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domingo, 20 de outubro de 2019

Ao domingo com... Ana Bárbara Pedrosa


Depois de três anos e meio a escrever um romance, ainda por publicar e entretanto metido na gaveta, deixei-me ficar a sós com a pressa. Contra um romance a medo, tudo pensado, tudo gasto, tudo espancado, deixei que as personagens me espancassem. Deixei-as falar contra os meus pudores, dei-lhes espaço para as próprias canalhices. Permiti que a narrativa tivesse um estertor que me instrumentalizasse a mão, pus noutras vozes frases que nunca diria. Não fui outras pessoas, porque as assumi sempre como gente fora de mim.


“Lisboa, chão sagrado” foi a coisa mais livre que já fiz. A regra máxima da literatura, kill your darlings, foi aplicada ao ponto não só de matar o que me é querido, mas também de matar a linguagem com que estou confortável. No percurso, quis lá saber: não interessava a minha vergonha, interessava fazer uma coisa apesar dela, que a chutasse para canto completamente. Como resultado, o que ali está é outra coisa e ninguém pode encontrar-me no lugar onde me escondi da paráfrase.

É que o que me interessa na escrita não sou eu e o que me interessa na literatura não é a sua capacidade de descrição do mundo. Para isso estarão os jornalistas, os antropólogos, os sociólogos. Interessa-me mergulhar no que está escondido, escarafunchar as feridas, ver como é que infectam. Faz-se da caneta um bisturi e expõe-se o que a ciência não pode contar. Interessam-me a dor e a vergonha, sem nunca fazer do romance um mar de tristeza. Em vez disso, quero-o como o oceano que une países e afoga cinismos. A literatura não é o peito dado à bala: é a bala que mostra o peito.

Ana Bárbara Pedrosa

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