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sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A Escolha do Jorge: "Regresso a Reims"



“Reims surge-me, não somente como um ancoradouro familiar e social (…), mas também (…) como a cidade do insulto.” (p. 187) 
“Sou um produto da injúria. Um filho da vergonha.” (p. 190)


Num registo autobiográfico, o filósofo e sociólogo Didier Eribon (n. 1953) procura compreender a realidade social onde cresceu, tecendo considerações importantes sobre a evolução do pensamento na França, a partir da década de 50, e de que forma a direita e a extrema-direita têm ganhado expressão desde então.
O autor cresceu em Reims, uma cidade a cerca de 150 km de Paris, que se debatia ainda com a reconstrução e sobrevivência do segundo após-guerra. A baixa escolaridade dos seus habitantes consolidava em certa medida o determinismo social a que estavam sujeitos, na medida em que os rapazes ao abandonarem a escola tornavam-se operários ou dedicavam-se a pequenos ofícios que não requeriam grande especialização tecnológica, ao passo que as raparigas trabalhavam em limpezas e outras tarefas domésticas. Os jovens casavam-se cedo e tinham vários filhos, o que, no seu conjunto, numa época anterior ao Maio de 68, contribuía para a perpetuação de pobreza e miséria nos estratos
sociais mais baixos em França.
Este “Regresso a Reims” após a morte do seu pai com quem, há muitos anos não mantinha qualquer contacto, permitiu a Didier Eribon, na reaproximação com a sua mãe, tentar compreender a história de violência a que esteve sujeito durante os vinte anos em que viveu com a sua família, tentando compreender a génese dessa mesma violência.
Identificando-se como homossexual, é em Reims que o autor constrói a sua identidade, confrontando-se desde tenra idade com o insulto, sofrendo emocional e psicologicamente na sequência de ter sido vítima de perseguição e de gozo tanto no seio da família, como no bairro onde vivia e na escola. “Reims surge-me, não somente como um ancoradouro familiar e social (…), mas também (…) como a cidade do insulto.” (p. 187) “Sou um produto da injúria. Um filho da vergonha.” (p. 190)
Era imperativo sair de Reims. Era preciso romper com aquela vida que teria somente a continuidade do preconceito, do racismo, da xenofobia, de toda e qualquer mudança que se verificasse no ‘ethos’ social. Romper com Reims era sinónimo de cortar ligações com a família e com toda uma realidade social de permanente violência. Ainda que Paris estivesse na mira de Didier Eribon, era por via dos estudos que seria possível esse corte. Mais tarde, o próprio autor viria a compreender que mesmo com estudos, o secundário, uma licenciatura, mestrado e doutoramento, o seu passado social ligado ao meio operário e à esquerda perseguiam-no. “O que hoje sou formou-se pelo entrecruzar desses dois percursos: eu tinha-me mudado para Paris com a dupla esperança de viver livremente a minha vida gay e de tornar-me um «intelectual».” (p. 217)
Refugiando-se desde cedo nos livros, mesmo quando a sua família não tinha hábitos de leitura, o autor tornou-se um acérrimo defensor das ideias de Sartre que num dos seus livros sobre Jean Genet, encontrou aquela que viria a constituir a “mola” para se impor a si mesmo a decisão de agir e de romper com aquele meio social estagnado, conservador, asfixiante, preconceituoso e homofóbico. “O importante não é o que fazem de nós, mas o que nós próprios fazemos daquilo que fizeram de nós.” (p. 212) Ainda sobre este ponto em particular, Didier Eribon afirma “(…) A homossexualidade impõe que se encontre uma solução para não sufocar. Não posso deixar de pensar que a distância que se instaurou – que me esforcei por instaurar – com o meu meio social e a autocriação de mim mesmo como «intelectual» foram a maneira que eu inventei para lidar com aquilo em que estava a tornar-me e que não poderia ser sem me diferenciar daqueles de quem diferia.” (pp. 188-189)
Nas últimas páginas, no epílogo deste seu doloroso e reflexivo “Regresso a Reims”, o autor lamenta não ter procurado o pai durante os anos do silêncio na tentativa de o compreender, compreender as suas motivações tentando compreender o tecido social envolvente. “Lamentei, em suma, ter deixado a violência do mundo social impor-se-me, como também a ele se lhe impusera.” (p. 230)
Por muito que se tente romper com o meio social que nos oprime e agride, Didier Eribon alude que um corte decisivo é impossível dadas as origens, as raízes, o passado. Podemos falar de reinvenção e reformulação, mas nunca ocorrem a partir do nada, daí que “nunca se é totalmente livre, nunca se está libertado.” (p. 211) “(…) A transformação de si não se opera nunca sem integrar as marcas do passado: conserva esse passado, simplesmente porque ele é o mundo em que se foi socializado, mundo esse que permanece em larga medida presente em nós e à nossa volta, no mundo em que doravante vivemos. O nosso passado é ainda o nosso presente. Por consequência, reformulamo-nos, recriamo-nos (como uma tarefa que é preciso retomar indefinidamente), mas não nos formulamos, não nos criamos.” (p. 212)
Mas este “Regresso a Reims” não se traduz somente num reencontro do autor com o seu antigo ambiente familiar e com as diferenças sociais e culturais que opõem as ideias de estagnação e de desenvolvimento, de perpetuação da pobreza quase como um valor defendido pelas classes populares ainda que sem a consciência de que somente se deve a elas mesmas essa mesma condição pelo facto de não terem apostado mais seriamente nos estudos em oposição ao percurso de ruptura concretizado pelo autor.
Didier Eribon apresenta-nos uma linha de pensamento que em muito contribui para a compreensão não só da França actual (mesmo tendo passado uma década após a edição da presente obra), mas também porque, em certa medida, estes são os grandes temas fracturantes na Europa de hoje. Depois do Maio de 1968, os partidos de esquerda eliminaram progressivamente dos seus discursos a expressão “classe operária”, o que veio a beneficiar a direita e a extrema-direita (Frente Nacional) ainda que de modo descontínuo. Ao eliminar do discurso político de esquerda a ideia de conflito de classe e reivindicações dos trabalhadores, as massas populares deixam de se identificar com aquela tendência política na medida em que a esquerda de outrora deixou de representar esta parte do eleitorado, ganhando, desta forma, a direita e a extrema-direita através da nova conjuntura da França na sequência da forte imigração que se faz sentir à época.
Antes da greve, franceses e imigrantes têm um inimigo comum que era o patronato, mas a ideia de que os estrangeiros beneficiem dos mesmos direitos que os franceses, passa a ser o novo mote político, aumentando assim o racismo, a xenofobia e a violência que se fomenta fruto destes conflitos, também eles sociais, quando todos lutam pela sobrevivência. “Quando a esquerda se revela incapaz de organizar-se enquanto espaço e crisol em que se formam os questionamentos e também em que se investem os desejos e as energias, são a direita ou a extrema-direita que conseguem acolhê-los e atraí-los.” (p. 146)
Perante a violência que ganhou terreno ao longo da última década em França e no resto da Europa, na sequência dos movimentos migratórios oriundos maioritariamente de África, Didier Eribon faz um apelo: “A tarefa que incumbe aos movimentos sociais e aos intelectuais críticos é pois: construir quadros teóricos e modos de perceção políticos da realidade que permitam, não apagar – o que seria impossível -, mas neutralizar ao máximo as paixões negativas presentes no corpo social e nomeadamente nas classes populares; oferecer outras perspetivas e esboçar assim um futuro para aquilo que poderia de novo chamar-se a esquerda.” (p. 146)
Texto da autoria de Jorge Navarro

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