“Porque
é que as histórias eram tão insignificantes, tão minuciosamente
íntimas, mesquinhas e previsíveis? Tão desesperadamente humanas.”
(p. 185)
Temos
aos poucos vindo a conhecer a obra da escritora argentina Samanta
Schweblin (n. 1978), primeiro com a colectânea de contos “Pássaros
na Boca”, reeditado no ano passado, que não deixa o leitor
indiferente, face ao seu carácter surreal aliado a uma vertente de
realismo mágico tão presente na literatura latino-americana.
“Distância de Segurança” (2017), o seu primeiro romance foi
também bastante reconhecido, tendo sido Finalista do Prémio
Internacional Man Booker.
“Kentukis”
é o segundo romance de Samanta Schweblin, publicado recentemente em
Portugal e volta a confirmar a escritora como um dos nomes das letras
que devemos seguir com atenção.
Partindo
de uma premissa do conhecimento de todos baseada em redes sociais e
reality shows que vieram a revolucionar a sociedade na forma como se
estabelecem as relações entre as pessoas, Samanta Schweblin vai
mais longe no que concerne à ideia de tornar os espectadores em
voyeuristas de sofá, numa lógica em que, à distância, podem
participar, manobrar e até condicionar a realidade de terceiros,
numa espécie de deuses a manipular as rotinas de perfeitos
desconhecidos como se se tratasse de um videogame.
Sem
regras, nem legislação que determine o consumo e a utilização
generalizados de kentukis – pequenos bonecos de peluche com trinta
centímetros de altura sob a forma de animais (corvo, coelho,
toupeira e até dragão, este o mais procurado) com uma câmara
incorporada, tendo um carregador e ainda uma forma de ligação à
distância de modo a promover a interacção entre os dois lados -,
assistimos a uma moda que adquire proporções de massificação à
escala mundial, permitindo a interacção/comunicação entre duas
pessoas de diferentes países e até de continentes diferentes.
Aparentemente
inocentes, os kentukis ou “telefone com rodas” (p. 105) ganham a
simpatia de pessoas de todas as idades, desde as crianças, por
assumirem o papel de brinquedos, mas para os adolescentes e os
adultos sempre numa lógica de distracção ou a curiosidade extrema
de saber como é a vida dos outros. “Que
ideia estúpida era essa? O que pretendiam as pessoas todas ao
circular no chão de casas alheias, observando a outra metade da
humanidade a lavar os dentes?” (p. 185)
Mas
esta questão é ainda mais complexa sobretudo quando se pode decidir
“ser” ou “ter” um kentuki ou ainda “ser kentuki” e “ser
amo” em simultâneo. Uma pessoa pode possuir um kentuki e passar a
ter a sua vida observada por um desconhecido ou por e simplesmente
adquirir uma ligação/conexão que lhe permitirá observar a vida de
terceiros através de um kentuki, num qualquer ponto distante do
planeta. A outra fórmula, a terceira, é ser detentor de um kentuki,
passando a ser observado, e através de uma ligação/conexão,
exerce a função de voyeur, ou seja, observa e é observado.
Seja
qual for a condição, há kentukis e ligações/conexões para todos
os gostos e sempre numa lógica de um videogame, estando de lado toda
a dimensão ética-moral, numa perspectiva de invadir o espaço
alheio e o de ver o seu invadido.
Ao
longo das várias histórias que se vão desenrolando ao longo da
narrativa, vamos percebendo da falta de consciência face ao que
poderá estar por detrás destas ligações/conexões, algo
duvidosas, que se estabelecem entre desconhecidos.
Por
brincadeira, como forma de combater a solidão ou por mera
casualidade, nem sempre estes kentukis são utilizados por pessoas
cuja finalidade é propriamente o entretenimento. Percebemos no
decurso da narrativa que, graças à ausência de legislação
aplicada a esta tecnologia, há indivíduos que, num ápice, encaram
os kentukis como ferramenta fácil e eficaz para perpetrar algum
crime de maior envergadura ainda que apresentado de modo (quase)
inocente. Quem resiste à interacção dócil de pequenos animais que
requerem tão-somente a nossa atenção sem termos de nos preocupar
com comida, água ou de lhes mudar o areão como aos animais
domésticos?
A
ausência de legislação aplicada aos kentukis, a par da falta de
consciência dos seus utilizadores conduz a que muitas pessoas sejam
apanhadas numa rede sem precedentes. O vício que, em muitos casos,
tem como objectivo o combater a solidão ou o mero entretenimento,
leva a que, tantas vezes, as pessoas sejam surpreendidas
negativamente, sem terem medido as consequências dos seus actos.
De Zagreb a Tel Aviv, de
Antígua à Serra Leoa, de Lima a Hong Kong, os kentukis vão
revolucionar o mundo e a forma como a sociedade estabelece relações
entre si. Actual, enigmático e electrizante, este novo romance de
Samanta Schweblin coloca o dedo na ferida, fazendo o retrato de uma
sociedade podre que se desfaz a si própria, em que todos são
responsáveis e ninguém sai incólume face a atitudes inconsequentes
desmedidas. Em certos momentos da narrativa, “Kentukis” assume o
tom de thriller, uma das características presentes na escrita de
Samanta Schweblin.
A
ilusão de um videogame traz consequências atrozes aos utilizadores
dos kentukis, seja quem observa, seja quem é observado e, não raras
vezes, com a ânsia de observar o alheio, deparamo-nos com o
inesperado, como roubos, raptos, redes de pedofilia e tantos outros
crimes também promovidos por este género de tecnologias.
Samanta
Schweblin é certeira e desmascara o leitor, deixando-o
desconcertado, inquieto e até triste nalguns momentos. “Kentukis”
impõe-se como um romance obrigatório que nos leva a questionar e a
compreender a sociedade contemporânea, numa época em que a
tecnologia adquire um enorme impacto nas vidas das pessoas, tal como
os kentukis que só ganham terreno na sequência da deterioração
das relações humanas.
Com
ecos de “A Ilha de Morel” entre outros contos do argentino Adolfo
Bioy Casares, Samanta Schweblin é cada vez mais apontada como uma
das seguidoras daquele escritor assim como de Jorge Luis Borges,
nomes maiores da literatura latino-americana, em especial, da
Argentina.
“Kentukis”
pode também ser encarado como uma espécie de distopia, mas sem
regras. Há toda uma sociedade que se move através e em função dos
kentukis, tentando manobrar e controlar terceiros, controlando todo o
mundo, assente, porém, na inquietação, humilhação, vingança e
crueldade. Desligada a conexão, resta o vazio.
Excertos:
“«Olá.»
No
telefone, a voz dela soava mais severa e adulta.
«A
sua coelhinha acaba de me enviar fotografias em que a senhora aparece
a falar ao telefone com o meu namorado.
Tratava-a
por você.
«Mostrou-nos
fotografias da sua casa repleta de fotos de nós os dois. E também
fotografias em que surge a senhora. Acho que a sua coelhinha puritana
está furiosa.»
Emilia
queria compreender o que se estava a passar, mas não era capaz.
«A
sua coelhinha parece estar muito desiludida com a ama. E eu quero
dizer-lhe uma coisa…»
A
voz de Eva ficou mais grave e vagarosa, tão sensual que os pelos da
nuca de Emilia se eriçaram. «Emilia» - sabia o seu nome, - «gosto
muito, muito, da sua roupa interior de velha.»
Tinham-na
visto com as suas cuecas beges? As que lhe chegam quase até às
mamas?
«Muito»
- disse Eva, olhando para Klaus, - «gostamos muito.»
Emilia
deu um salto na cadeira e derramou o chá que tinha a seu lado.
Estava de pé, sem saber o que fazer, com o coração a bater
perigosamente acelerado. Apercebeu-se de que ainda tinha o telefone
encostado ao ouvido.
-
Menina… - tentou dizer, e a sua voz débil e rouca recordou-a de
quão velha estava.
Não
sabia como poderia continuar. Desligou a chamada. Em Erfurt, Eva
olhou para o telefone e disse algo a Klaus, que se riu às
gargalhadas, agarrou num dos braços de Eva, levantou-a num puxão e
começou a despir-lhe os calções de ioga. Emilia desligou o ecrã,
furiosa. Depois, voltou a ligá-lo, e nesse instante Eva estava a
despir as cuecas de Klaus. Como se desligava aquele pesadelo?
Analisou o painel de controlo e encontrou o botão vermelho que lhe
tinha passado despercebido tantas vezes.
«Deseja
anular a sua conexão?»” (pp. 202-203)
“E
então compreendeu o que sentia: não queria continuar a ver
desconhecidos a comer e a roncar, não queria voltar a presenciar os
gritos de terror de um único pintainho enquanto os outros o
enervavam ao ponto de o fazerem perder as penas, não queria levar
mais nenhuma pessoa de um inferno para outro. Não ficaria à espera
de que as abençoadas regulações internacionais, já demasiado
atrasadas, surgissem para se ver obrigado a deixar aquele negócio.
Iria sair daquilo por decisão própria. Venderia todos os aparelhos
que ainda tinha e dedicar-se-ia a outra coisa. Acedeu ao painel de
configuração e, sem se preocupar sequer em tirar o kentuki daquela
casa, cortou a ligação.” (p. 196)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Muitos Parabéns por este texto, continuação de boas leituras
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