“Reims
surge-me, não somente como um ancoradouro familiar e social (…),
mas também (…) como a cidade do insulto.” (p. 187)
“Sou um
produto da injúria. Um filho da vergonha.” (p. 190)
Num
registo autobiográfico, o filósofo e sociólogo Didier Eribon (n.
1953) procura compreender a realidade social onde cresceu, tecendo
considerações importantes sobre a evolução do pensamento na
França, a partir da década de 50, e de que forma a direita e a
extrema-direita têm ganhado expressão desde então.
O
autor cresceu em Reims, uma cidade a cerca de 150 km de Paris, que se
debatia ainda com a reconstrução e sobrevivência do segundo
após-guerra. A baixa escolaridade dos seus habitantes consolidava em
certa medida o determinismo social a que estavam sujeitos, na medida
em que os rapazes ao abandonarem a escola tornavam-se operários ou
dedicavam-se a pequenos ofícios que não requeriam grande
especialização tecnológica, ao passo que as raparigas trabalhavam
em limpezas e outras tarefas domésticas. Os jovens casavam-se cedo e
tinham vários filhos, o que, no seu conjunto, numa época anterior
ao Maio de 68, contribuía para a perpetuação de pobreza e miséria
nos estratos
sociais mais baixos em França.
Este
“Regresso a Reims” após a morte do seu pai com quem, há muitos
anos não mantinha qualquer contacto, permitiu a Didier Eribon, na
reaproximação com a sua mãe, tentar compreender a história de
violência a que esteve sujeito durante os vinte anos em que viveu
com a sua família, tentando compreender a génese dessa mesma
violência.
Identificando-se
como homossexual, é em Reims que o autor constrói a sua identidade,
confrontando-se desde tenra idade com o insulto, sofrendo emocional e
psicologicamente na sequência de ter sido vítima de perseguição e
de gozo tanto no seio da família, como no bairro onde vivia e na
escola. “Reims surge-me, não somente como um ancoradouro familiar
e social (…), mas também (…) como a cidade do insulto.” (p.
187) “Sou um produto da injúria. Um filho da vergonha.” (p. 190)
Era
imperativo sair de Reims. Era preciso romper com aquela vida que
teria somente a continuidade do preconceito, do racismo, da
xenofobia, de toda e qualquer mudança que se verificasse no ‘ethos’
social. Romper com Reims era sinónimo de cortar ligações com a
família e com toda uma realidade social de permanente violência.
Ainda que Paris estivesse na mira de Didier Eribon, era por via dos
estudos que seria possível esse corte. Mais tarde, o próprio autor
viria a compreender que mesmo com estudos, o secundário, uma
licenciatura, mestrado e doutoramento, o seu passado social ligado ao
meio operário e à esquerda perseguiam-no. “O que hoje sou
formou-se pelo entrecruzar desses dois percursos: eu tinha-me mudado
para Paris com a dupla esperança de viver livremente a minha vida
gay e de tornar-me um «intelectual».” (p. 217)
Refugiando-se
desde cedo nos livros, mesmo quando a sua família não tinha hábitos
de leitura, o autor tornou-se um acérrimo defensor das ideias de
Sartre que num dos seus livros sobre Jean Genet, encontrou aquela que
viria a constituir a “mola” para se impor a si mesmo a decisão
de agir e de romper com aquele meio social estagnado, conservador,
asfixiante, preconceituoso e homofóbico. “O importante não é o
que fazem de nós, mas o que nós próprios fazemos daquilo que
fizeram de nós.” (p. 212) Ainda sobre este ponto em particular,
Didier Eribon afirma “(…) A homossexualidade impõe que se
encontre uma solução para não sufocar. Não posso deixar de pensar
que a distância que se instaurou – que me esforcei por instaurar –
com o meu meio social e a autocriação de mim mesmo como
«intelectual» foram a maneira que eu inventei para lidar com aquilo
em que estava a tornar-me e que não poderia ser sem me diferenciar
daqueles de quem diferia.” (pp. 188-189)
Nas
últimas páginas, no epílogo deste seu doloroso e reflexivo
“Regresso a Reims”, o autor lamenta não ter procurado o pai
durante os anos do silêncio na tentativa de o compreender,
compreender as suas motivações tentando compreender o tecido social
envolvente. “Lamentei, em suma, ter deixado a violência do mundo
social impor-se-me, como também a ele se lhe impusera.” (p. 230)
Por
muito que se tente romper com o meio social que nos oprime e agride,
Didier Eribon alude que um corte decisivo é impossível dadas as
origens, as raízes, o passado. Podemos falar de reinvenção e
reformulação, mas nunca ocorrem a partir do nada, daí que “nunca
se é totalmente livre, nunca se está libertado.” (p. 211) “(…)
A transformação de si não se opera nunca sem integrar as marcas do
passado: conserva esse passado, simplesmente porque ele é o mundo em
que se foi socializado, mundo esse que permanece em larga medida
presente em nós e à nossa volta, no mundo em que doravante vivemos.
O nosso passado é ainda o nosso presente. Por consequência,
reformulamo-nos, recriamo-nos (como uma tarefa que é preciso retomar
indefinidamente), mas não nos formulamos, não nos criamos.” (p.
212)
Mas
este “Regresso a Reims” não se traduz somente num reencontro do
autor com o seu antigo ambiente familiar e com as diferenças sociais
e culturais que opõem as ideias de estagnação e de
desenvolvimento, de perpetuação da pobreza quase como um valor
defendido pelas classes populares ainda que sem a consciência de que
somente se deve a elas mesmas essa mesma condição pelo facto de não
terem apostado mais seriamente nos estudos em oposição ao percurso
de ruptura concretizado pelo autor.
Didier
Eribon apresenta-nos uma linha de pensamento que em muito contribui
para a compreensão não só da França actual (mesmo tendo passado
uma década após a edição da presente obra), mas também porque,
em certa medida, estes são os grandes temas fracturantes na Europa
de hoje. Depois do Maio de 1968, os partidos de esquerda eliminaram
progressivamente dos seus discursos a expressão “classe operária”,
o que veio a beneficiar a direita e a extrema-direita (Frente
Nacional) ainda que de modo descontínuo. Ao eliminar do discurso
político de esquerda a ideia de conflito de classe e reivindicações
dos trabalhadores, as massas populares deixam de se identificar com
aquela tendência política na medida em que a esquerda de outrora
deixou de representar esta parte do eleitorado, ganhando, desta
forma, a direita e a extrema-direita através da nova conjuntura da
França na sequência da forte imigração que se faz sentir à
época.
Antes
da greve, franceses e imigrantes têm um inimigo comum que era o
patronato, mas a ideia de que os estrangeiros beneficiem dos mesmos
direitos que os franceses, passa a ser o novo mote político,
aumentando assim o racismo, a xenofobia e a violência que se fomenta
fruto destes conflitos, também eles sociais, quando todos lutam pela
sobrevivência. “Quando a esquerda se revela incapaz de
organizar-se enquanto espaço e crisol em que se formam os
questionamentos e também em que se investem os desejos e as
energias, são a direita ou a extrema-direita que conseguem
acolhê-los e atraí-los.” (p. 146)
Perante
a violência que ganhou terreno ao longo da última década em França
e no resto da Europa, na sequência dos movimentos migratórios
oriundos maioritariamente de África, Didier Eribon faz um apelo: “A
tarefa que incumbe aos movimentos sociais e aos intelectuais críticos
é pois: construir quadros teóricos e modos de perceção políticos
da realidade que permitam, não apagar – o que seria impossível -,
mas neutralizar ao máximo as paixões negativas presentes no corpo
social e nomeadamente nas classes populares; oferecer outras
perspetivas e esboçar assim um futuro para aquilo que poderia de
novo chamar-se a esquerda.” (p. 146)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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