"A Borra do Café" é a mais recente aposta da Cavalo de Ferro na publicação das obras de Mario Benedetti (1920-2009), uma dos mais importantes nomes das letras do Uruguai, tendo-se notabilizado como poeta, romancista e ensaísta.
"A Borra do Café" (1992) junta-se assim aos outros dois romances de Mario Benedetti reeditados no ano passado, "A Trégua" (1960) e "Obrigada pelo Lume" (1965).
Iniciamos a leitura de "A Borra do Café" e rapidamente somos abraçados pelas doces recordações da vida do jovem Claudio que é simultaneamente o personagem principal e narrador da obra. Claudio revisita as suas memórias do tempo de criança, dando particular ênfase aos anos em que viveu com a sua família no bairro de Capurro, em Montevideo. As descrições das memórias de Claudio contribuem em certa medida para o leitor revisitar também as suas próprias memórias, em especial, aquelas memórias associadas a acontecimentos que ainda hoje estão gravadas em nós e que ainda as descrevemos de forma naïve e romântica dado que a visão dos acontecimentos já se vai perdendo na linha do tempo ficando apenas a recordação de sentimentos e certas imagens.
"As memórias também se vão apagando. (…) Tu lembras-te de tudo o que te aconteceu quando tinhas seis anos? Não te acontece às vezes lembrares-te de uma coisa que aconteceu não como evocação directa da tua memória mas sim porque aquele episódio tem sido repetidamente contado, ao longo dos anos, pela tua mãe ou pelo teu pai? E depois acabas por assumir o teu papel de protagonista dessa história contada, contudo não o fazes no interior desse protagonismo que um dia tiveste." (p. 34)
Exemplo disso são as inúmeras referências à enorme figueira que existia no bairro de Capurro junto à casa de Claudio e que através dela permitia uma ligação ao sótão da sua casa. Outro dos exemplos foi o episódio que teve lugar no dia do Graf Zeppelin que deixou os mais velhos boquiabertos, hipnotizados por aquele mamarracho hermético estacionado no espaço". (p. 21) Passado o efeito da novidade, Claudio e os seus amigos correm em direção a uma gruta onde brincam às vezes e são confrontados com o facto de Dandy, um sem-abrigo conhecido de todos, estar morto, episódio que os marcará para sempre.
A narrativa vai evoluindo num misto de humor, ironia e alguma emoção através de uma linguagem pejada de erotismo e sensibilidade sobretudo a partir do momento em que Claudio, na adolescência, começa a sentir-se atraído pelo sexo oposto. Episódios como a primeira paixoneta de Claudio, um amor de pré-adolescência vai acompanhar o jovem ao longo de vários anos até este começar a namorar com Mariana ou a descrição da primeira experiência sexual de Claudio com Natalia estão sempre envoltas com inúmeras peripécias, sendo igualmente descritas com muita ternura e humanidade sem nunca cair na vulgaridade.
O erotismo e a linguagem andam de mãos dadas nas obras de Mario Benedetti culminando no tango quando dois corpos se encaixam perfeitamente ao sabor da música. Uma passagem marcante a este respeito e que de certa forma traduz um dos traços culturais de alguns dos países da América Latina é quando tocam os primeiros acordes de um tango sobejamente conhecido é o suficiente para despertar nos homens e nas mulheres o seu quê de proxeneta e de prostituta entregando-se nesta dança sensual.
Mas nem só de alegrias são retratadas em "A Borra do Café". Os momentos tristes que advêm da doença e da morte e que marcam toda uma vida sobretudo quando as pessoas envolvidas nos são próximas deixam um rasto de tristeza à semelhança daquilo que todos já tivemos oportunidade de sentir, não por vontade própria, mas porque a vida é assim mesmo.
E na sequência deste pensamento, surge em jeito de epígrafe uma frase de Fernando Pessoa num dos capítulos finais da obra "Mas a morte está dentro da vida" que se apresenta como um hino à vida, um pouco como o ditado popular "tristezas não pagam dívidas", por isso, o importante é nos agarrarmos ao que de bom a vida tem porque inevitavelmente sabemos que tudo tem um preço e tudo tem um fim. "Não quero esperar pelos velórios para valorizar as pessoas que me são próximas. É verdade: a morte está dentro da vida. Mas podemos mandá-la de férias, não? Trabalha tanto que bem as merece. E não sintamos a sua falta porque de qualquer forma voltará, e quando voltar tocar-nos-á no ombro." (p. 142)
É impossível falarmos de "A Borra do Café" sem fazermos uma breve referência a Juliska, a empregada montenegrina que trabalha em casa da família de Claudio. Com uma grande experiência de vida e amiga da família, ninguém resiste às dificuldades que Juliska apresenta face ao castelhano baralhando com frequência os géneros das palavras, trazendo à narrativa momentos bastante divertidos, além de percebermos a importância que ocupa no seio daquela família, sobretudo na relação com Claudio e a irmã Elena.
"Pouco a pouco fui-me habituando à relação meramente amigável com a Natalia. Mesmo assim, sonhava frequentemente com ela e, claro, os lençóis sofriam as consequências. A vigilância de Juliska era implacável.
- Menino deixar lençóis muito sujas com porcario. Uma conselha: é melhor ir aos putos.
Apressava-me a corrigi-la:
- Vá lá, Juliska, o que você quer dizer é putas.
- Menino perceber." (pp. 88-89)
É difícil resistir à sensibilidade e erotismo da escrita de Mario Benedetti que nos conquista e envolve com uma capa de felicidade melancólica com a leitura de "A Borra do Café". Se por um lado a escrita deste escritor uruguaio faz recordar até certo ponto algumas obras de autores nórdicos do final do século XIX e princípio do século XX em que a melancolia faz ponto de honra sendo quase uma condição e consequência da escrita, por outro lado, essa mesma melancolia é agraciada pela necessidade em agarrar a vida, de sentir prazer por se ter um corpo que também é uma das condições para se ser feliz, como dançar e sentir um tango em toda a sua pujança.
Como as borras do café que ficam no fundo da chávena, este livro faz-nos despertar um sem número de recordações que marcam também a nossa vida. Deixemos então a música tocar!
Excerto:
"O Norberto confiou-me um problema muito pessoal. Tinha-se afastado do padre Ricardo simplesmente porque ele lhe «tinha feito uma sacanice». Acontece que, num sábado à noite, o Norberto tinha ido, com vários dos seus novos amigos, a um prostíbulo do Pantanoso e a experiência tinha-lhe deixado uma má impressão. Uma semana mais tarde, ao confessar-se ao padre Ricardo, confiou-lhe o seu pecado. (Como diz a minha avó Dolores, e muito bem, cada cardume tem o seu pescador.) O padre, além de fixar como penitência uma tonelada de pais-nossos e de ave-marias (o pobre confesso esteve umas duas horas a rezar a fio), foi contar ao pai do Norberto, que tomou duas medidas imediatas e radicais: tirou-lhe a chave e aplicou-lhe duas monumentais bofetadas que lhe deslocaram a mandíbula durante várias horas. E ainda lhe explicou que a primeira bofetada era por causa do prostíbulo («ainda é muito cedo para isso»), mas que a segunda era por ter sido tão estúpido ao ir contar isso ao padre Ricardo, logo a esse, que, «como é público e notório, é um coscuvilheiro sexual de primeira ordem».
Para o Norberto, muito mais grave do que a palmada paternal tinha sido a dolorosa revelação de que, pelo menos para o padre Ricardo, o segredo da confissão era inconsistente. Tomou então uma decisão. No domingo seguinte foi à igreja, enfiou-se no confessionário e, quando teve a certeza de que o seu inimigo se encontrava atrás da rede, desenrolou todo um ramalhete de críticas, incluindo palavrões, durante vários e transcendentais minutos, que para o inferiorizado sacerdote foram uma antecipação das chamas do inferno iminente. A catilinária terminou com uma estrondosa exortação:
- E agora, padre intriguista e maldoso, vá contar ao meu pai que o mandei à merda.
Mas o padre Ricardo ficou em contrição e nos eixos." (pp. 82-83)
Texto elaborado por Jorge Navarro
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