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quinta-feira, 30 de abril de 2020

A Escolha do Jorge: “Histórias Daqui e Dali”

“Histórias Daqui e Dali” – Luis Sepúlveda 
(Porto Editora)

“Durante a minha vida confrontei-me com muitas situações que me obrigaram a emudecer durante muito tempo, com a linguagem imobilizada por uma esclerose que não conhece outra terapia para além da ira ou da acção.” (p. 8)

Falar sobre Luis Sepúlveda (1949-2020) é associá-lo a algumas das suas mais emblemáticas obras, tais como “O Velho que Lia Romances de Amor”, “Nome de Toureiro”, “Patagónia Express” e “História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”, entre outras narrativas breves que retratam histórias simples, de gente humilde, procurando dar voz aos mais desfavorecidos ainda que, com eles, todos possam aprender algo sobre a vida.

No exílio durante catorze anos distribuídos por vários países, Luis Sepúlveda foi granjeando a simpatia e amizade de milhares de leitores em todo o mundo, sendo Portugal um dos países que melhor o acolheu ao longo da sua vida enquanto escritor.

Nunca consegui falar com Luis Sepúlveda, não que tivesse sido impossível, mas recordo-me de ver ano após ano, na Feira do Livro de Lisboa, as sessões com o escritor sempre repletas de pessoas ávidas de conversar um pouco com o escritor e obter um autógrafo. Mais recentemente, em Janeiro deste ano, tive oportunidade de assistir a uma sessão na Biblioteca Municipal de Oeiras, repleta de participantes, muitos deles em pé, para ouvirem algumas das suas histórias que foi coleccionando ao longo da vida.

Talvez o facto de o escritor chileno ter sido um excelente comunicador (e continuará a sê-lo através das suas obras) e na sua relação humilde e sincera com as pessoas que tenha obtido a sua atenção, respeito e admiração. Talvez por essas razões os leitores se identifiquem com o carácter universalista das suas obras, das suas histórias, dos seus personagens, tantas vezes pessoas de carne e osso que graças à escrita saltaram do plano da realidade para serem imortalizados no plano ficcional.

Recordo-me que o primeiro contacto que tive com o escritor foi através da deliciosa fábula “História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar” que, mais tarde, tive oportunidade de ver a sua adaptação ao teatro, em 2001, com a chancela do Teatro Meridional com a qualidade que a entidade tem habituado os seus espectadores ao longo dos anos. Quem assistiu à peça, quem não se recorda da actriz Carla Chambel no papel da gaivota Ditosa? Na altura ainda pouco conhecida e já nestes circuitos menos comerciais demonstrava um talento que mais tarde o grande público viria a confirmar noutros trabalhos.

Impossível ficar indiferente a esta fábula que nos ensina sobre a amizade e a tolerância e o que se consegue atingir quando centramos a nossa energia e força naquilo que de facto importa que é o bem-estar de todos, o estar presente quando o mundo se apresenta como estranho, difícil e perigoso. Os valores universais estão espelhados nesta fábula de Luis Sepúlveda que tem conquistado milhões de leitores de todas as idades em todo o mundo.

Olhamos para o mundo e este apresenta-se-nos mais perigoso e estranho e agora que uma boa parte da população se encontra confinada nos seus lares, não deixa de ser estranho olhar lá para fora e tentar compreender os tempos de incerteza que vivemos naquele que é um mundo industrializado, civilizado.

À semelhança de muitos outros leitores que foram tomados por surpresa com o falecimento do escritor há uns dias, procurei nas estantes um livro de Luis Sepúlveda que ainda não tinha lido. Trata-se de um livro num registo diferente face aos títulos que enumerei no início do texto. “Histórias Daqui e Dali” (2010) é um conjunto de histórias compiladas pelo escritor sobre variados assuntos, desde o seu exílio, questões ambientais, dar voz aos mais desfavorecidos, a decadência do jornalismo, a sua participação em várias edições do Correntes D’Escrita, na Póvoa do Varzim ou a ode dirigida ao escritor uruguaio Mario Benedetti, entre outros temas que captam de imediato a atenção do leitor.

Destes temas, destacaria quatro deles, iniciando com a temática do exílio, na medida em que é um dos temas transversais nestas histórias e uma constante na obra do escritor. Um exílio iniciado em 1977 e com a duração de 14 anos, tendo percorrido vários países, foi acompanhando à distância a evolução política do Chile até à passagem da ditadura militar de Pinochet para a democracia.

O fim da ditadura e o regresso à liberdade e à participação do povo na vida pública do país mantém ainda muitas feridas e questões por resolver, como de resto é comum acontecer nos países que viveram em ditadura, fosse mais ou menos agressiva na relação com os seus concidadãos. E esta ideia é espelhada na primeira história deste volume. “Uma democracia que nasce cansada, vigiada, permitida e paralisada por um pacto monstruoso: construir o eufemismo que salve a face de um Estado de delinquentes, que permita admitir publicamente a existência dos crimes cometidos, mas não os nomes dos criminosos.” (pp. 8-9)

Compreendemos o sentido de liberdade condicionada quando Luis Sepúlveda, em 1990, tem autorização para visitar o Chile e ao sair do consulado chileno em Hamburgo refere: “Abandonei o consulado sentindo que a generosidade da ditadura era humilhante. O direito de viajar ou de permanecer é inerente ao ser humano. O visto para ir ou ficar é um golpe cruel e planificado na liberdade do indivíduo.” (p. 12)

Numa outra história, a meio do volume, Luis Sepúlveda tece um pensamento ainda mais denso, sobretudo quando trava conhecimento com outros exilados e pequenas comunidades que vivem na selva amazónica que, já de si, levam uma vida de exílio em comparação com a vida das pessoas nas cidades e no campo. “Nós, os exilados, somos como lobos, para onde vamos juntamo-nos às alcateias que não são as nossas, mas convivemos, caçamos juntos, e, no entanto, a lua convida a afastar-nos para uivar de solidão.” (p. 87)

É durante as suas deambulações pela selva amazónica, no Equador, durante quatro meses, que, em 1978, Luis Sepúlveda, no meio de uma tempestade é acolhido por um indivíduo de idade avançada que partilhou tudo o que tinha naquela noite. Foi este episódio que, uma década mais tarde originou o seu primeiro romance “O Velho que Lia Romances de Amor”, um dos mais representativos da sua carreira. “Sempre quis escrever alguma coisa, não sabia o quê, mas aquele velho que nos deu guarida numa noite de tormenta na selva e repartiu connosco tudo o que tinha, necessariamente, deveria ser o protagonista. Não sabia o que escrever e tão-pouco tinha pressa de o fazer. No exílio, se algo temos, é tempo, muito tempo.” (p. 84) “O velho começou a visitar-me em sonhos, nunca me falou, mas deixava-me cheio de perguntas: O que estás a ler? Porque estás de pé? Quem te deu esses livros? E a lupa, de onde saiu? Porque conheces a língua dos Shuar?” (p. 85)

Um dos temas bastante interessantes e da actualidade presente neste volume são as alterações climáticas. Se o panorama dos glaciares em 2010 já era preocupante, passada uma década apresenta-se como um dos temas que tem estado na ordem do dia, fruto da actividade humana, as emissões de CO2, e o modo como o turismo tem afectado de modo negativo alguns pontos do globo terrestre que se apresentam como ecossistemas frágeis, como por exemplo, os glaciares de Perito Moreno, na Argentina. “Vê como isto é bonito; por favor, não me tragas turistas!” É o pedido que Luis Sepúlveda recebe várias vezes enquanto sobrevoa a Patagónia.

Não deixa de ser curioso que na sequência da pandemia que presentemente vivemos, o planeta parece recuperar a olhos vistos de parte dos estragos que tem sofrido pela acção continuada do Homem. São inúmeros os exemplos que nos têm deixado perplexos na sequência do confinamento das pessoas, desde a melhoria da qualidade do ar, a limpeza das águas, fruto de uma repentina diminuição da poluição. O planeta, a natureza encontra sempre uma forma de dar resposta às retaliações da actividade humana, não só como defesa, mas também como necessidade de estabelecer o seu próprio equilíbrio.

Há duas passagens fundamentais nesta história que dando um pouco a ideia de se tratar de lugares-comuns, o certo é que, na verdade, há aspectos e áreas específicas da economia, como o turismo, que precisam ser repensados com urgência nos tempos vindouros, para o bem da Humanidade. “Agora (…) chegam cá milhares de turistas para ver como caem cada vez mais blocos de gelo, como os glaciares desaparecem, e vêm alegremente para atestar a morte destas paisagens. Meu amigo, hoje paga-se para ser testemunha da morte do mundo.” (p. 39) “A Patagónia, a Terra do Fogo, os confins de Fin del Mundo estão em perigo. Uma visão irracional do progresso e do desenvolvimento sustentado, a que se acrescenta um turismo irresponsável, fazem destes territórios extremos lugares condenados. (…) Num futuro próximo, os turistas chegarão às imediações do Perito Moreno e lerão: «Aqui havia um glaciar.» (pp. 41-42)

Aproveitando o tema da morte lenta do planeta, Luis Sepúlveda alude também à morte lenta do jornalismo na actualidade. Se colocarmos sobre este texto mais uma década estamos em 2020 e olhamos para os media e o que temos? A que é que assistimos diariamente? O que é uma notícia actualmente? O que é considerado uma notícia? Como são apresentadas as notícias? São tudo faces da mesma moeda que perante uma profissão tão importante cuja missão é informar, nos dias que correm apercebemo-nos do seu papel difuso, equívoco e não raras vezes contraditório, gerando dúvidas e confusão junto daqueles a quem se dirigem. Luis Sepúlveda coloca o dedo na ferida neste breve texto alusivo ao jornalismo, tema que tanto considera porque também ele próprio exerceu essa função. “A precariedade em que caiu o jornalismo faz com que ninguém seja responsável pelo que se escreve, diz, ou emite, salvo raras excepções, e com que sejam poucos os jornais feitos por jornalistas que, com absoluto rigor, assistem ao funeral de uma profissão tão bela quanto necessária.” (p. 111) “Também sou jornalista, digo, e sinto-me como Dom Quixote de la Mancha, derrotado no fim, vendo como no pátio da sua casa a ignorância baila feliz junto à fogueira em que ardem os seus livros.” (p. 112)

Não gostaria que terminar este texto sem aludir ao momento que Luis Sepúlveda dedica a Mario Benedetti (1920-2009) quando este morre. O breve texto é, em si mesmo, uma ode à humanidade, ao reconhecimento de um dos grandes nomes da poesia e da literatura em língua espanhola, um dos grandes nomes das letras que marcou o século XX. E agora que já não temos nem Luis Sepúlveda, nem Mario Benedetti, resta-nos, pois continuar a ler ambos os escritores e a espalhar a amizade, a humildade e o desejo de construir um mundo melhor e mais justo. Termino com as palavras de Luis Sepúlveda dedicadas a Mario Benedetti em jeito de homenagem.

"Nunca conheci outro homem tão simples, tão generoso, solidário, e que, como diz o poema de César Vallejo, parecia viver em representação de toda a gente. Homens como Mario Benedetti são para serem cantados sem que importe a rima dos seus versos, encontram-se nos bairros populares, nas tasquinhas frequentadas por gente de outras terras, no fragor das lutas mais justas de ortografia mas correctos nas suas razões, nos estudantes que, atrás das barricadas, pegam na mão das suas namoradas, descobrindo então que não estão sozinhos, e, sem que importe a língua que falam os seus corações, eles batem a ritmo uruguaio, convertem-se na ‘flor da banda oriental’, e olham-se nos olhos antes da carga repressiva, para dizer: ‘Si te quiero es porque sos / mi amor mi cómplice y todo / y en la calle codo a codo / somos mucho más que dos.’ Nunca um Poeta encheu os estádios de futebol como os enchia Mario Benedetti. Nenhum outro homem entrou num bar e, à pergunta sobre o que queria beber, terá respondido: «Um traguito, dos mais humildes.» Nenhum outro escritor nos convocou para não perdermos o norte nem a alegria nos piores momentos de dúvidas e desilusões: ‘un torturador no se redime suicidándose, pero algo es algo.’” (pp. 114-115)adas,pegam na mão das suas namoradas, descobrindo então que não estão sozinhos, e, sem que importe a língua que falam os seus corações, eles batem a ritmo uruguaio, convertem-se na 'flor da banda oriental', e olham-se nos olhos antes da carga repressiva, para dizer: 'Si te quiero es porque sos / mi amor mi cómplice y todo / y en la calle codo a codo / somos mucho más que dos.' Nunca um Poeta encheu os estádios de futebol como os enchia Mario Benedetti. Nenhum outro homem entrou num bar e, à pergunta sobre o que queria beber, terá respondido: «Um traguito, dos mais humildes.» Nenhum outro escritor nos convocou para não perdermos o norte nem a alegria nos piores momentos de dúvidas e desilusões: 'un torturador no se redime suicidándose, pero algo es algo."

Texto da autoria de Jorge Navarro

2 comentários:

  1. Um autor que nos deixou cedo, mas ficam as suas obras para que o possamos descobrir ou redescobrir.

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  2. Aplauso para a sua publicação. Didáctica! Obrigada
    -
    Desalento...
    Beijos e uma excelente tarde!

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