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terça-feira, 17 de maio de 2016

A convidade escolhe: “Carruagem para Mulheres”

Este é um livro que comprei há vários anos e de que gostei tanto que tenho emprestado a inúmeras amigas. Não é habitual voltar a ler um livro que já tenha lido, mas decidi voltar a lê-lo até por causa da polémica recentemente levantada por causa da decisão de uma operadora ferroviária alemã criar carruagens exclusivas para mulheres, com o argumento da protecção. Deplorável vivermos num mundo onde há países, como a Índia, que têm esta prática; inimaginável
que fosse possível em pleno século XXI, haver países ditos evoluídos na Europa que optem por medidas idênticas. Daí esta minha decisão de reler este belo livro que na altura tanto me impressionou e que agora quis voltar a ler, talvez com outros olhos ou com mais atenção a outros detalhes.
Akhila é uma mulher com 45 anos, solteira, a trabalhar numa repartição de Finanças, que sempre sacrificou a sua vida em função da família, tendo ficado aprisionada pela tradição. Como filha mais velha, sustento da casa com a morte do pai e depois da mãe, passou a ser encarada pelos irmãos como alguém sem futuro, dependente e inferior.  Destinada a ser, antes de tudo, filha, irmã e tia. Ao contrário de aceitar essa condição de menoridade como destino inelutável, decidiu encetar uma vida independente, partindo de comboio com bilhete de ida para outra terra. Na carruagem que toma vai encontrar várias mulheres de diferentes condições e idades e essa viagem vai ser não só uma viagem de conhecimento das vidas de outras mulheres, mas também uma viagem de libertação.
As conversas que ouve e a sua própria história que partilha com as companheiras de viagem são um painel muito completo das desigualdades e da condição feminina. Não só reforçam a convicção de Akhila sobre a escolha que fez ao decidir fazer aquela viagem, mas dão ao/à leitor/a um pano de fundo das discriminações múltiplas que as mulheres vivem em todo o mundo e não apenas na Índia, onde se desenrola este romance.
Para as mulheres o destino está traçado logo à nascença, quando os pais decidem o casamento das filhas. Ter uma filha/ser uma filha é antes do mais um empecilho! A primeira menstruação é o sinal de que tudo terá de mudar na vida das meninas, pois passarão a ser mulheres e a ter de se comportar com virtude e modéstia, palavras constantemente ouvidas nos filmes. A virgindade é vital e por isso, a experiência da primeira relação sexual com o marido, por vezes um tio mais velho, é regra geral traumática ou carregada de sensações negativas. Pelo casamento, dependentes do dinheiro dos maridos, deverão ser boas esposas, o que significa ter tempo para tomar conta das necessidades do marido e dos filhos, cuidar da casa e aceitar as imposições da sogra. E para que não haja brigas nem desentendimentos, a mulher deve anular-se e aceitar ser inferior ao marido, não questionando, antes aceitando o seu destino. Prabha Devi uma das passageiras da carruagem diz a certa altura “Uma mulher com opinião era tratada como um mau cheiro. Era evitada”. Consciente da subalternidade e da despersonalização a que as mulheres são sujeitas, conclui: “ As mulheres tornavam-se uns pontinhos minúsculos com o passar dos anos”.
Outros temas como a solidão, o aborto forçado, a violação, a culpabilização da sociedade, a rejeição do filho de uma violação, o estigma que constitui o divórcio, a prostituição, o assédio nos transportes apinhados, o amor lésbico, a naturalização da desigualdade surgem nas histórias destas mulheres indianas fazendo deste livro um verdadeiro mostruário de diferentes formas de discriminação de género.
Akhila, apesar de não se ter casado, é uma mulher com um espírito livre e que não deixou de sonhar, embora as convenções e as tradições tenham moldado o seu percurso de vida truncando o seu relacionamento afectivo com um homem mais novo do que ela. Sempre que os desejos se tornam mais fortes, sobrevêm os sentimentos de culpa e de vergonha. Naquela carruagem para mulheres ela encontra mulheres que se adaptaram, que lutaram, que ganharam autonomia  e confiança, que sofreram e que querem dar um sentido às suas vidas. E a partilha destas histórias é uma aprendizagem, a tomada de consciência de que não estão sozinhas, de que não são sozinhas neste mundo que cria espaços próprios para “Senhoras, Idosos e Deficientes” como assinala o letreiro da estação onde Akhila inicia a sua viagem.
Numa nota no final do livro, Anita Nair informa o/a leitor/a que naquela altura em que terminou o livro já não havia carruagens com beliches para mulheres na Índia. Será que, passados pouco mais que uma dezena de anos, estamos num processo de retrocesso que leva a que espaços especificamente para mulheres comecem a surgir como normais e desejáveis para proteger “os fracos”? Preocupante e digno de reflexão!

Almerinda Bento
   

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