“Mal Nascer” é o mais recente romance de Carlos Campaniço, o autor de “Os Demónios de Álvaro Cobra”, um dos livros bastante badalados e comentados no decorrer de 2013 aquando da sua edição. Na verdade, para quem se deliciou com o romance anterior, na medida em que foi transportado para uma realidade em que o autor misturou com grande mestria a realidade com a ficção, questiona-se certamente se o autor conseguirá superar-se a si próprio com “Mal Nascer”.
Ainda que o leitor levante estas questões à medida que avança na narrativa de “Mal Nascer”, a dada altura fica tão embrenhado na história que dificilmente consegue parar. Este novo livro apresenta uma dinâmica tal, que mesmo com um cenário de uma vila rural ficcionada, perdida no Alentejo profundo, nas vésperas da guerra civil (1832-1834) que opôs absolutistas e liberais, consegue captar a atenção do leitor como se de um filme se tratasse na medida em que toda a obra é deveras visual.
Carlos Campaniço em “Mal Nascer” deixa de lado aquilo que por muitos foi identificado como realismo mágico tão presente nos “Demónios”, aproximando-se do neorrealismo, a corrente literária que se afirma como uma forma de denunciar as duras condições de vida e de trabalho dos trabalhadores em oposição aos senhores ricos que, no caso concreto de “Mal Nascer”, são os senhores que possuem a terra como fonte de riqueza funcionando simultaneamente como uma forma de exercício de poder sobre os mais pobres, os mais desprotegidos da sociedade. Estas questões em “Mal Nascer” assumem uma importância esmagadora, secular até, na medida em que o tempo contribuiu para a cristalização destas ideias herdadas ainda de uma não tão longínqua Idade Média pelo menos no que respeita à organização da sociedade num pequeno cosmos cultural e mentalmente aceite por todos e hermético, portanto.
As assimetrias sociais que em tudo têm que ver com os dias de hoje no mesmo Portugal e daí, podermos concluir que em certos aspetos, o paíspouco evoluiu atendendo a uma mentalidade intrinsecamente conservadora e pouco estimulada do ponto de vista educacional e cultural.
Mas “Mal Nascer” não aborda somente as questões relacionadas com as contínuas desigualdades sociais e do atraso notório de uma região do interior do país em oposição à capital de onde vinham as novidades, assim como as ideias liberais que estavam a deixar o país em polvorosa à beira de uma guerra civil. Este novo livro de Carlos Campaniço conta-nos também uma história de vingança, a vingança de Santiago Barcelos que, agora homem já feito e formado em medicina, que regressa à sua vila de origem como forma de ajustar contas com o passado que vamos conhecendo em capítulos intercalados ao longo de toda a narrativa.
Este regresso se vai de alguma forma beber à “Odisseia” de Homero, por outro lado, este regresso do “herói” de “Mal Nascer” acaba por assumir contornos curiosos que vão de encontro a alguns dos pressupostos da religião grega, na medida em que, em poucos meses, Santiago Barcelos acaba por se envolver de tal modo numa trama novelística que dificilmente consegue sair dela deixando o leitor quase com a corda na garganta, dado que a narrativa tende gradualmente para o trágico. Neste sentido, mais do que o sentido de vingança do herói, toda a rede complexa em que está envolvido e à medida que a narrativa se aproxima do final leva-nos a crer que nada mais está a acontecer do que a gradual concretização do destino, da “moira funesta” à boa maneira grega, a qual nem os próprios deuses gregos poderiam alterar, lavando daí as suas mãos face ao desenrolar dos acontecimentos que comprometeriam a vida e o destino do herói.
Chegado ao fim de “Mal Nascer”, não creio que o leitor continue a questionar se esta obra é ou não melhor que o romance anterior atendendo ao facto de que essa questão desvaneceu-se por completo. Fica a certeza de estarmos perante um escritor com talento e que, como leitores, ficaremos certamente atentos às suas próximas publicações.
Excertos:
“Eu, contudo, começo a pensar que corro grandes perigos aqui. Esta não é a terra sossegada de que eu preciso para me esconder dos miguelistas e, por comprovação, que me tem saído do coiro, é avessa à minha felicidade. Há aqui riscos nativos tão violentos quanto o pensamento dos absolutistas. Julgava que podia levar uma vida simples, cuidando apenas dos desditosos, e encontro um sem-fim de aflições que, nalguns casos, são superiores às de Lisboa: o padre e o vereador Lemos que me detestam; a desconfiança de dona Odélia sobre o meu passado; o pavor de me descobrirem liberal; o medo de ser reconhecido como Santiago Bento; o namoro forçado com Maria Luísa, que o querem logo em noivado; e esta paixão por Sebastiana, que não pode ser consumada aqui. Não poderei ser livre sem ser liberal, nem ser eu próprio sem ser Santiago Bento, nem ser feliz sem Sebastiana.”(p. 162)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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