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terça-feira, 7 de abril de 2020

A Escolha do Jorge: "A Peste"



“(…) A peste deixaria vestígios, pelo menos nos corações.” (p. 238)
“Para se ser santo é preciso viver. Lute.” (p. 243)
“Mas o que quer isso dizer, a peste? É a vida, nada mais.” (p. 263)

Albert Camus (1913-1960), Prémio Nobel de Literatura (1957), um dos nomes incontornáveis da literatura do século XX apresentou nas suas obras questões de pertinência filosófica no que concerne à existência do homem e o sentido da vida. “O Estrangeiro”, “A Queda”, “O Mito de Sísifo” e “A Peste” figuram entre as obras de referência deste escritor francês nascido na Argélia.

Numa época em que o mundo parou, há obras que recuperam novo fôlego com leitores em todo o mundo, de todas as idades, a tentarem procurar respostas para as questões que agora se colocam à Humanidade em geral, na sequência do surto do novo coronavírus, considerado uma pandemia pela OMS.

Neste sentido, “A Peste” (1947) encontra-se hoje entre os livros mais procurados, em todas as línguas, quase como uma espécie de salvação face a um inimigo invisível. Confinadas às suas residências, na sequência de todas as organizações sociais e estruturas económicas se apresentarem bloqueadas, as pessoas têm mais tempo para reflectir, agarrando-se àquilo que mais importa, a preservação da vida.

Tendo como pano de fundo a cidade argelina de Orã que conheceu um surto de peste nos anos 40 do século passado, “A Peste” é o relato de Grand, que desempenha o papel de cronista, relatando o início da doença disseminada pelos ratos, as medidas de prevenção tomadas ao nível do poder local, com o encerramento da cidade com o exterior, o período de quarentena, a evolução da doença, o aumento do número de mortos até que a doença siga o seu curso natural e abrande, o desespero das populações confinadas às suas casas desde a Primavera até ao Inverno seguinte, a desorganização económica da cidade, o aumento do desemprego, a incerteza perante o futuro e tudo o que acontecerá e como se desenrolará a partir daí, questões que a Humanidade em geral se debate actualmente. Questões que ultrapassam o conceito de países e delimitações de fronteiras porque a questão central perante uma epidemia (ou pandemia) é colocar a atenção naquilo que é fundamental, a vida, e de que forma cada indivíduo não constitui em si mesmo uma ponte de contágio - “assassino inocente” (p. 219) - a outras pessoas.

“A Peste” sendo um livro de leitura mais acessível, pelo menos não apresentando um registo tão denso como outras obras de Albert Camus, não deixa, no entanto, de levantar as principais questões do conjunto das suas obras, ainda que já seja tenebroso o suficiente o tema central, a doença que pode ser fatal se não se verificar um tratamento rápido e eficaz a par do confinamento das pessoas como forma de travar a disseminação da mesma.

O confinamento motivado pelo distanciamento social (expressão actual) vai gerar a angústia e a alteração dos comportamentos do quotidiano, podendo conduzir ao desespero, verificando-se o desejo de um bem-estar colectivo, também em isolamento. “O hábito do desespero é pior do que o próprio desespero.” (p. 160) A peste tornou a pessoas mais solidárias na medida em que o distanciamento impõe-se como o desejo de saber do outro, preocupar-se com o outro. “Em período de flagelo é normal desejar o fim dos sofrimentos colectivos e, de facto, desejavam que aquilo acabasse.” (p. 160)

A peste impôs um ritmo lento à vida, estabeleceu um regime próprio na medida em que a vida em geral passou a ser determinada pela doença. Neste sentido, “o termo da doença tornou-se o objecto de todas as esperanças.” (p. 192)

“Já não havia então destinos individuais, mas uma história colectiva, que era a peste, e sentimentos compartilhados por todos. O maior era a separação e o exílio, com o que isso comportava de medo e de revolta.” (p. 149)

São inúmeros os episódios de peste e de epidemias registados ao longo da História, como por exemplo a Peste Negra que ceifou um terço da população da Europa em meados do século XIV, fenómeno conjugado com outros factores que fragilizaram ainda mais as populações. O bacilo oriundo da China era transportado por ratos contaminados pelas pulgas que circulavam através da rota da seda por mercadores europeus. As cidades portuárias foram as primeiras a sofrerem com a epidemia que rapidamente se alastrou a todo o continente. O contágio era feito através do ar vitimando mortalmente uma pessoa entre três a cinco dias, assim como todos aqueles com quem viviam ou conviviam.

Aprendemos com a História que a Humanidade pode sofrer grandes flagelos na sequência das fomes e guerras que vitimam milhares e até milhões de pessoas, mas, de um modo geral, a Humanidade esquece que os vírus e as bactérias apresentam-se como os maiores inimigos contra os quais tem sido difícil lutar ao longo das gerações.

A ciência e a tecnologia desenvolvem-se, avançam, desbravam conhecimento, derrubam barreiras no intuito de trazer melhores condições de vida às pessoas até que um novo surto de alguma doença ou uma nova epidemia (ou pandemia) desperta e ataca de modo inclemente sendo, dessa forma, chamadas a intervir, a encontrar um antídoto, uma vacina para travar o alastramento da calamidade.
Inimigos invisíveis minam e destroem não havendo nada seguro. Economias fortes são arrasadas. Ninguém está a salvo. “A sua vida e a sua liberdade estão todos os dias na véspera de serem destruídas.” (p. 172)

Ao longo da História, a Humanidade tem tido dificuldade em compreender que sendo parte integrante da Natureza, é esta quem determina as suas regras, o seu funcionamento, dispondo de mecanismos que procedem à sua regulação, nem que para isso recorra a meios implacáveis de modo a restabelecer a harmonia. O Homem, ao longo da História, procedeu a múltiplas conquistas em todos os sectores, conquistou o mundo, impôs a sua vontade, mas, de tempos a tempos, é levado a encontrar-se consigo próprio e formular as questões fundamentais da existência humana, tal como Albert Camus as apresentou nas suas obras.

“O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia também que viria talvez o dia que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.” (p. 264)

Em jeito de solidariedade, Albert Camus elogia e reconhece o valor dos médicos e de todos aqueles que se envolveram na área na saúde como forma de pôr cobro à epidemia (ou pandemia), algo que deve ser tido em consideração nos dias de incerteza em que vivemos presentemente. “Mas, no entanto, sabia que esta crónica não podia ser a da vitória definitiva. Podia apenas ser o testemunho do que tinha sido necessário realizar e que, sem dúvida, deveriam realizar ainda, contra o terror e a sua arma infatigável, a despeito das suas dores pessoais, todos os homens que não podendo ser santos e, recusando-se a admitir os flagelos, se esforçam, no entanto, por ser médicos.” (p. 264)

Texto da autoria de Jorge Navarro

4 comentários:

  1. Gostei! Muito bom...

    ps: Enviei-lhe um mail há dias.

    Beijos e um excelente dia!

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  2. Excelente texto, como sempre, Jorge. O meu vai a caminho

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  3. Infelizmente, a humanidade depara-se, de tempos a tempos, com surtos que deixam profundas marcas.

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