Ingmar Bergman: O Caminho contra o Vento, Cristina Carvalho, 2019
Pertenço a uma
geração que viu grande número de filmes realizados por Ingmar
Bergman. Filmes de personagens, com grandes diálogos, marcados por
uma cultura e uma paisagem muito distintas daquelas a que estávamos
habituados. Cristina Carvalho, neste romance biográfico desvenda-nos
um Bergman solitário, voluntariamente isolado, a viver os seus
últimos anos, na ilha de Farö no mar Báltico.
A ilha que escolheu
para viver em 1960 quando ainda jovem e onde filmou alguns dos seus
filmes é agreste, pequena, isolada, muito ventosa, um lugar
improvável para alguém querer ali estabelecer-se. Para além dos
habitantes da ilha que o acolheram e aceitaram como um dos seus, foi
o silêncio apenas quebrado pelos sons das aves, a praia, as rochas,
as pequenas flores do tremoceiro e sobretudo a paz que o atraíram
para aquele lugar longe da multidão e do resto do mundo. Agora, já
velho, quando sai de casa para o seu passeio pelos trilhos até à
praia, ao abrir a porta empurrando-a contra o vento, pergunta-se até
quando o conseguirá fazer. O vento é uma constante e as forças já
lhe faltam.
O seu estilo de vida
metódico, marcado pela pontualidade, pelo rigor e pela perfeição
quer na actividade teatral como director de actores, como realizador
de cinema ou na escrita de guiões, esse estilo manteve-o na ilha, já
afastado de qualquer actividade profissional. As rotinas diárias
quase obsessivas do acordar, do passeio pela praia, do ler, do ouvir
música ou de ver filmes no celeiro-cinema em Dämba são rituais que
ele ama e que vai fazer praticamente até ao final dos seus dias.
Ignorando telefonemas, quase sem contactos humanos, tem apenas de
conviver a contragosto com Anita que lhe cuida da casa e lhe prepara
as refeições.
No seu diário
imaginado faz desabafos. Recorda o pai, um tirano, um padre
protestante que só era gentil com os seus paroquianos, mas que vivia
para infernizar a vida de Ingmar, do irmão, da irmã e da mãe, para
os violentar e para lhes pregar sermões. Atribui ao pai as dores de
estômago que desde sempre teve e que associa ao pânico que ele lhe
infundia. Um homem maléfico que o levou a abandonar a casa paterna
muito cedo. Mas, sem dúvida, foram as figuras femininas
omnipresentes no romance e na vida de Ingmar Bergman que foram
marcantes na vida e na personalidade do cineasta. A mãe, Karin
Bergman, que ele vai associar muito à sua quinta e adorada mulher
Ingrid, a avó Anna Calwagen que lhe dava toda a liberdade e as
várias mulheres com quem casou, com quem teve relacionamentos
diversos ou que passaram pela sua vida. Foram muitas. Mulheres
fortes, algumas belíssimas, todas elas artistas em diferentes áreas
e géneros, a todas ele amou e manteve com elas uma amizade até ao
fim da vida. Muito ausente da vida dos nove filhos das suas seis
mulheres, deixou-lhes, no entanto, em testamento, o dinheiro
resultante do leilão das casas que construiu na ilha de Farö e que
actualmente são geridos por uma fundação e constituem um complexo
de equipamentos destinados às artes e a residências de artistas e
investigadores da obra e do extenso legado de Ingmar Bergman.
Sendo um romance biográfico, não é uma biografia, pelo que a
autora usou toda a liberdade literária para, a partir das pesquisas
e de toda a informação que recolheu sobre o cineasta, nos fazer um
retrato da personalidade e dos traços gerais da vida de um homem
comprometido com um trabalho de elevada qualidade. “Lembro-me de
tantos filmes modestos que realizei, tão modestos na sua dimensão
artística. Sim, porque eu sei a qualidade de tudo o que fiz”. “
Eu sou, eu fui , um artista.” “Toda esta situação de
aprendizagem levou-me muito tempo. O compromisso era comigo próprio.
Eu estava decidido a ser grande. Eu seria o maior cineasta do meu
tempo e durante muito tempo.” Para quem quiser ler a biografia
de Bergman poderá ler “A Lanterna Mágica”, uma curta
autobiografia do cineasta. Talvez aí não nos surjam as insónias do
velho Bergman assaltado por memórias, medos da infância,
frustrações, desamores, incompreensões de muitos conterrâneos que
não gostavam dos seus filmes – “não gostam de se ver
retratados a nu, sem véus e sem mentiras” – ao contrário
dos naturais da ilha que o amavam e consideravam um dos seus, um
verdadeiro Faröbo.
Este é o segundo
romance biográfico de Cristina Carvalho que leio. Tal como em “A
Saga de Selma Lagerlöf”, em “Ingmar Bergman – O Caminho contra
o Vento” é palpável a paixão que se estabelece entre a escritora
e os biografados e que fica vincada no final dos livros quando a
despedida é um luto doce, mas doloroso. Fica a vontade de ler “A
Lanterna Mágica”. Fica a vontade de revisitar os filmes de Ingmar
Bergman e recordar as suas personagens, as paisagens fustigadas pelo
vento agreste e a mestria de um cineasta único que pôs na sua arte
tudo o que tinha para lhe dar.
28 de Dezembro de
2019
Almerinda Bento
Vi quase todos os filmes de Bergman e conheço a sua vida. Realmente prefiro biografias, li bastantes, ou auto-biografias. Mas esta apresentação cativante do livro até quase me convencia a lê-lo!
ResponderEliminarUm dos grandes vultos da cultura mundial. Pelo que li, penso que iria gostar de ler este livro.
ResponderEliminarFicamos a conhecer melhor o homem por detrás do génio... bjinho
EliminarEste livro recebeu hoje um prémio literário. Merecido. Fico feliz pela autora Cristina Carvalho
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