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terça-feira, 2 de outubro de 2018

A Escolha do Jorge: Raposa


“Somos todos vítimas do palavreado oco da sociedade… Nesse sentido os territórios da literatura são comuns aos da política.” (p. 178)
“E se nós, seres humanos, formos na verdade textos vivos, textos que respiram?” (p. 240)



“Raposa” é a mais recente proposta da crota Dubravka Ugrešić (n. 1949), cuja edição surge sete anos depois de “O Museu da Rendição Incondicional” (Cavalo de Ferro, 2011).

As duas obras constituem, em certa medida, as duas faces da mesma moeda, na medida em que é difícil demarcar o género literário a que pertencem. Romance, biografia, ensaio, estas duas obras magistrais são tudo isso, bastando ao leitor percorrer as primeiras páginas de cada uma das obras para perceber que Dubravka Ugrešić se situa num campeonato à parte do mundo literário. Da ideia de “rebeldes-sem-causa” (p. 310), Dubravka Ugrešić faz uma fusão original tanto quanto magistral de géneros literários, desbravando assim aquele que será o seu caminho “para formar o seu emblema estético-ideológico”. (p. 310)

Se em “O Museu da Rendição Incondicional”, Dubravka Ugrešić refere que somos “uma raça de museu” em virtude de sermos “peças de museu ambulantes”, sobretudo quando se tem como objectivo reconstituir uma determinada memória colectiva, em “Raposa”, a autora inicia a aventura com a frase “Como é que as histórias se tornam matéria escrita?” (p. 13), apresentando as várias peças de puzzle que se vão encaixando ao longo da obra que se perceberá homogénea. 

Partindo do conto de Boris Pilniak “Uma História sobre Como as Histórias se Tornam Matéria Escrita” (1926), Dubravka Ugrešić reflecte sobre o sentido e o rumo da Literatura em geral, paralelamente, com a articulação entre a vida e a História, de identidade, numa perspectiva de História viva, em movimento.

Neste sentido, Dubravka Ugrešić promove a consciência histórica nas suas obras dado que cada indivíduo é apresentado como parte integrante de um todo, da sociedade, de uma civilização em sentido mais abrangente, e da realidade histórica em perpétuo devir e construção. “Não podemos ter a certeza de que somos quem somos, de que amanhã seremos iguais a quem somos hoje; não temos certezas sobre a língua que falamos, voilà, afinal estamos a falar três línguas quando pensávamos que éramos falantes de apenas uma; não podemos ter certezas sobre as nossas fronteiras, o regime político, a nossa história, o nosso país (…); não podemos estar certos de que as imagens que desfilam diante dos nossos olhos sejam verdadeiras ou falsas.” (p. 278)

Na sequência destas ideias, Dubravka Ugrešić regressa à temática da identidade de um país, à identidade de cada um, no fundo ao tão complexo “quem somos” porque se em “O Museu da Rendição Incondicional” a autora deambulava em Berlim enquanto exilada devido à guerra da Jugoslávia, em “Raposa”, a residência permanente é Amesterdão. Escritora do exílio e das migrações, é o facto de estar fora do seu território natural por nascimento que lhe permite reflectir sobre as vicissitudes políticas, sociais, culturais e históricas.

Se em “O Museu da Rendição Incondicional”, Dubravka Ugrešić reflecte sobre o futuro da sua identidade face ao seu passaporte jugoslavo que de nada lhe servirá num país em desagregação, mutilado, com uma Croácia a (re)nascer enquanto país emergente, esta ideia é recuperada em “Raposa”, mas com uma ideia mais alargada, na medida em que, residindo em Amesterdão na qualidade de imigrante, reflecte, agora, sobre as hordas de imigrantes que se aventuram no Mediterrâneo em busca de um futuro melhor numa Europa civilizada, mas que, afinal de contas, o que tem para oferecer aos imigrantes são as fronteiras encerradas, a desconfiança e o ódio, fruto da crescente extrema-direita que tem cada vez maior expressão parlamentar, um pouco por toda a Europa. “Irão estas novas pessoas atender ao pedido mais sonoro, ou talvez a nenhum pedido, e começar um massacre dos refugiados que estão a inundar a Europa vindos de todas as direcções possíveis?” (p. 243)

Ler Dubravka Ugrešić é confrontarmo-nos com uma sensação de “mixed feelings” ao longo de toda a obra na medida em que corroboramos com parte das ideias da escritora, mas é também com frequência que sendo tão directa, crítica e corrosiva na forma realista como analisa o mundo à sua volta que nos magoa. Esta ideia de amor-ódio no que se sente sobre a escrita de Dubravka Ugrešić é uma constante nas suas obras, sem, contudo, questionarmos o valor literário e até histórico das suas obras. Na verdade, esta sua forma crua e despudorada de analisar a realidade através da literatura fomenta no leitor uma maior consciência histórica dado que coloca no leitor a ideia de que é também motor da História, sempre em movimento, sempre em construção.

Não é, pois, de estranhar as críticas que Dubravka Ugrešić lança aos festivais literários que surgem como cogumelos, um pouco por todo o lado, em que os escritores se transformam gradualmente em actores de um espectáculo de variedades, passando, de certa forma a ser instrumentalizados, como peões de tendências literárias do momento; ou quando, na Bósnia pós-guerra, perante a tristeza e pobreza extrema de uma família, em que o melhor que poderá acontecer é o neto, quando crescer, “mal ganhe mais massa muscular ou perca o juízo e expluda de loucura – os sufoque com uma almofada e acabe de vez com esta miséria” (p. 175), ou durante a visita a Pompeia,  a escritora chegar a desejar uma nova erupção vulcânica que a todos esmague com a sua lava, incluindo ela própria, na sequência das hordas de visitantes, ou quando, de forma lapidar, se refere ao poder do mundo, que não está na ilusão criada nas democracias porque quem manda não é o povo, mas sim os poderosos das economias mais representativas. “Nunca consegui a mais ténue mudança, porque este nosso mundo é governado por uma única lei: ao leme estão apenas os poderosos. Tudo o resto são «contos de fadas para crianças», «verborreia», «anedotas». (p. 275) Ou ainda a forma desmesuradamente fria e não menos cruel, quando a autora analisa as últimas duas décadas do pós-Jugoslávia, podendo-se também aplicar a inúmeras democracias ocidentais. “Desde então, mais ou menos nos últimos vinte anos, a vida foi atolada em escuma, em todos os sentidos do termo, lama, lodo, escória e nevoeiro denso. Fomos inundados de escuma, espantados perante a sua tenacidade. Nos entretantos, algumas pessoas deixaram de suster a respiração e afundaram-se, alguns de nós conseguimos chegar à outra margem, mas a maioria ficou exactamente onde estava. Desses, uns poucos desenvolveram uma capacidade de sobrevivência quase inumana, ao passo que outros conseguiram manter-se à tona ao boiarem calma e discretamente, e um terceiro grupo acabou por tomar conta do pântano, aniquilando quaisquer formas de vida excepto a escuma. Não consigo expurgar da minha memória o momento em que a escuma emergiu, na peugada de uma poderosa insurreição subaquática, e, desde então, há um quarto de século que venho a terra para analisar o fedor deste pântano infecto, tal como faria se me estivessem a pagar por esse trabalho.” (pp. 286-287)

E novamente a questão “Como é que as histórias se tornam matéria escrita?” (p. 13), tema central do conto de Boris Pilniak, vai surgindo aqui e ali, ao longo da narrativa, porque tudo está interligado, como peças de puzzle que se vão encaixando umas nas outras, até obtermos a tela que nunca estará finalizada, daí a ideia de movimento, de construção na história enquanto narrativa, assim como da própria História. Não quererá Dubravka Ugrešić dizer ao afirmar que somos “peças de museu ambulantes” (“O Museu da Rendição Incondicional”) o mesmo que “E se nós, seres humanos, formos na verdade textos vivos, textos que respiram?” (“Raposa”, p. 240) Não serão uma e outra o reverso da mesma moeda, da mesma ideia, da mesma construção, do mesmo devir?

Logo nas primeiras páginas percebemos que a raposa é o símbolo do conto de Boris Pilniak, “como totem da astúcia e da traição” (…) A raposa é o totem de todos nós, não existe uma minoria privilegiada!” (p. 35) Tudo se resume a uma questão de sobrevivência e todos os meios e artifícios fazem parte do processo que, no fundo, é a vida. A raposa, bela, elegante e, aparentemente, ternurenta que, à mínima circunstância, perante o medo, se mostra como manhosa e traiçoeira, coberta de inúmeros artifícios a fim de atacar o alvo, o alimento. “A raposa não pertence ao reino dos animais, nem ao nosso, o das pessoas, nem ao dos deuses. Será para sempre um passageiro clandestino, um migrante que se movimenta com facilidade entre mundos e que quando é apanhado sem bilhete, faz malabarismos com a ponta da cauda, exibe os seus truques reles.” (p. 315)

É aqui que a raposa é comparada ao escritor, à vida de solidão e tantas vezes sem o devido reconhecimento, porque não segue as tendências da moda, ou porque dada a sua posição política de forma objectiva e fundamentada é considerado por muitos como persona non grata, inconveniente, tal como acontece com Dubravka Ugrešić que foi repudiada durante os anos da guerra da Jugoslávia e ainda hoje os seus livros são considerados “inconvenientes”, tendo sido retirados das bibliotecas e das livrarias, porque tudo o que é “inconveniente” tem de ser substituído de modo que a realidade seja (aparentemente) mais cómoda para quem governa, tendo menos pessoas que reflictam sobre o mundo em geral e sobre a realidade histórica. 

“E também eu – após ter desenhado uma trajectória aleatória no meu mapa interior – dei por mim a viver no estrangeiro, a tornar-me uma pessoa com duas biografias, ou duas pessoas com uma biografia, ou três pessoas com três biografias e três línguas…” (p. 242)
Neste sentido, Dubravka Ugrešić conduz-nos à compreensão de que “a maldição da raposa é ausência de amor.” (p. 314)    

Dubravka Ugrešić é seguramente um nome a seguir com atenção no actual panorama editorial português. Os dados foram lançados. A fórmula já a conhecemos, tendo como pano de fundo a História que se vai construindo e seguindo o seu rumo. “O Museu da Rendição Incondicional” e “Raposa”, duas obras fundamentais para a compreensão da História Contemporânea, funcionando como dois olhares que se interligam sobre o mundo em que vivemos.

Texto da autoria de Jorge Navarro

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