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domingo, 6 de dezembro de 2020

Ao Domingo com... António da Costa Neves (E. S. Tagino)

Ao domingo com…

Chamo-me António da Costa Neves, mas também respondo literariamente por E. S. Tagino. Porquê? Contos largos que ficarão para outra oportunidade. Sou um jovem escritor tardio que só começou a escrever e publicar aos 60 anos. Se tivesse começado aos 20, como tantos génios precoces, tinha agora 35 anos e uma vida literária ainda pela frente. Mas, provavelmente, não teria lido tanto nem gozado tanto com o que li…

Vivo, pois, lutando com a falta de tempo para cumprir o meu último compromisso com a vida: contar histórias. E este ano foram só (???) 35 (!!!) histórias que contei, em duas coletâneas de contos e um romance, todos premiados.

Para não maçar muito os improváveis leitores, aí vai uma das minhas histórias – a mais pequena de todas – que faz parte da coletânea Contos da Serra e da Planície, Prémio Literário Alves Redol 2019 e Prémio Literário Fialho de Almeida 2020, a ser publicada em 2021.

 

Vida de cão

Um cão uivou no pátio deserto das traseiras do meu quarto. É um cão velho, um podengo alentejano reformado, animal lazarento, cheio de chagas e a perder pelo, que passa o tempo a coçar-se debaixo dos automóveis estacionados nas ruas das redondezas e nos troncos ásperos das árvores que as bordejam. É um cão vadio, ou melhor, um cão sem amparo. Um cão que, há muito, com o pelo, foi perdendo progressivamente o dono até que, um dia, sem saber como, o perdeu irremediável e definitivamente.

Ora, este cão, vadio por vontade alheia e vagaroso por força da idade – por sua causa, todos os dias tenho de abrandar o passo para ele passar –, fez da relva sempre verde do pequeno canteiro que tenho de contornar, mal saio de casa, a sua morada permanente. Não se trata, pois, de um cão qualquer. Este cão-sem-abrigo é, de há muito, um cão meu vizinho; mais do que isso, é um cão meu conhecido: um cão camarada que me olha sempre com os mesmos olhos tristes, como são os olhos de todos os cães velhos que são abandonados quando começam a perder o pelo.

Há pouco, talvez por eu ter, igualmente, começado a envelhecer – se eu fosse um tipo com piada, afagava o ego e dizia que começamos a envelhecer quando nascemos –, a sorte deste cão deu-me uma profunda melancolia. Também a mim, o pelo já me começou a cair. No alto da cabeça, por exemplo, já tenho algumas peladas. E o que não caiu, encaneceu, como o pouco pelo que ainda resta do cão velho que uivou há pouco nas traseiras do meu quarto.

O seu uivo dorido, subitamente, deu-me para a nostalgia e pus-me a pensar-me tão cão quanto ele, vagueando, escorraçado e sem dono, à chuva e ao vento, nas imediações de qualquer sítio que me fosse familiar, que eu conseguisse reconhecer, ainda que vagamente, para que não me perdesse de todo, como aconteceu a este cão terminal que, um certo dia, sem saber como, perdeu, irreversivelmente, o dono. O dono com quem brincou  e caçou, e a quem dedicou, sem reservas – estou tão certo disso como se fosse eu –, os melhores anos da sua vida.


Agora, que o cão abandonado voltou a uivar, o mesmo uivo lancinante de animal ferido, a noite já não me parece tão bela, o uísque que bebericava perdeu o sabor e o filme que via, o pouco sentido que tinha. E o que desejo agora é apenas um osso: um osso que não seja muito duro porque os dentes, tal como o pelo, também já me começaram a cair. Um osso com que me possa entreter o resto da noite porque, cão velho que sou, já só as insónias povoPrémio Literário Alves Redol 2019am a minha mente, como o cão que uivou nas traseiras do meu quarto.

Oh, como eu compreendo, realmente, este descartável cão; este cão solitário, sem companhia nem afagos; este cão que já não ladra, que apenas uiva tristemente, num queixume que só os cães velhos – como ele e como eu – sabem, ainda, entender; este pobre cão, sem ninguém que lhe passe a mão pelo pouco pelo que lhe resta e lhe ponha umas gotas de bálsamo nas feridas purulentas; este pobre e triste cão condenado a morrer, numa noite destas – se eu partir primeiro – sem ninguém que lhe escute o seu último uivo. 


 António da Costa Neves (E. S. Tagino)


4 comentários:

  1. Muito bem. Gostei da publicação! :)
    **
    Coisas de uma Vida
    -
    Beijo e um excelente Fim de Semana

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  2. Gostei muito! Obrigada pela partilha.
    Ficou a apetecer-me muito ler este autor.

    Há uma gralha no penúltimo parágrafo, última linha, que deveria ser retificada.

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    Respostas
    1. Caro Anónimo,
      Obrigado pelo comentário.
      Contacte-me. Terei muito gosto em enviar-lhe o "Contos da Serra e da Planície" logo que seja publicado no próximo ano.
      Cumprimenta-o
      António da Costa Neves
      estagino@gmail.com

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