“Humilhação e Glória”, Helena Vasconcelos, 2012
Este ensaio de Helena Vasconcelos
tem como subtítulo “O acidentado percurso de algumas mulheres singulares”. Constituído
por oito capítulos, para além da Introdução – Estudos Femininos, Mulheres e
Cidadãs, A Ascensão segura das «Mulheres de Letras», O corpo das mulheres, O
círculo das Belas-Artes, Em nome da Ciência e Misoginias – é um livro muito
interessante e curioso, para quem quer ficar com uma visão geral da História com
o foco nas mulheres, esclarecendo a autora na nota final que este não é um
tratado e reconhecendo que faltarão “referências importantes a mulheres que têm
dado o seu contributo inspirador”.
Comecemos pelo princípio e pela
questão da maternidade, que colocou a mulher “protegida”, “enclausurada”,
“afastada” e “relegada” na ordem social. A autora destacou a americana Margaret
Sanger (1879-1966), activista pelo direito feminino de evitar a maternidade,
lutou pelo direito à contracepção e foi defensora da pílula. Ao longo do livro,
Helena Vasconcelos por diversas vezes refere que o século XIX foi um século mau
para as mulheres pois infantilizou-as. É um século conservador para as
mulheres, embora seja o século em que surgem os movimentos das feministas
reivindicando o voto feminino. Charles Darwin chegou a considerar as mulheres
“dignas de estudo”, catalogando-as na espécie das raças inferiores e num estado
de civilização “menos desenvolvido”(págs. 30 e 31). George Savage, o psiquiatra
que tratou Virginia Woolf, aconselhava cautela às mulheres que liam e
estudavam, tendo proibido o estudo a Virginia Woolf quando ela tinha quinze
anos e tendo-lhe receitado quatro horas de jardinagem diária, obrigatoriamente.
Mary Woolstonecraft (1759-1797),
autora de “A Vindication of the Rights of Women” (1792) é pioneira e um nome
incontornável na história dos feminismos. Escreveu ela que as mulheres não
deviam deixar-se bajular pelos homens quando enalteciam os seus atributos de
beleza, desprezando as suas qualidades intelectuais. Apercebeu-se do papel do
sistema educativo e da tradição, no sentido de tornar as meninas subservientes.
Chamaram-na de “imoral, louca, infeliz, feminista”! Por essa altura, em
Portugal, no tempo de D. José I e do Marquês de Pombal, Gertrudes Margarida de
Jesus escrevia “A Primeira Carta Apologética em favor e defesa das
Mulheres”(1761).
Madame de Stael e os Românticos
desempenharam um papel importante no rebater as ideias de Mary Woolstonecraft,
fazendo a apologia da “mulher-criança” e da “fada do lar”. Ema Bovary de Gustve
Flaubert ou Anna Karenina de Tolstoi são exemplos de heroínas destituídas de
direitos.
Com a revolução industrial,
impõe-se o modelo vitoriano da família nuclear e o conceito de
“respeitabilidade” cultivado pela nova burguesia em que as mulheres eram
esposas devotadas e mães extremosas. Este espartilho, esta rigidez nos
comportamentos impostos às mulheres foram sempre um motivo de grande sofrimento
para quem não se revia nestes normativos. Em alternativa, o refúgio dos
conventos, mas havia quem preferisse o isolamento ou a morte, por não quererem
ser nem mães nem esposas. A histeria (do grego hystéra=útero) foi uma das doenças ditas “femininas” que deixou de
fazer parte do léxico das doenças neurológicas, quando na 1ª Guerra Mundial
surgiram muitos homens com sintomas semelhantes aos que se atribuíam às
mulheres histéricas.
Aliás, o corpo das mulheres foi
sempre e ainda é um campo de batalha. A menstruação que é “impura”, a mulher
procriadora, a satisfação erótica destinada exclusivamente aos homens que podem
satisfazer-se com prostitutas ou outras mulheres. O corpo das mulheres não lhes
pertencia; o seu controlo pertencia aos pais, aos maridos, aos médicos e
especialistas. A sexualidade feminina era reprimida, o desejo sexual
considerado um distúrbio mental, uma aberração, uma doença. As teorias de Freud
marcaram essa época e a muitas raparigas consideradas doentes e que foram
confinadas em estabelecimentos psiquiátricos era-lhes imposto trabalho manual –
tricot e bordados – como cura para a sua doença. Tal como a masturbação
feminina era proibida, a menopausa nas mulheres era ignorada e ridicularizada.
As grandes transformações começaram a operar-se com a entrada das mulheres num
território até então exclusivamente masculino, quando a medicina passou também
a ter mulheres médicas e psicanalistas. Lembremo-nos da luta heróica das
sufragistas, muitas delas encarceradas em instituições psiquiátricas por terem
sido consideradas doentes mentais.
Seguidamente, Helena Vasconcelos
refere mulheres marcantes pelo seu pensamento e obra, que revolucionaram o
pensamento e a visão da mulher na sociedade. A escritora inglesa Virginia Woolf
que advogou o direito a um espaço próprio que seja das mulheres e que
estilhaçou os conceitos estanques de sexualidade com a sua obra “Orlando”
(1928). Simone de Beauvoir e o “Segundo Sexo” (1949) contra o determinismo, os
preconceitos e as ideias pré-estabalecidas que não davam hipótese de escolha às
mulheres. Germaine Greer, uma feminista australiana polémica interessou-se pela
questão do envelhecimento das mulheres e suas consequências. Dizia que a mulher
era uma criada do marido e que trabalhava de graça para ele. Nos anos 90 do
século passado, Camille Paglia advoga posições antifeministas e é célebre pelas
suas posições e ideias muito controversas.
Nestes capítulos iniciais do seu
livro, a autora pontua algumas datas e acontecimentos importantes na longa
caminhada das mulheres até alcançarem o estatuto de cidadãs. Em Portugal, o
facto de a Inquisição ter vigorado por perto de três séculos, entre 1536 no
tempo de D. João III até 1821, ajuda a compreender a perseguição e a
menorização a que as mulheres foram submetidas. No 1º Código Civil em Portugal
que data de 1867, elas aparecem com o estatuto de esposas e mães. Só em 1890 é
autorizado o acesso das meninas aos liceus públicos, apesar de o ensino liceal
existir desde 1836 por iniciativa de Passos Manuel.
Como anteriormente já referi, o
surgimento de movimentos reivindicando o voto feminino foi de extrema
importância, num século em que muitos dos espaços de cidadania ainda estavam
barrados às mulheres. Na Convenção Mundial contra a Escravatura que se realizou
em Londres em 1840, foi impedida a participação de mulheres. Em 1848 realiza-se
a 1ª Convenção pelos Direitos das Mulheres em Seneca Falls, Nova York. A Nova
Zelândia vai ser o primeiro país no mundo a instituir o voto das mulheres em
1883. Não posso deixar de mencionar aqui um nome que, ao longo do livro nunca
vi referido, a médica e feminista Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a
votar em Portugal a 28 de Maio de 1911, invocando a sua condição de chefe de
família, assim torneando a lei que impedia o voto das mulheres portuguesas. O
Estado Novo “apagou” os nomes de muitas activistas feministas do tempo da 1ª
República, consideradas aberrações. Com efeito, elas não encaixavam na
concepção estreita da santíssima trindade salazarista: Deus, Pátria, Família. Incontornável
o papel pioneiríssimo, a figura de Maria Lamas e a sua obra ímpar “As Mulheres
do meu País”, resultado de um trabalho de campo profundo por todo o continente
e ilhas, de registo da vida das mulheres portuguesas.
Portugal assina com a Santa Sé em
1940 a Concordata que proíbe o divórcio, uma das causas que vai mobilizar
vastas massas imediatamente a seguir ao 25 de Abril, impossibilitadas de
refazer as suas vidas por uma lei retrógrada que as impedia de voltarem a casar.
Portugal vai viver a seguir à Revolução dos Cravos grandes transformações
sociais, conquanto muitas delas tenham demorado a romper com os preconceitos e
as discriminações de género que vinham de longe. Este fenómeno de discriminação
e desigualdade entre mulheres e homens que enforma as sociedades e não apenas a
portuguesa tem sido combatido por movimentos e organizações de mulheres que nos
seus países e a nível internacional têm feito um trabalho assinalável com
grandes avanços, sobretudo a partir do último quartel do século XX. A
Declaração Universal dos Direitos do Homem data de 1948, após o fim da 2ª
Guerra Mundial, mas só em 1979 é adoptada a Convenção para a Eliminação de
todas as formas de Discriminação em relação às Mulheres.
Na página 99, Helena Vasconcelos
põe no seu livro uma pergunta que muitas pessoas (homens e mulheres) muitas
vezes colocam, tendo em conta os extraordinários progressos das mulheres na sua
luta pela cidadania plena: “O que falta então à mulher?”
A verdade é que sempre que as
mulheres lutaram e quiseram romper com o estabelecido, foram chamadas de
atrevidas, de provocadoras e ridicularizadas. Nas Letras, quando se destacavam,
achavam que elas eram imitadoras, não inovadoras ou criativas. Helena
Vasconcelos nomeia mulheres renascentistas ilustres, que geralmente são
ignoradas: Joana Vaz, Paula Vicente, Leonor Coutinho, Ângela Sigeia, Luísa
Sigeia e Públia Hortênsia de Castro (séculos XV e XVI). Os conventos e as casas
privadas de mulheres com dinheiro e elevado estatuto social eram o oásis no tremendo
deserto cultural vigente na sociedade portuguesa dos séculos XVII e XVIII.
Mariana Alcoforado, a Marquesa de Alorna ou Teresa Margarida da Silva Orta,
autora do primeiro romance escrito por uma portuguesa, sujeito à aprovação da
censura do Santo Ofício. No século XIX, o fechamento e a punição das mulheres
que transgridem está bem patente no caso de Maria da Felicidade do Couto
Browne, cujos escritos foram queimados pelo próprio filho, devido à ligação que
a mãe tinha tido com Camilo Castelo Branco.
No século XX, são muitas as
escritoras que se destacaram como Agustina, Sophia ou Lídia Jorge, entre muitas
outras. Lamento não ter visto assinalados os nomes de duas grandes escritoras
injustamente invisibilizadas: Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho.
Justamente, fala das Três Marias e do seu livro As Novas Cartas Portuguesas,
que granjeou um eco internacional de solidariedade pelas escritoras levadas a tribunal
pela moral conservadora e hipócrita do salazarismo marcelista no seu estertor.
No capítulo O Corpo das Mulheres,
a autora volta ao tema da ignorância e do preconceito relativamente ao corpo da
mulher, os períodos de abertura e fechamento em termos da liberdade sexual, os
temas da contracepção e do aborto que foram sempre muito sensíveis e da
valentia das mulheres que conseguiram afrontar toda uma arquitectura patriarcal
solidamente implantada. Neste capítulo destaca os nomes da bióloga Natalie Angier
e do seu “Mulher: uma Geografia Íntima” que lhe deu o Prémio Pulitzer, a
antropóloga americana Helen Fisher e a ceifeira portuguesa Catarina Eufémia,
assassinada por uma GNR quando lutava pelos seus direitos como trabalhadora.
No capítulo das Belas-Artes, a
autora diz que muitos historiadores de arte olham para as artistas mulheres com
alguma condescendência e leviandade, invocando o “jeito” em vez do génio. Entre
várias artistas, nomeio aqui Josefa de Óbidos, Amélia de Sousa, Paula Rego,
Maria Helena Vieira da Silva, Helena Almeida e muitas outras.
São imensas as mulheres que se
destacam no campo da Ciência. Geralmente fora do holofote mediático, mal pagas,
a teimosia e o espírito de sacrifício são as marcas destas mulheres. Num campo
em que não poucas vezes a religião esteve contra a ciência, a autora lembrou
mulheres cheias de tenacidade que na sua época não baixaram os braços e lutaram
contra a misoginia que as excluía do acesso à ciência. Em Portugal e no
estrangeiro foram verdadeiras guerreiras.
O último capítulo – Misoginias – é
o remate que nos dá a conhecer alguns dos ideólogos que deram corpo às
concepções que ainda hoje persistem, resistem e estão na base da desigualdade
entre os géneros. “Quando uma mulher
pensa, é o Diabo que pensa por ela”, proferida por um papa do séc. XV. Para
S. Tomás de Aquino, a mulher era “um ser
miserável e defeituoso”. O padroeiro dos bibliotecários, S. Jerónimo,
considerava que “como o verme destrói a
madeira, também uma mulher destrói o marido.” Tudo homens da Igreja. Contra
a corrente do seu tempo, Gil Vicente traça personagens femininas cheias de
graça, afirmativas, fortes, determinadas, cheias de vivacidade. Os cerca de
trezentos anos da Inquisição foram uma tragédia para as mulheres, sendo que
muitas, perseguidas como bruxas acabaram na fogueira, apenas porque eram
mulheres insubmissas e com práticas não convencionais.
O século XX foi aquele que maiores
desafios colocou às mulheres: com a sua entrada em força no mercado do
trabalho, quebrando as concepções da mulher presa ao lar por via das
necessidades da guerra, mas remetendo-a de novo ao lar no pós-guerra,
glorificando uma imagem fictícia da “mulher moderna” dos anos 50. Porém, o
caminho das ideias que tinham posto as mulheres no início do século XX a lutar
pelo voto e pela educação, a revolução sexual dos anos 60 com a democratização
da pílula e dos meios anticoncepcionais, as vagas que se seguiram de feministas
e de novas teorias e concepções, é um caminho de não retorno. De felicidade
para as mulheres, como sujeitos de direitos e como participantes de pleno
direito na transformação social para uma sociedade sem discriminações de
qualquer tipo.
Não consegui tornar este texto
menos extenso. Volto à ideia inicial, expressa pela autora de que este livro é
um ensaio, não é um tratado. Tem tanta informação valiosa, que me custou trazê-lo
à minha apreciação, truncando-o de nomes e dados imprescindíveis.
O meu obrigada a Helena
Vasconcelos por esta obra de divulgação de uma história resumida das mulheres.
1 de Junho de 2020
Almerinda Bento
Li e, em silêncio, de forma respeitosa, saio
ResponderEliminar.
Tenha uma terça-feira feliz
Deixando uma 🌹
Excelente texto! O livro vai já para a minha lista, parece muito interessante.
ResponderEliminarE o meu muito obrigada à Almerinda Bento por este fantástico e exaustivo texto: depois de o ler, que mulher não terá vontade de comprar este livro da Helena Vasconcelos?
ResponderEliminarE já que falou na Maria Judite de Carvalho, aproveito para recomendar as obras completas desta escritora que estava tão injustamente esquecida.
Beijinho, Cris.
🌻
Gostei muito do texto e fiquei com muita vontade de ler o livro.
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