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sexta-feira, 12 de abril de 2019

A Escolha do Jorge: “Em tudo havia beleza”



A vida de um ser humano é a construção de relevos que a morte e o tempo acabarão por alisar.”  (p. 79)
Reconhecido como um dos principais nomes da poesia contemporânea espanhola e com inúmeros prémios recebidos, Manuel Vilas (n. 1962) viu recentemente o seu nome na ribalta com a edição do seu romance “Ordesa” que em Portugal recebe o título “Em tudo havia beleza”, tornando-se num dos livros-sensação do país vizinho ao longo do último ano.
Num registo autobiográfico e profundamente intimista e confessional, Manuel Vilas conquista o leitor a partir da primeira página. Com capítulos curtos e com uma escrita fluida e incisiva, o autor alude a três temas em concreto: a morte dos pais, a pobreza e o alcoolismo.

Numa fase da vida tida habitualmente por meia-idade, é também o tempo de fazer balanços, entre ganhos e perdas de toda uma vida. Recuperando um estilo muito próximo do de Sebald, embarcamos na vida e nas memórias de Manuel Vilas que segue em linha com a história das últimas décadas de Espanha, desde os últimos anos da ditadura à passagem para o regime democrático. Ler “Em tudo havia beleza” é também uma forma de viajarmos pela história da nossa família, pelo menos num trajecto de três a quatro gerações e, tratando-se do país vizinho, com tantos pontos em comum com o nosso país, tanto do ponto de vista político, como no que respeita às vivências, é uma viagem que também diz muito das memórias que coleccionamos do Portugal das últimas décadas.
A morte é uma constante em toda a obra na medida em que os pais do autor, apelidados de Bach e Wagner, estão sempre presentes, como uma ode que lhes presta ao longo desta sua confissão. Não raras vezes criticamos os lugares-comuns e não menos em escritores quase como que algo que lhes é imposto no que concerne a algo relacionado com originalidade. Mas o que tem de original uma vida que tem a morte como seu oposto e como o de mais certo que temos na vida? Em jovens sonhamos com os dias quentes e longos do Verão, metáfora associada a uma quase eterna juventude, mas passados esses anos já nos vemos a fazer balanços e a compreender e a aceitar a nossa passagem pelo mundo dando lugar a outros. “Eram os anos setenta, quando a vida andava mais devagar e era possível vê-la. Os Verões eram eternos, as tardes infinitas, e os rios não estavam poluídos.” (p. 235) “Passamos pelo mundo, e depois vamo-nos embora. Deixamos o mundo a outros, que vêm e fazem o que podem.” (p. 191)
“Em tudo havia beleza” é um livro que pode ser aberto em qualquer capítulo e ler à vontade sem a necessidade de saber o que está para trás. É um livro que rapidamente se transforma em livro de cabeceira fazendo-nos parar e reflectir sobre a nossa vida, sobre os ganhos e as perdas, o que fizemos bem e onde errámos. Fazemos o que podemos e o que conseguimos.
Não é todos os dias que um escritor, em tom confessional, assume as suas fraquezas e as suas dificuldades perante os seus leitores e, neste caso em concreto, perante todo um país que se identifica com as suas palavras e pensamentos.
Uma coisa é um escritor criar uma narrativa com personagens com dadas características, circunstâncias e vivências ainda que contagiem os leitores, mas outra é quando esse contágio é feito com aspectos em concreto da nossa vida e da nossa família dado que a exposição a terceiros nem sempre é fácil de gerir. Mas Manuel Vilas fá-lo com grande mestria graças a uma escrita elegante e deveras visual recorrendo às suas memórias que, afinal, são muito próximas das memórias das pessoas da sua geração.
“Em tudo havia beleza” termina em grande estilo, com dois parágrafos notáveis que fazem a ponte entre os seus pais e ele próprio porque nada há de mais belo do que gerar uma vida por amor.
“Mas essa noite de Novembro de 1961 existiu e continua a existir. Essa noite de amor, esse apartamento moderno, as paredes recém-pintadas, os móveis recém-estreados, as mãos jovens dos esposos, os beijos, o futuro que é só uma ideia esperançosa, o poder dos corpos, tudo isso continua em mim.
Grande noite de 1961, mês de Novembro, tranquilo, benigno, doce. Continuas viva. Noite que continuas viva. Não te vais embora. Danças comigo uma dança de amor.” (p. 367)
Um livro notável e uma grande surpresa no início deste ano.
Texto da autoria de Jorge Navarro



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