Escrever para libertar dos dedos o compêndio de angústias, escrever num ribombar de fúria sobre o teclado, até à febre, não deixar entre as palavras senão o silêncio, deus, o inominável, talvez uma décima sinfonia, o próximo livro, lavar das mãos o fogo mergulhando-as em água fria como espadas por calibrar, estar atento às promessas, às conversas, ao registo telegráfico pelo qual se veiculam os sentidos guardados do sol atrás do reposteiro dos olhos, escrever para não obedecer, para não estar certo, para desalinhar dos desalinhados,
para falhar cada vez melhor, na voz gutural do pai de godot, escrever como estando disponível para o principado da quimioterapia, inverter os sentido de tudo até tudo ter sentido e ser capaz de traduzir a experiência da vida numa experiência viva, estar desperto para o irrisório, para a banalidade, para o homem das multidões, ser ao mesmo tempo clássico e pós-moderno sem partir a marrafa ao meio, reproduzir-se nos clássicos viralmente até morrer nas suas mortes, não ter respeito por nada nem por ninguém e fingir, fingir muito até à confabulação, até o desaparecer do corpo e da vida, ate ser apenas uma história entre muitas e, finalmente, fazer parte da narrativa que traduz o mundo.
Valério Romão
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