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sexta-feira, 19 de abril de 2019

A Escolha do Jorge: "Kentukis"


Porque é que as histórias eram tão insignificantes, tão minuciosamente íntimas, mesquinhas e previsíveis? Tão desesperadamente humanas.” (p. 185)

Temos aos poucos vindo a conhecer a obra da escritora argentina Samanta Schweblin (n. 1978), primeiro com a colectânea de contos “Pássaros na Boca”, reeditado no ano passado, que não deixa o leitor indiferente, face ao seu carácter surreal aliado a uma vertente de realismo mágico tão presente na literatura latino-americana. “Distância de Segurança” (2017), o seu primeiro romance foi também bastante reconhecido, tendo sido Finalista do Prémio Internacional Man Booker.
“Kentukis” é o segundo romance de Samanta Schweblin, publicado recentemente em Portugal e volta a confirmar a escritora como um dos nomes das letras que devemos seguir com atenção.
Partindo de uma premissa do conhecimento de todos baseada em redes sociais e reality shows que vieram a revolucionar a sociedade na forma como se estabelecem as relações entre as pessoas, Samanta Schweblin vai mais longe no que concerne à ideia de tornar os espectadores em voyeuristas de sofá, numa lógica em que, à distância, podem participar, manobrar e até condicionar a realidade de terceiros, numa espécie de deuses a manipular as rotinas de perfeitos desconhecidos como se se tratasse de um videogame.
Sem regras, nem legislação que determine o consumo e a utilização generalizados de kentukis – pequenos bonecos de peluche com trinta centímetros de altura sob a forma de animais (corvo, coelho, toupeira e até dragão, este o mais procurado) com uma câmara incorporada, tendo um carregador e ainda uma forma de ligação à distância de modo a promover a interacção entre os dois lados -, assistimos a uma moda que adquire proporções de massificação à escala mundial, permitindo a interacção/comunicação entre duas pessoas de diferentes países e até de continentes diferentes.
Aparentemente inocentes, os kentukis ou “telefone com rodas” (p. 105) ganham a simpatia de pessoas de todas as idades, desde as crianças, por assumirem o papel de brinquedos, mas para os adolescentes e os adultos sempre numa lógica de distracção ou a curiosidade extrema de saber como é a vida dos outros. Que ideia estúpida era essa? O que pretendiam as pessoas todas ao circular no chão de casas alheias, observando a outra metade da humanidade a lavar os dentes?” (p. 185)
Mas esta questão é ainda mais complexa sobretudo quando se pode decidir “ser” ou “ter” um kentuki ou ainda “ser kentuki” e “ser amo” em simultâneo. Uma pessoa pode possuir um kentuki e passar a ter a sua vida observada por um desconhecido ou por e simplesmente adquirir uma ligação/conexão que lhe permitirá observar a vida de terceiros através de um kentuki, num qualquer ponto distante do planeta. A outra fórmula, a terceira, é ser detentor de um kentuki, passando a ser observado, e através de uma ligação/conexão, exerce a função de voyeur, ou seja, observa e é observado.
Seja qual for a condição, há kentukis e ligações/conexões para todos os gostos e sempre numa lógica de um videogame, estando de lado toda a dimensão ética-moral, numa perspectiva de invadir o espaço alheio e o de ver o seu invadido.
Ao longo das várias histórias que se vão desenrolando ao longo da narrativa, vamos percebendo da falta de consciência face ao que poderá estar por detrás destas ligações/conexões, algo duvidosas, que se estabelecem entre desconhecidos.
Por brincadeira, como forma de combater a solidão ou por mera casualidade, nem sempre estes kentukis são utilizados por pessoas cuja finalidade é propriamente o entretenimento. Percebemos no decurso da narrativa que, graças à ausência de legislação aplicada a esta tecnologia, há indivíduos que, num ápice, encaram os kentukis como ferramenta fácil e eficaz para perpetrar algum crime de maior envergadura ainda que apresentado de modo (quase) inocente. Quem resiste à interacção dócil de pequenos animais que requerem tão-somente a nossa atenção sem termos de nos preocupar com comida, água ou de lhes mudar o areão como aos animais domésticos?
A ausência de legislação aplicada aos kentukis, a par da falta de consciência dos seus utilizadores conduz a que muitas pessoas sejam apanhadas numa rede sem precedentes. O vício que, em muitos casos, tem como objectivo o combater a solidão ou o mero entretenimento, leva a que, tantas vezes, as pessoas sejam surpreendidas negativamente, sem terem medido as consequências dos seus actos.
De Zagreb a Tel Aviv, de Antígua à Serra Leoa, de Lima a Hong Kong, os kentukis vão revolucionar o mundo e a forma como a sociedade estabelece relações entre si. Actual, enigmático e electrizante, este novo romance de Samanta Schweblin coloca o dedo na ferida, fazendo o retrato de uma sociedade podre que se desfaz a si própria, em que todos são responsáveis e ninguém sai incólume face a atitudes inconsequentes desmedidas. Em certos momentos da narrativa, “Kentukis” assume o tom de thriller, uma das características presentes na escrita de Samanta Schweblin.
A ilusão de um videogame traz consequências atrozes aos utilizadores dos kentukis, seja quem observa, seja quem é observado e, não raras vezes, com a ânsia de observar o alheio, deparamo-nos com o inesperado, como roubos, raptos, redes de pedofilia e tantos outros crimes também promovidos por este género de tecnologias.
Samanta Schweblin é certeira e desmascara o leitor, deixando-o desconcertado, inquieto e até triste nalguns momentos. “Kentukis” impõe-se como um romance obrigatório que nos leva a questionar e a compreender a sociedade contemporânea, numa época em que a tecnologia adquire um enorme impacto nas vidas das pessoas, tal como os kentukis que só ganham terreno na sequência da deterioração das relações humanas.
Com ecos de “A Ilha de Morel” entre outros contos do argentino Adolfo Bioy Casares, Samanta Schweblin é cada vez mais apontada como uma das seguidoras daquele escritor assim como de Jorge Luis Borges, nomes maiores da literatura latino-americana, em especial, da Argentina.
“Kentukis” pode também ser encarado como uma espécie de distopia, mas sem regras. Há toda uma sociedade que se move através e em função dos kentukis, tentando manobrar e controlar terceiros, controlando todo o mundo, assente, porém, na inquietação, humilhação, vingança e crueldade. Desligada a conexão, resta o vazio.

Excertos:
“«Olá.»
No telefone, a voz dela soava mais severa e adulta.
«A sua coelhinha acaba de me enviar fotografias em que a senhora aparece a falar ao telefone com o meu namorado.
Tratava-a por você.
«Mostrou-nos fotografias da sua casa repleta de fotos de nós os dois. E também fotografias em que surge a senhora. Acho que a sua coelhinha puritana está furiosa.»
Emilia queria compreender o que se estava a passar, mas não era capaz.
«A sua coelhinha parece estar muito desiludida com a ama. E eu quero dizer-lhe uma coisa…»
A voz de Eva ficou mais grave e vagarosa, tão sensual que os pelos da nuca de Emilia se eriçaram. «Emilia» - sabia o seu nome, - «gosto muito, muito, da sua roupa interior de velha.»
Tinham-na visto com as suas cuecas beges? As que lhe chegam quase até às mamas?
«Muito» - disse Eva, olhando para Klaus, - «gostamos muito.»
Emilia deu um salto na cadeira e derramou o chá que tinha a seu lado. Estava de pé, sem saber o que fazer, com o coração a bater perigosamente acelerado. Apercebeu-se de que ainda tinha o telefone encostado ao ouvido.
- Menina… - tentou dizer, e a sua voz débil e rouca recordou-a de quão velha estava.
Não sabia como poderia continuar. Desligou a chamada. Em Erfurt, Eva olhou para o telefone e disse algo a Klaus, que se riu às gargalhadas, agarrou num dos braços de Eva, levantou-a num puxão e começou a despir-lhe os calções de ioga. Emilia desligou o ecrã, furiosa. Depois, voltou a ligá-lo, e nesse instante Eva estava a despir as cuecas de Klaus. Como se desligava aquele pesadelo? Analisou o painel de controlo e encontrou o botão vermelho que lhe tinha passado despercebido tantas vezes.
«Deseja anular a sua conexão?»” (pp. 202-203)
E então compreendeu o que sentia: não queria continuar a ver desconhecidos a comer e a roncar, não queria voltar a presenciar os gritos de terror de um único pintainho enquanto os outros o enervavam ao ponto de o fazerem perder as penas, não queria levar mais nenhuma pessoa de um inferno para outro. Não ficaria à espera de que as abençoadas regulações internacionais, já demasiado atrasadas, surgissem para se ver obrigado a deixar aquele negócio. Iria sair daquilo por decisão própria. Venderia todos os aparelhos que ainda tinha e dedicar-se-ia a outra coisa. Acedeu ao painel de configuração e, sem se preocupar sequer em tirar o kentuki daquela casa, cortou a ligação.” (p. 196)
Texto da autoria de Jorge Navarro

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