O romance desenrola-se no período entre 1943 e 2012, mais especificamente desde o fim da 2ª Guerra Mundial até às eleições legislativas realizadas em Portugal, em 2012.
Parca em palavras e muitas vezes contida, a escritora não deixa nada por dizer, quer através dos personagens, quer pelo narrador que interage intercaladamente com os personagens à medida que se desenrola a história. Tal como a carreira percorrida pelo elétrico 16, num percurso ribeirinho, partindo de Xabregas até Belém sendo um dos percursos mais longos dos transportes de Lisboa.
Numa espiral sucessiva de passado-presente-passado-presente, somos confrontados com os anseios e receios da população portuguesa tanto de há 50-60 anos atrás, como nos nossos dias, os avanços tecnológicos que tiveram lugar, assim como as expetativas e a esperança face ao futuro que, à semelhança da candidatura do General Humberto Delgado, em 1958, foram defraudadas pelo regime de Salazar. Atualmente também questionamos quais são as expetativas do povo após o ato eleitoral de 2012 na medida em que se tem assistido a um continuado agravamento das condições de vida dos portugueses. A ideia de desconfiança de um sistema democrático que tanto se desejou após quase meio século de ditadura traz cada vez mais a real noção das perdas que entretanto tiveram o seu impacto incluindo em coisas tão simples do dia-a-dia como a supressão de certas carreiras como a do elétrico 16 que dá título ao livro.
A novidade das bilhas de gás, a generalização da eletricidade, as torradeiras, os autocarros que timidamente circulavam em Lisboa, a inauguração do metropolitano, os automóveis, a televisão, os computadores, o iPod, o Facebook, a banda larga, o plasma e até as máquinas de café tão em voga que basta colocar a pastilha e ligar a água são alguns dos vários exemplos de desenvolvimento tecnológico que Portugal tem vindo gradualmente a acompanhar desde os anos 40 do século passado tornando-se, deste modo, um país desenvolvido como os outros países do mundo ocidental.
Do ponto de vista social, também os amores contidos, mas que se desejam, o amor que se quer correspondido, a virgindade que se oferece ao homem que se deseja, o receio de cair em desgraça, os falsos moralismos, os corpos que se entregam ante o olhar indiscreto das vizinhas invejosas que mantêm as janelas entreabertas, o boato que se espalha na proporção da inveja, o olhar cabisbaixo e envergonhado aquando da compra do preservativo, o aparecimento da pílula revolucionária, a gravidez (in)desejada, a parteira que faz desmanchos no Poço do Bispo. Parteira para quem precisa, pecadora aos olhos dos outros. A coragem de assumir uma gravidez sem necessidade de casamento. Outra grande coragem. A mesma facilidade com que se realiza um casamento, também se põe termo a ele com o divórcio, pais que não sabem o que fazer dos filhos, filhos que são o retrato mais fiel dos pais, cada vez mais inconscientes e inconsequentes, prisioneiros das tecnologias e da realidade virtual encarando a vida de forma simples e prática com a resolução à distância de um click.
A liberdade que se ganhou com o 25 de abril de 1974 e que pôs termo à longa ditadura é em si mesma dotada de condicionalismos e contrariedades, nem sempre utilizada da melhor forma e que no entender da personagem principal “a liberdade é uma luta” (p. 251).
O Eléctrico 16 mostra-nos, deste modo, um Portugal repleto de desafios por concretizar perante ganhos e perdas que não tem sabido gerir bem após a «Revolução dos Cravos». O Eléctrico 16 coloca constantemente o passado e o presente do país em confronto encontrando muitos pontos em comum, nomeadamente ao nível político e económico, em que os portugueses pouco ou nada esperam dos sucessivos governos, sendo confrontados com uma espiral de desemprego cada vez mais preocupante, assim como o agravamento das condições de vida que traz consigo a perda de direitos constitucionalmente estipulados.
Da mesma forma que milhares de portugueses se mobilizaram por iniciativa própria, em Santa Apolónia, em 1958, esperando o General Humberto Delgado, também hoje em dia, os cidadãos têm organizado algumas manifestações arrastando multidões para as ruas na tentativa de lhes ser devolvida a esperança num país com um futuro melhor.
A grande questão de fundo de O Eléctrico 16 é precisamente «Para onde caminhamos?»
Filomena Marona Beja presenteou-nos com uma obra que nos obriga a pensar para além do prazer da leitura que nos proporciona tendo em consideração o seu estilo muito próprio, muito contido, mas com sentido aguçado e oportuno.
Filomena Marona Beja desvenda algumas das histórias por trás do seu novo romance O Eléctrico 16:
Excertos:
“Iam apanhar o elétrico a Xabregas. Carreira-16, para Belém.
Em Lisboa acabara de se estrear o metropolitano. Os autocarros, contudo, eram ainda poucos, não chegando a cumprir trinta percursos por toda a Cidade. E nenhum subia à Madre de Deus.
Andava-se de carro-elétrico.
Antes das sete e meia, o bilhete tinha o dobro do comprimento. «Bilhete operário». Custava dez tostões e valia para o regresso. À tarde, depois das cinco.
Por causa do bilhete operário, o Gordo tinha sido preso.
- Injustiça!… Discriminação! – clamara. No Café do Poço do Bispo.
Porquê?!… Porque se haveria de admitir aquele sistema de bilhetes, obrigando os trabalhadores a sair de casa de madrugada? Sim! E só rente à noite se lhes dava direito a regressar.
Entre dentes, mestre Garção avisou:
- Cuidado! Cala-te…
Reparasse em quem acabava de entrar.
O Gordo não quis saber. Repetiu: aquilo era discriminação.
- Os chuis e os guitas andam à borla, sempre que lhes apetece!
Devia era haver um passe social. A ele teria direito quem realmente trabalhasse. Seria válido para todos os transportes, e a qualquer hora.
- … Passe social!
A Pide levara o Gordo nessa noite.
Horas seguidas de perguntas. Em pé e sem o deixarem dormir. Até cair no chão.
«Hipoglicemia», dissera alguém. Talvez um médico.
Acabariam por o soltar, recomendando que não voltasse ao «social». Fosse por causa dos transportes, fosse por outra coisa qualquer.
- Verdade, Avó?!… Isso aconteceu, no teu tempo?
Acontecera.
Nesse tempo, a Carreira-16 era das mais movimentadas.
De segunda a sábado, os carros saíam de Xabregas já apinhados. Sobretudo homens de boné e lancheira a caminho dos estaleiros, das fábricas. Cais do Sodré, Rocha, Alcântara.
Gente pobre. Mal tinha ido à escola. Andara ao trapo. E só levara vacinas quando fora chamada para a tropa.
De resto, tirando a tuberculose, pouco importavam as suas doenças.
A gravidez das mulheres também não. Pariam, sem nunca terem ido ao médico. Sem haver quem as levasse para a maternidade, evitando-lhes a morte. A delas, e a das crianças.
Proletários.
Tão pobres que não pagavam impostos. E nunca o fisco descobriria algo que lhes penhorasse.” (pp. 32-34)
“E acabavam de aparecer as bilhas de GAZCIDLA. Treze quilos e seiscentos gramas de gás butano metidas à força em botijas de aço.
UMA CHAMA VIVA, ONDE QUER QUE VIVA!
Quanto ao GAZCIDLA, a Mãe resistia-lhe.
Deitou contas aos preços da lenha, do carvão e do petróleo. A tal chama viva ficaria mais barata? Ou seria mais dispendiosa? Valeria a pena mudar?
- O que achas, Orlando?
- Por que não?
Considerou que não alcançara resposta. E continuou renitente.
Nisto, a «Campanha dos Santos Populares»!
Durante esse mês de Junho, oferta dos custos do contrato comprando-se esquentador e fogão de três bicos com forno.
Passava tudo dos dois contos e oitocentos. Mas pagavam-se em vinte e quatro prestações.
A Mãe rendeu-se.
Chegou o fogão. Esmalte branco, muito prático a acender e fácil de limpar.
Depois, as bilhas do gás. E com as duas primeiras, viera um brinde. Uma botija-miniatura em plástico prateado. No bojo, uma ranhura para meter as moedas que se poupariam com o GAZCIDLA. E o fundo móvel, para que se tirassem quando fossem precisas.
A Fernanda extasiada:
-Ai menina, um mealheiro… e eu queria tanto um!
- Gostas?… Fica com ele.” (p. 62)
“ Mesmo que as grandes causas estejam proibidas…
Não se apaziguava o povo. E mesmo a medo, continuava a falar-se de Liberdade. A reclamar Justiça.
Contudo, o medo também se vencia.
- … isso há de vir ao de cima, nas eleições que estão aí à porta!
E pela primeira vez, na voz de Joel, um nome:
- Humberto Delgado.
(…)
- O povo vai querê-lo para Presidente!
Fora Joel quem o dissera, no elétrico da carreira 16. O que levava os operários a caminho do trabalho.
Ia haver eleições. Estavam marcadas para junho do ano seguinte.
- … e não pense a canalha da situação que são favas contadas.
Um povo tem o seu amor próprio. Por vezes esmorece e adia a esperança. Bastará, porém, alguém dar um sinal, e reanimará.
- Mas para dar o sinal, e reanimar o povo, é preciso coragem, e inteligência.
- O Delgado é muito inteligente e tem muita coragem!
Chegara a vez do José Emílio falar do General.
- Um homem sem medo!… Se avançar, terá muita gente a apoiá-lo!
Descrevia-lhe o génio, sem aludir ao conhecimento nem à proximidade. Mas com tanto entusiasmo, que o próprio Joel fez um aviso: «Moderação!»
- Zé, resta saber o que é que estes gajos cozinham, daqui até lá.
- Ora…” (pp. 51-52, 109)
“Nada do que José Emílio contava viera nos jornais daquela época. Manhãs e tardes de maio de 1958.
Muito menos passara na televisão. Telejornal a preto e branco, à hora do jantar.
Ao certo, ninguém sabia quem dera a ordem. Apenas que chegara a meio da noite: qualquer alusão ao regresso a Lisboa de Humberto Delgado seria silenciada.
E assim, todas as notícias da campanha do General iam sendo cortadas. Apagadas as imagens. E também as gravações das perguntas que lhe tinham sido feitas. Do que respondera.
(…)
Texto da responsabilidade de Jorge Navarro
Texto da responsabilidade de Jorge Navarro
Ora aqui está um livro, que me aguçou o apetite. Parabéns ao Jorge, parabéns à Cristina.
ResponderEliminarUm excelente 2014, para ambos.
Tb fiquei com vontade de ler, Nuno! Bom ano p ti tb! Bjs
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