Era interrogada: conhecia, não conhecia? Com muita perplexidade e encantamento à mistura, respondia que não, mas de pouco me valia. A seguir a um longo silêncio mandavam-me para o quarto, donde não poderia sair durante mais de uma hora.
Não ficava nada aborrecida. Nunca encarei o isolamento, que alguns confundem com solidão, como um castigo. Era antes uma bênção, o tempo de recolher ao coração repartido pelas folhas de papel. Essa tarde ficava na companhia dos meus cadernos de poemas, que compunha desde os dez anos e só dava a conhecer às pessoas muito amigas.
Antes de abrir o mais recente, folheava o livro Libertação, de Miguel Torga, à procura dos primeiros versos de Amor:
A jovem deusa passa/Com véus discretos sobre a virgindade/Olha e não olha, como a mocidade/E um jovem deus pressente aquela graça…
A primeira fase da consciência do meu crescimento merecia ser celebrada com um poema inédito, mas no espaço disponível do caderno, para minha surpresa, não nascia poema algum, aquela tarde, só um conjunto de frases lapidares sem qualquer profundidade, registos infantis sobre a injustiça de me julgarem culpada de um facto a que era alheia. Menos mal que, naquela idade, os sentimentos desconfortáveis depressa ficam lavados com um aguaceiro de palavras. E a seguir às frases o pensamento guiava a mão por uma lista de nomes sobre os quais gostaria de escrever, todos de figuras injustiçadas pelos coevos ou silenciadas por interesses mal definidos.
Em prosa nunca tinha experimentado textos de grande fôlego, como as estórias dos autores que tanto gostava de ler. Lá estavam na mesa mal arrumada dois livros já lidos - David Copperfield, de Charles Dickens e as Mulherzinhas, de Louisa May Alcott – e dois à espera de serem afagados - Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett e As Minas de Salomão, na versão portuguesa de Eça de Queiroz. Os proibidos jaziam sob a cama, a jeito de serem puxados com uma bengala para ler, noite dentro, quando a casa ficasse quieta…
Como admirava os escritores que lia! Para mim eram deuses do Olimpo, criadores de mundos mágicos onde eu poderia refugiar-me. Bastava abrir a porta – a capa do livro - que logo se agigantava, certa de que, mal entrasse, ninguém poderia alcançar-me.
Nos anos seguintes ensaiava voos na literatura infantil que nunca viam a luz, ou em novelas infanto-juvenis que também não chegava a publicar. Tinha receio de não estar preparada. E lia mais. E a lista de figuras interessantes ia crescendo. A Poesia, o género literário de que mais gostava, continuava a fazer-me companhia. Começaram por marcar-me O Cristo Cigano de Sophia de Mello Breyner Anderson, Libertação e Cântico do Homem, de Miguel Torga, O Canto e as Armas, de Manuel Alegre. E viria a conhecer melhor a obra dos poetas de Cadernos do Meio-Dia, coordenados por António Ramos Rosa e Casimiro de Brito e a dos jovens poetas que cada dia se revelavam. Dos meus ensaios poéticos surgiam então sete livros e outros tantos esboços de novos títulos ainda na penumbra das gavetas. E explorava a arte do romance e novela que sempre rejeitava, depois de horas de convívio ameno com a escrita.
Mais tarde, em empenhada investigação para o mestrado, contactava dezenas de pessoas em itinerância entre Timor, Austrália e Portugal. Várias gerações, a mesma luta, uma força de viver. Quanta lição de vida! Nessa altura sentia o imperativo de levar o desafio antigo mais além. Baseando-me na história de uma das jovens mulheres, procurava ilustrar a coragem de todas as outras tecendo um enredo aliciante. E em poucos meses nascia Mar Mulher, um romance pequenino que se convertia numa experiência tão agradável, que nunca mais deixaria a ficção.
Depressa percebia que esse género literário era outra forma de fazer Poesia, como cantar, compor, representar. Qualquer gesto criativo que expusesse o melhor de nós seria um poema de louvor à vida. E continuo a pensar o mesmo. Antes de começar a escrever por volta das 9.30, faça sol ou caia chuva, começo logo a sentir como é bom conviver com a luminosidade das palavras. E quando, fechada a noite, está tudo silencioso, é ainda a luz das palavras, que saltitam como estrelas no computador, que me lembra como a Poesia pode acontecer sempre que afastamos o que não presta para colhermos as bênçãos diárias. Nem sempre fazemos por isso, ou fazendo, conseguimos, mas vale a pena tentar de novo.
Hoje celebro a chegada de mais um romance histórico: Conheces Sancho? É o décimo nono título: onze romances, sete livros de poemas, um livro para crianças. Já consigo conviver com o rótulo de construtora de mundos ficcionais. Menos deificados, vistos por dentro, porque a consciência do trabalho necessário para conseguir terminar a obra, despe o labor de vestes glamorosas. É um trabalho como qualquer outro executado com devoção, ainda que envolvido pela alegria terapêutica de ver nascer novas entidades.
Por que vivemos tantas horas dentro de um computador ou colados às folhas de papel a tratar por tu as letras?.. É uma pergunta recorrente. Talvez a escrita liberte. O espírito em galope pelas sendas da noite interroga os mistérios da vida, porque é preciso fazê-lo, pronto obtendo as respostas que se esquivam na pressa dos dias. Talvez a escrita engrandeça. Afinal ficamos com a ilusão de que, ao construir pontes imaginárias, nos aproximamos uns dos outros, acrescentando uns centímetros à nossa estatura moral.
Escrever deve ser o melhor acto de celebração da vida. É como se amassássemos o barro das experiências de que somos feitos com a centelha luminosa do espírito e conseguíssemos uma pasta maleável, apta a criar peças que estabeleçam empatia com os outros. Pelo menos com alguns dos outros. Ao percorrer esse caminho, ou um caminho qualquer, é menos importante alcançar metas, sempre agradáveis ao ego, do que empreender a viagem corajosa do autoconhecimento. Não com o objectivo de obter habilitação para poder passar mensagens ou ensinar seja o que for, mas tão-só para partilhar experiências que passam a ser comuns. Talvez nessa partilha nos ajudemos…talvez, pelo sentimento de pertença à mesma tribo.
Toda a gente gosta de respeito e afecto, mesmo que tenha alcançado um longo rol de títulos ou de glórias. É com esses ingredientes que trato as personagens, porque esse respeito e carinho hão-de passar para quem lê.
Para que continuem a ler-me. Só espero que me deixem escrever para eu aumentar o espólio dos devaneios literários. A minha única riqueza reside na fantasia.
Maria Helena Ventura
Parede, 14 de Maio de 2016
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