“Tatiana
Ivanovna murmurou: «Em nossa casa…», e calou-se. De que servia?
Tinha-se acabado há muito tempo… Estava tudo acabado, morto…”
(p. 75)
Irène
Némirovsky (1903-1942) é uma das mais importantes escritoras do
século passado, cujo nome voltou a ser recuperado na sequência da
descoberta do manuscrito inacabado de “Suite Francesa” pela sua
filha Denise Epstein-Dauplé, em 2004, e que rapidamente se tornou um
sucesso tendo sido adaptado ao grande ecrã,em 2015, por ocasião da
comemoração dos 70 anos da libertação de Auschwitz.
“David
Golder” (1930) foi o primeiro romance de Irène Némirovsky, que se
tornou numa das revelações da literatura daquele ano. No ano
seguinte, em 1931, a escritora volta a repetir a fórmula de sucesso
com a edição de “O Baile” e, em 1932, é publicado “As Moscas
de Outono,” que é agora publicado pela primeira vez em Portugal.
De
um modo geral, as obras de Irène Némirovsky têm bastante de
autobiográfico, tanto as questões familiares e, em particular, a
difícil relação com a mãe, como o percurso feito pela sua família
de tradição judaica que emigra da Ucrânia para Paris. Estes
aspectos são muito frequentes nas suas obras e, no caso específico
de “As Moscas de Outono” não é excepção.
Este
romance breve tem como personagem principal Tatiana Ivanovna, uma
senhora que viveu durante meio século com a família Karine,
acompanhando de perto duas gerações desta família ucraniana.
Tatiana Ivanovna era a responsável pela educação dos filhos da
família que, por sua vez, se tornaram pais, criando também os
filhos daqueles. Com fortes ligações à terra e à família que a
adoptou depois da perda do marido e do filho, Tatiana Ivanovna vê
nesta família a sua família e os filhos como sendo o filho falecido
e os demais que não teve.
É
Tatiana Ivanovna quem comunica à família a morte de Youri, em 1918,
no final da 1ª Guerra Mundial e, a partir daí, acompanha os Karine
rumo ao Ocidente, para Paris, onde a família iniciará uma nova
vida.
Fascinados
pela vida parisiense, os Karine, vibram com a nova realidade, numa
época também marcada pelo final da guerra e pelo frenesim de
retomar a vida normal, os estudos, as festas, os namoros, os
convívios, os “loucos anos 20” a imporem-se aos poucos com
aquele desejo imenso de viver intensamente a vida.
Mas
Tatiana Ivanovna já se sente velha e cansada e cada vez menos
prestável e esta nova vida. Numa cidade distante da sua terra natal
em que tudo lhe é estranho, Tatiana Ivanovna deseja pela neve que
tarda em chegar e que seria ao menos a única alegria que Paris lhe
poderia oferecer. Ligada para todo o sempre à solidão trazida com a
morte de Youri, Tatiana Ivanovna ficou presa ao passado e agarrada às
memórias. A morte de Youri quebrou algo dentro de Tatiana Ivanovna,
a sua vida apagou-se deixando de fazer sentido porque Youri era como
que o substituto do seu próprio filho que perdera anos antes.
“As
Moscas de Outono” é um romance de amor e perda. Amor incondicional
centrado numa mulher que tudo o que perde, dá em amor, por amor aos
outros que também a reconhecem como um elemento fundamental no seio
da sua família.
“As
Moscas de Outono” é melancolia em estado puro. Qualquer um dos
romances de Irène Némirovsky tem algo de extraordinário que nos
leva a mergulhar nas narrativas e a amar os seus personagens – a
detestá-los também, se for caso disso -, mas a essência deste
romance alude, em certa medida, para o inolvidável conto de Nicolai
Gógol “O Capote” ou “O Chefe de Estação Fallmerayer” e “A
Marcha de Radetzky” de Joseph Roth.
Poderíamos
afirmar que Irène Némirovsky é uma genuína herdeira daqueles
escritores, daquele espírito e de uma cultura que se perderam com a
2ª Guerra Mundial, tendo também a própria escritora sido vítima
da perseguição nazi, pela sua ascendência judaica, vindo a falecer
em Auschwitz, em 1942.
Excertos:
"O
apartamento era pequeno, escuro, abafado; cheirava a poeira, a
tecidos velhos; o tecto baixo parecia pesar sobre as cabeças; das
janelas via-se o pátio, estreito e profundo, de muros caiados, que
reverberavam cruelmente o sol de Julho. Ao despontar da manhã
fechavam os postigos e os batentes das janelas, e nessas quatro
pequenas divisões escuras, os Karine viviam até à noite, sem sair,
estonteados com os ruídos de Paris, respirando com desconforto os
fedores das pias de despejo das cozinhas, que subiam do pátio. Eles
iam, vinham, de um muro ao outro, silenciosamente, como as moscas de
Outono, quando o calor, a luz e o verão aparecem, coam penosamente,
exaustas e arreliadas, contra os vidros, arrastando as asas mortas.”
(pp. 51-52)
"Quando
ficou sozinha, foi sentar-se diante do retrato de Youri. O olhar dela
fixava-o, mas outras imagens passavam-lhe igualmente na recordação,
mais antigas, e esquecidas por todos. Rostos defuntos, vestidos
velhos de meados do século, apartamentos abandonados... Lembrava-se
do primeiro gritinho queixoso e estridente de Youri... «Como se
soubesse o que o esperava», pensou ela. «Os outros não choraram
assim...» Depois sentou-se à janela e começou a remendar as
meias." (p. 67)
"-
Quando é que o Inverno chega, afinal? - dizia. - Ah, meu Deus, já
faz imenso tempo que não vemos nem o frio nem o gelo... O Outono é
bem grande, aqui... Em Karinovka, de certeza, já está tudo branco,
e o rio congelou... Lembra-se, Nicolas Alexandrovitch, quando tinha
três, quatro anos, eu, eu era jovem nessa altura, e a sua falecida
mãe dizia: "Tatiana, vê-se bem que és do Norte, minha
filha... À primeira neve, perdes o tino." Lembra-se?
- Não - murmurava Nicolas Alexandrovitch com um ar cansado.
- Eu lembro-me, e daqui a pouco - resmungava ela - só vou ficar eu para recordar..." (p. 70)
- Não - murmurava Nicolas Alexandrovitch com um ar cansado.
- Eu lembro-me, e daqui a pouco - resmungava ela - só vou ficar eu para recordar..." (p. 70)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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