A
Noite Passada, Alice Brito, 2018
A
escrita de Alice Brito é única, inimitável, brota com uma
autenticidade e naturalidade que nos transporta para os anteriores
livros da sua autoria. Alice Brito domina o uso de um vocabulário
rico, certeiro, onde o vernáculo não é poupado. De novo a cidade
de Setúbal, o recurso aos objectos do dia-a-dia, os ambientes
sonoros e visuais dos quotidianos cinzentos do salazarismo embalados
e adocicados pelos folhetins. Personagens inesquecíveis. Mulheres
subjugadas, submissas, que ainda não são sujeito, mas também
mulheres fortes e que crescem quando descobrem a força que têm em
si. O sexo que ou é virtude ou é “javardice”. As palavras que
ainda não foram descobertas como “sexualidade”. Tanto, mas tanto
que aqui podia referir.
Alice
Brito faz-nos entrar no universo português dos anos 50, 60 e 70 em
dois registos: através do romance propriamente dito e através dos
comentários de Luís, Luísa e da filha Mafalda que por vezes medeia
as conversas dos pais como se fosse um pombo-correio e, que à medida
que a leitura avança, os questiona tentando perceber que papel eles
tiveram ou não como protagonistas principais do livro que estão a
ler e que estão a partilhar connosco, leitores.
A
riqueza do relato das vidas das personagens e dos episódios que se
sucedem advém do recurso a detalhes da época que pessoas mais
velhas recordarão e que ajudam os mais novos a visualizar o que era
então aquele Portugal fechado, atávico e amordaçado. Como comenta
Gil, amigo de Luís e Luísa que os acompanha na leitura em primeira
mão do romance, “As
pequeníssimas minudências do dia-a-dia são os pormenores que dão
vida ao quadro, que estão lá atrás, que dão perspectiva. Que
ninguém diga que não interessam porque elas são o miolo da
História. Sem elas nada fará sentido.
Os
grandes acontecimentos só são importantes quando se repercutem na
vida dos povos. (…) A História não depende só de assinaturas de
tratados notáveis. De batalhas heróicas ou consulados divinos. A
História faz-se também de pequeníssimos factos por que a gente
comum passou. Do dia-a-dia comezinho e sem glória.” Exemplos
são muitos: a visita a Portugal da Rainha Isabel de Inglaterra, a
morte de Cármen Miranda, os feitos do grande velocista Zatopek nos
Jogos Olímpicos de Helsínquia, os folhetins radiofónicos seguidos
religiosamente nas casas portuguesas, a chegada da televisão a preto
e branco que se via no café, a campanha de Humberto Delgado e a
repressão, a PIDE e a tortura. As mudanças sociais da década de 60
– os costumes, a música, a juventude – ao mesmo tempo que começa
a guerra colonial que se vai arrastar até 74 e os episódios
mediáticos e corajosos de resistência como foi o caso do Santa
Maria ou o golpe de Beja. Num país onde as centenas de mortos das
grandes inundações de 67 foram objecto de censura, onde a morte
saiu à rua e ceifou José Dias Coelho ou Ribeiro dos Santos,
programas como o Zip Zip eram o sinal de que a mudança estava a
chegar. E ao mesmo tempo em que estes acontecimentos vão surgindo na
narrativa, vamos conhecendo as personagens, as suas personalidades,
as escolhas que fazem, as suas dúvidas e receios: Amélia, Joaquim,
António, Elisabete, Bárbara, Lídia, o Rui Corninho e por fim o
pide Amadeu Silveira (vulgo Português Martelão, no Brasil).
“Maravilha
Maravilha
Venham
ver o barco doido
Sem
amarras que o segurem
Pela
porta entra a maré
Venham
ver o barco doido
Água
cai pela chaminé.”
É
com este poema de José Afonso que começa a segunda parte do
romance. O cinzentismo salazarista e marcelista é substituído pelo
alvoroço e alegria do 25 de Abril. A cidade de Setúbal vai vivê-lo
intensamente. Os partidos existentes e os que se formam, as
associações culturais, os cidadãos que se organizam, que lutam,
que aspiram a uma vida decente, a política que se aprende dum dia
para o outro, as discussões intensas, os vira-casacas, toda essa
memória histórica nos é avivada.
Em
“A Noite Passada” Alice Brito traz-nos a sua visão desse período
particular vivido pela cidade de Setúbal e sente-se que ela também
está lá neste seu terceiro romance de amor à liberdade, a Setúbal
e de ódio visceral ao fascismo.
19
de Setembro de 2019
Almerinda
Bento
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