“A
vida de um ser humano é a construção de relevos que a morte e o
tempo acabarão por alisar.” (p. 79)
Reconhecido
como um dos principais nomes da poesia contemporânea espanhola e com
inúmeros prémios recebidos, Manuel Vilas (n. 1962) viu recentemente
o seu nome na ribalta com a edição do seu romance “Ordesa” que
em Portugal recebe o título “Em tudo havia beleza”, tornando-se
num dos livros-sensação do país vizinho ao longo do último ano.
Num
registo autobiográfico e profundamente intimista e confessional,
Manuel Vilas conquista o leitor a partir da primeira página. Com
capítulos curtos e com uma escrita fluida e incisiva, o autor alude
a três temas em concreto: a morte dos pais, a pobreza e o
alcoolismo.
Numa
fase da vida tida habitualmente por meia-idade, é também o tempo de
fazer balanços, entre ganhos e perdas de toda uma vida. Recuperando
um estilo muito próximo do de Sebald, embarcamos na vida e nas
memórias de Manuel Vilas que segue em linha com a história das
últimas décadas de Espanha, desde os últimos anos da ditadura à
passagem para o regime democrático. Ler “Em tudo havia beleza” é
também uma forma de viajarmos pela história da nossa família, pelo
menos num trajecto de três a quatro gerações e, tratando-se do
país vizinho, com tantos pontos em comum com o nosso país, tanto do
ponto de vista político, como no que respeita às vivências, é uma
viagem que também diz muito das memórias que coleccionamos do
Portugal das últimas décadas.
A
morte é uma constante em toda a obra na medida em que os pais do
autor, apelidados de Bach e Wagner, estão sempre presentes, como uma
ode que lhes presta ao longo desta sua confissão. Não raras vezes
criticamos os lugares-comuns e não menos em escritores quase como
que algo que lhes é imposto no que concerne a algo relacionado com
originalidade. Mas o que tem de original uma vida que tem a morte
como seu oposto e como o de mais certo que temos na vida? Em jovens
sonhamos com os dias quentes e longos do Verão, metáfora associada
a uma quase eterna juventude, mas passados esses anos já nos vemos a
fazer balanços e a compreender e a aceitar a nossa passagem pelo
mundo dando lugar a outros. “Eram os anos setenta, quando a vida
andava mais devagar e era possível vê-la. Os Verões eram eternos,
as tardes infinitas, e os rios não estavam poluídos.” (p. 235)
“Passamos pelo mundo, e depois vamo-nos embora. Deixamos o mundo a
outros, que vêm e fazem o que podem.” (p. 191)
“Em
tudo havia beleza” é um livro que pode ser aberto em qualquer
capítulo e ler à vontade sem a necessidade de saber o que está
para trás. É um livro que rapidamente se transforma em livro de
cabeceira fazendo-nos parar e reflectir sobre a nossa vida, sobre os
ganhos e as perdas, o que fizemos bem e onde errámos. Fazemos o que
podemos e o que conseguimos.
Não
é todos os dias que um escritor, em tom confessional, assume as suas
fraquezas e as suas dificuldades perante os seus leitores e, neste
caso em concreto, perante todo um país que se identifica com as suas
palavras e pensamentos.
Uma
coisa é um escritor criar uma narrativa com personagens com dadas
características, circunstâncias e vivências ainda que contagiem os
leitores, mas outra é quando esse contágio é feito com aspectos em
concreto da nossa vida e da nossa família dado que a exposição a
terceiros nem sempre é fácil de gerir. Mas Manuel Vilas fá-lo com
grande mestria graças a uma escrita elegante e deveras visual
recorrendo às suas memórias que, afinal, são muito próximas das
memórias das pessoas da sua geração.
“Em
tudo havia beleza” termina em grande estilo, com dois parágrafos
notáveis que fazem a ponte entre os seus pais e ele próprio porque
nada há de mais belo do que gerar uma vida por amor.
“Mas
essa noite de Novembro de 1961 existiu e continua a existir. Essa
noite de amor, esse apartamento moderno, as paredes recém-pintadas,
os móveis recém-estreados, as mãos jovens dos esposos, os beijos,
o futuro que é só uma ideia esperançosa, o poder dos corpos, tudo
isso continua em mim.
Grande
noite de 1961, mês de Novembro, tranquilo, benigno, doce. Continuas
viva. Noite que continuas viva. Não te vais embora. Danças comigo
uma dança de amor.” (p. 367)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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