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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A Escolha do Jorge: “Rua Katalin”


“O amor com que nos amam é sempre um estado de graça.” (p. 143)
“Na vida de cada um de nós, só há uma pessoa cujo nome podemos gritar no momento da morte.” (p. 190)

Magda Szabó (1917-2007) é um dos nomes incontornáveis da literatura húngara do século passado. Apesar de ter vários romances e obras de poesia publicados ao longo da sua carreira literária, é com “A Porta” (1987) que adquire uma maior projecção e notoriedade a nível mundial, tendo a obra sido adaptada ao grande ecrã (2012) com Helen Mirren vestindo a pele da empregada Emmerence. O filme, ainda que bem conseguido nos principais momentos da obra, escapa ao poder esmagador e intenso da escrita de Magda Szabó.

“Rua Katalin” é a mais recente aposta da Cavalo de Ferro que no ano passado reeditou “A Porta”, dando, desta forma, continuidade à publicação das obras desta escritora húngara. “Rua Katalin” foi editado em 1969, na sequência de dois outros romances após um período em que Magda Szabó esteve proibida de publicar na Hungria por ser identificada pelo regime comunista como inimiga do Estado, por esta não se conformar com o realismo socialista imposto pelo regime.

Magda Szabó viveu na Hungria durante a ocupação nazi e soviética, daí esta obra reflectir de forma bem explícita as diferenças entre os dois modelos de ocupação e as consequências que isso teve na população e na forma como esta passou a lidar com o Estado e as instituições, na passagem da extrema direita à extrema esquerda no país, à semelhança do que veio a acontecer naquela região da Europa em termos de cenário político, desde antes da 2ª Guerra Mundial até à queda do Muro de Berlim.

O arco cronológico de “Rua Katalin” abrange o período de 1934, já com Hitler no poder, na Alemanha, a ocupação nazi, passando pela 2ª Guerra Mundial, a transição para o regime comunista, até 1968, com a consolidação do mesmo, após a tentativa falhada da Revolução Húngara de 1956 que tentou pôr fim ao regime comunista e ocupação soviética.

“Rua Katalin” é um romance intenso, soberbo e inquietante. Fala-nos da vida e da morte e daqueles acontecimentos ou episódios que nos marca a vida de forma estrutural. Ao longo da vida, vamos coleccionando memórias de pessoas, coisas, acontecimentos e, embora vivenciados num determinado momento e lugar, nem sempre a acurada reflexão acompanha a ideia de memória porque pode ainda estar muito presente ou não haver a maturidade necessária que conduz à reflexão. Por vezes, só mesmo anos mais tarde, no decurso da vida, é que as memórias, ainda que se apresentem sob a forma de puzzle e já tantas vezes com espaços vazios entre si, é que tomamos verdadeiramente consciência da forma como um dado acontecimento político terá influenciado as nossas vidas e a vida de todo um país. Do mesmo modo que, ao nível do foro privado e familiar, com um dado episódio ou até mesmo uma certa conversa poderão ganhar, anos mais tarde, a real dimensão das suas consequências, directas e indirectas, na nossa vida e nas vidas daqueles que nos são próximos.

No início da obra, em jeito de introdução, a autora prepara o leitor para esta jornada em que vai embarcar que, no fundo, também é a sua, afinal de contas, ao afirmar “Nenhuma obra literária, nenhum médico, havia preparado os habitantes da Rua Katalin” para a luz ofuscante que a velhice lançaria sobre o túnel sombrio que haviam percorrido quase inconscientemente durante as primeiras décadas das suas vidas; nem tão-pouco para o modo como ela reorganizaria as recordações e os medos, alterando os seus julgamentos e o seu sistema de valores.” (p. 9) E resumindo o que é a vida e a complexa relação do homem com o tempo, Magda Szabó refere “Tudo aquilo que lhes acontecera até ao momento estava lá, no passado, mas de forma diferente. O espaço ficou dividido em lugares, o tempo em momentos, os acontecimentos em episódios, e os habitantes da Rua Katalin compreenderam finalmente que, na realidade, os acontecimentos que constituíam as suas vidas só em poucas situações, nalguns momentos e episódios, foram importantes; o resto servia apenas para encher os poros da fragilidade da existência, tal como as aparas de madeira impedem que se quebre o conteúdo de uma caixa destinada a uma longa viagem.” (pp. 9-10)

Se Magda Szabó criou em “A Porta” uma Emmerence inesquecível tanto quanto tortuosa e inquebrável, na sua vida e na dos demais à sua volta, em “Rua Katalin”, a autora apresenta personagens fortes, verosímeis que nos marcarão igualmente ao longo da obra e que dificilmente as esqueceremos depois de concluída a leitura.

“Rua Katalin” é daqueles livros que nos colocam perante o sentido da vida e da sua relação com a morte. É um livro intenso que mexe com a nossa estrutura emocional, deixando-nos vulneráveis, à mercê das nossas fragilidades. “Rua Katalin” é um livro que nos faz questionar o sentido prático da literatura. Se a literatura constitui um veículo para compreender o ser humano e na sua relação com a História e a Filosofia, contribui para a compreensão da vida e do real, é lícito questionarmos, por que razão há livros que nos fazem sofrer.

Este livro, narrado a várias vozes, dá-nos conta da forma como três famílias, moradoras na Rua Katilin, no centro de Budapeste, se tornaram ligadas através de laços que estão para lá dos conceitos de espaço e tempo. As crianças que brincaram juntas foram ganhando consciência que faziam parte de um todo, de uma família alargada, para além do seu núcleo familiar, relativamente ao qual se tornaram dependentes, para o bem e para o mal, para o resto da vida e até para lá da própria morte.

O leitor é confrontado a cada nova voz, em cada capítulo, com um conjunto de episódios que só mais tarde terão lugar na vida dos personagens e, funcionando como uma peça de puzzle, as peças vão-se encaixando até se nos apresentar a tela composta de inúmeros fragmentos de memórias, com perspectivas diferentes, mediante a visão e o entender de cada interlocutor. “Mas também é importante perceberem que atrás dos meus pensamentos havia outros, profundamente ancorados dentro de mim, de tal maneira que não podia chegar até eles, pensamentos que sabiam que deviam permanecer ali, sem se tornarem verbalizados e consciencializados. Mas eles estavam lá, atentos, à espera.” (pp. 102-103)

“Rua Katalin” é uma obra em que somos confrontados com sucessivos opostos ou ideias aparentemente contraditórias, na medida em que perante um momento de alegria se vislumbra em simultâneo algo tenebroso que vai acontecer ou ao contrário. As metáforas são muitas ao longo da narrativa e o recurso aos acontecimentos históricos que constituem a base da explicação para situações concretas da vida privada é algo frequente no romance. Por exemplo, a Noite da Revolução Húngara, que teve lugar a 23 de Outubro de 1956, corresponde à tentativa de a Hungria se opor ao regime comunista vigente no país desde o final da 2ª Guerra Mundial. Mas este acontecimento simboliza também a necessidade de Irén pôr fim ao seu casamento com Pali em virtude de ter sempre amado Bálint. Revolução e divórcio são, pois, sinónimos, tendo como base a prisão e a opressão, num caso os russos, em sentido alargado, e a violência da solidão e o amor não correspondido em termos familiares, na esfera privada.

“Mais tarde, pensei muitas vezes nele com sentimento de culpa, perguntando-me, como podia ter casado com ele só para endireitar a minha vida e para ter uma vida sexual normal e o amor de alguém que me podia recompensar pela perda de Bálint. Ele não deveria ter esperado até que eu o abandonasse e, numa noite, ao jantar, lhe dissesse, em tom alegre, de forma espontânea e natural, que iria divorciar-me dele, porque Bálint e eu tínhamos decidido casar. Ele deveria ter-me abandonado antes, mas não conseguiu fazê-lo. Muitas vezes penso nele com gratidão e nostalgia por ter sido um marido e uma pessoa cem vezes melhor do que Bálint, tinha muito mais qualidades do que ele. Se existe algo depois da morte, certamente terei de responder pelo casamento com Pali, não por não lhe ter dado tudo o que podia antes de o abandonar à primeira chamada de Bálint, mas porque foi muito pouco o que pude oferecer-lhe. Quase nada.” (p. 160)

Estas três famílias ficaram marcadas para todo o sempre com a tragédia ligada à família Held. Não havendo uma única referência ao facto de se tratar de uma família judia, percebemos as movimentações e os jogos de poder com a ocupação nazi no país. O casal Held é deportado supostamente para um campo de concentração e a filha Henriett é assassinada ainda adolescente. Os amores e amizades fortes da adolescência que nunca ficaram resolvidos tornaram este episódio trágico na forma como estas famílias passaram a encarar a vida, o mundo e o próprio sentido de justiça universal. “Quando os Held encaravam as hipóteses de fuga ou da sobrevivência, Henriett, sentada ao lado deles, retornava às suas memórias, vendo-se a si própria a morrer num jardim, no jardim dos Elekes, onde a morte a apanhou de pé, como acontece aos soldados, sem qualquer tipo de expressão visível no rosto. Assim costumam ser os corajosos.” (p. 88) “Esquecendo-se de que devia sempre ficar atrás da sebe, desatou a correr, atravessando o jardim, em direcção às paliçadas dos Elekes, por onde tinha entrado. De repente, apercebeu-se de que se tinha enganado. Não morreu, nem à primeira, nem à segunda, nem à terceira vez, sabia que estava viva e que queria continuar a viver. Mas quando conseguiu consciencializar-se disso, já se encontrava morta. Foi baleada duas vezes à luz da Lua. O soldado disparou nervoso, sem precisão, contudo conseguiu atingi-la com a primeira bala.” (pp. 95-96)

A morte inesperada de Henriett, por ser contranatura, gerou duas posições distintas no decurso da narrativa. No primeiro caso, entre os demais personagens continuavam a agir como se Henriett, de certa forma, estivesse viva e as suas vidas estivessem condicionadas e em suspenso por por essa mesma razão. Por outro lado, Henriett continuou a deambular como um fantasma entre os vivos, nas ruas e avenidas de Budapeste, visitando os lugares onde viveu e onde foi feliz com a sua família alargada, dando-nos também uma ideia das mudanças que ocorreram na cidade nos anos que se seguiram à 2ª Guerra Mundial. A própria Henriett, presa ao mundo dos vivos, quiçá porque estes não a deixam seguir o seu curso enquanto ente da natureza, faz questão de se misturar entre aqueles que deambulam na cidade, fazendo-se cruzar com Blanka e Irén e os seus pais, provocando nestes a ideia de um certo dejà vu. “Sabia que encontrar-se com os vivos era complicado, mas o seu mundo atraía-a tanto que regressava sempre.” (p. 168) “A senhora e o senhor Elekes, a senhora Temes, Blanka e Irén viram Henriett inúmeras vezes na rua, sem acreditarem por um segundo que era ela.” (p. 170)

Henriett tem, desta forma, um papel importante no contexto da “Rua Katilin” na medida em que, estando morta, não se consegue livrar desta ligação ao mundo dos vivos, do mesmo modo que a sua família alargada vê a sua liberdade condicionada face à imposição do comunismo. “Apesar de ser a única que possuía passaporte para todos os países do mundo, parecia ser uma prisioneira, tal como os outros membros da sua família.” (p. 168)

“Rua Katalin” pode ser interpretado como um permanente grito à ocupação soviética, na tentativa de libertar a Hungria da vontade alheia, mas trata-se de um grito silencioso que demoraria ainda vinte anos até se concretizar a derrocada do Comunismo.

Extrapolando as questões literárias, o que terá acontecido ao fantasma de Henriett ao perceber que o seu país decidiu, por vontade popular, regressar à extrema-direita há praticamente uma década? O que acontecerá ao país, à Europa e ao Mundo? Parafraseando Magda Szabó “só Deus sabia para onde tinha sido levado pela voragem da História.” (p. 128)

Texto da autoria de Jorge Navarro

2 comentários:

  1. Cris e Jorge, quero muito, mas muito ler esta autora. Já vi esta obra em livrarias e já tinha anotado "A Porta". Agora não me restam dúvidas - tenho que ler tanto uma como a outra. Obrigada por este texto maravilhoso!
    Beijinhos e leituras saborosas como esta!

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    1. Ana, o Jorge deixa-nos sempre ficar com agua na boca que é como quem diz com uma lista nova de livros a ler... beijinho

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