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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A Escolha do Jorge: “Jezabel”


No fim de contas, só há uma realidade, só há uma felicidade no mundo, é a juventude.” 
(p. 69)
Decidir publicar Irène Némirovsky (1903-1942) é reabilitar uma das escritoras mais conceituadas do século XX que não passou despercebida com a edição de “David Golder”, em 1929. A partir daí, seguiram-se vários romances e novelas que captaram a atenção dos leitores constituindo um dos nomes a seguir. A carreira enquanto escritora apesar de intensa, foi curta, na medida em que a escritora de ascendência judaica caiu nas malhas dos nazis, acabando por ser deportada para Auschwitz onde acabaria por falecer com febre tifóide, em 1942.

A descoberta do manuscrito incompleto “Suite Francesa” que veio a ser publicado em 2004 reabilitou a importância de Irène Némirovsky na literatura contemporânea. Herdeira de toda uma geração de escritores russos, Irène Némirovsky articula de forma original os grandes temas da literatura russa com o esplendor e fascínio de Paris, a grande capital europeia onde fervilhavam as cores, a música, os grandes salões de baile que atraíam a burguesia que tanto caracterizavam a “Belle Époque”, no período anterior à 1ª Guerra Mundial (1914-1918).
São várias as obras de Irène Némirovsky que reflectem um forte pendor autobiográfico, nomeadamente no que concerne a ideias que pululam com frequência algumas das suas narrativas, como a questão de famílias ricas judaicas que emigram do Império Russo rumo a Paris, as fortunas que desaparecem e se erguem de novo, a vida faustosa destas mulheres e a sua vida fútil povoada de bailes, jóias e amantes, a difícil relação com a mãe…
“Jezabel” (1936), o romance publicado recentemente pela Cavalo de Ferro reflecte um pouco os temas acima indicados que, juntamente com “O Vinho da Solidão” (1935), constituem duas faces da mesma moeda, publicadas com um ano de diferença.
“Jezabel” é mais um dos romances de Irène Némirovsky que nas primeiras páginas da obra mergulhamos numa narrativa cativante acompanhada pela escrita original e inteligente da autora. Aqui, Irène Némirovsky navega em ambiente que conhece bem, jogando por isso em casa, retratando com rigor o ambiente faustoso e glamoroso de Paris antes da 1ª Guerra Mundial.
Gladys Eysenach é a personagem principal, uma mulher linda, elegante e rica, mas profundamente egocêntrica e com uma obsessão doentia com a sua eterna juventude.
Desde jovem que Gladys Eysenach percebeu qual seria o seu destino, qual seria a sua missão: ser bela e ser amada. Ser amada seria sempre um resultado da sua beleza. Gladys Eysenach não queria, contudo, saber do amor, não queria prisões, queria tão somente ser adorada, amada, ter uma legião de admiradores e bajuladores caídos de amores e de desejo por si para que se sentisse protegida. “Sei perfeitamente que ainda tenho idade para o amor, mas o que quero não é amar, é ser amada, sentir-me pequena, fraca, apertada por braços fortes…” (p. 94)
A sua beleza era o seu escudo. O seu escudo em igual proporção com a sua obsessão, a sua doença. A beleza de Gladys Eysenach irradiava a atenção de tudo e todos. O mundo parava à sua passagem. Fascinante e bela, Gladys Eysenach tinha a missão de permanecer jovem e bela toda a vida. Iria a todo o custo driblar a velhice. “(…) Quando pensava na velhice, parecia-lhe ainda tão longínqua que a olhava de frente sem tremer, acreditando que a morte lhe ocorreria antes do fim do prazer.” (p. 63)
Sempre insaciável tanto quanto pronta para o prazer, Gladys Eysenach “não se saciava, antes lhe era necessário esse doce veneno como o único alimento que a fazia viver.” (p. 63) Ainda adolescente a sua prima Tess “admirava aquela carne delicada que escondia nervos de aço para o prazer” (p. 51) Tess comentava com Gladys: “Compreendo que o baile lhe pareça delicioso, mas é necessário saber deixar o prazer antes que ele a deixe… É tarde. Não se divertiu já que chegue?...” (p. 53)
Ao longo da narrativa são várias as passagens que reflectem a obsessão doentia de Gladys Eysenach com a juventude, passagens que ditam muito da personagem e do seu modo de pensar. “Faça como eu. Não conte os anos passados e eles não a vão marcar com mão pesada.” (p. 69) “Que havia de melhor no mundo, que a volúpia comparável à de agradar?... Esse desejo de agradar, de ser amada, esse prazer banal, comum a todas as mulheres, tornou-se para ela uma paixão (…) que nada, jamais, tinha conseguido saciar completamente.” (p. 77) “Nunca sentira outra coisa que não fosse a sede de ser amada, a paz deliciosa do orgulho satisfeito…” (pp. 83-84) “(…) Tinha necessidade do brilho, do triunfo insolente da verdadeira juventude.” (p. 85) “Não compreende, Tess. Você é diferente. Atravessa calmamente a vida, friamente. Eu quero queimar a minha e desaparecer… (…) Estou ciumenta da minha juventude.” (p. 87) “Quero uma vida que valha a pena viver, ou, então, para que serve viver?... O que me dará a vida quando eu não puder agradar mais?... No que é que me vou tornar…” (p. 126)
Mas ninguém, por mais bela, elegante, rica e fascinante que seja consegue enganar a passagem do tempo. Os anos podem ser vividos como um belo sonho, mas um dia a realidade fala mais alto e a consciência perante o inevitável envelhecimento emerge. O mesmo acontece com a heroína da narrativa. “Os anos passaram para Gladys com a rapidez dos sonhos.” (p. 76) Para pessoas como Gladys Eysenach, a vida é sempre curta e nunca suficiente para concretizar os seus desejos, nunca são amadas o suficiente porque nunca amaram. Mas a passagem do tempo traz a consciência de que o seu tempo passou, a juventude deu lugar à velhice. “Vou ser uma velha maquilhada…” (p. 126) Dir-lhe-ão “Contentem-se, vocês, as velhas, com tudo aquilo que não vos conseguimos tirar.” (p. 203)
A sua frivolidade é uma constante ao longo da narrativa. Vazia e desprovida de sentimentos, Gladys Eysenach toma consciência que chegou a um ponto na sua vida que não tem nada para além do seu dinheiro. “«Foi só isso que amei», pensou. «Amei só o desejo deles, a submissão, a loucura, o meu poder e o meu prazer… (…) É horroroso ter posto o sentido da vida no prazer e ver o prazer fugir, mas que mais há no mundo? Sou apenas uma mulher fraca…»” (p. 127)
Já sexagenária, Gladys Eysenach num baile de Natal não dava qualquer sinal de fraqueza ou de dor perante a sua rival, vinte e cinco mais nova. Gladys aceitava o desafio como uma dura prova que se impunha a si mesma e aos demais que a sua juventude seria eterna. Gladys dizia para si mesma “«Anda, corpo meu, vá, carcaça velha… Obedece-me…»” (p. 196)
Mas até onde e quando consegue Gladys Eysenach enganar a vida e enganar-se a si própria? Há acontecimentos que a personagem desvirtua e sempre com um único propósito: parecer sempre jovem. Mas conseguirá Gladys alterar o passado sem que este a julgue? Sem que a vida a julgue? Até onde vai a obstinação de Gladys com a perseguição da eterna juventude mesmo quando está a ser acusada de homicídio de um jovem tido por seu amante?
“Jezabel” retrata desta forma a obstinação de uma mulher perante a negação da passagem do tempo e do seu envelhecimento. Irène Némirovsky remete-nos para uma narrativa intimista que nos conduz também nessa viagem que tem os seus momentos altos das paixões e dos amores e da percepção clara de que o Outono chegará inevitavelmente perante as primeiras rugas e os primeiros cabelos brancos.
“Gladys, a vida mais cedo ou mais tarde, extingue em nós as paixões mais ardentes.” (p. 81) “Eu era nova, demasiado bonita, mimada pela vida, pelos homens, pelo mundo, mimada pelo amor…” (p. 171)
Texto da autoria de Jorge Navarro


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