amante?
“Jezabel”
retrata desta forma a obstinação de uma mulher perante a negação
da passagem do tempo e do seu envelhecimento. Irène Némirovsky
remete-nos para uma narrativa intimista que nos conduz também nessa
viagem que tem os seus momentos altos das paixões e dos amores e da
percepção clara de que o Outono chegará inevitavelmente perante as
primeiras rugas e os primeiros cabelos brancos.
“Gladys,
a vida mais cedo ou mais tarde, extingue em nós as paixões mais
ardentes.” (p. 81) “Eu era nova, demasiado bonita, mimada pela
vida, pelos homens, pelo mundo, mimada pelo amor…” (p. 171)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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