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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A Escolha do Jorge: Todos os Dias São meus

A proposta de leitura desta semana recai sobre um pequeno livro que me chegou às mãos de forma totalmente inesperada. Tendo já ouvido diversos elogios a “Todos os Dias são Meus” de Ana Saragoça, por vezes é preciso que os livros cumpram o seu ciclo misterioso de circularem de mão em mão e não há dúvida que a melhor publicidade que se pode fazer é muitas vezes aquela que circula de boca em boca através das pessoas com quem lidamos ou através de opiniões daqueles que mais consideramos, incluindo aquelas que vamos lendo aqui e acolá na esfera digital.
Deste modo, ao iniciarmos a leitura deste pequeno livro publicado em 2012 pela Editorial Estampa e que tem passado de certa forma despercebido dos leitores (como, regra geral, acontece com a maioria dos livros publicados), rapidamente vislumbramos que se trata de um dos mais belos frescos da sociedade lisboeta contemporânea através de uma narrativa centrada num prédio de s
pequena dimensão onde habitam desde pessoas singulares a famílias com crianças, idosos, no fundo, os vários géneros de famílias dos nossos dias.
Escrito em estilo tendencialmente policial em que uma jovem moradora do prédio é encontrada morta no elevador, todos os moradores são entrevistados pela polícia, tantos as crianças, como os mais idosos, no intuito de perceber até que ponto não haja algum dos vizinhos implicado naquela misteriosa morte.
À medida que a narrativa vai desfiando, vamos percebendo aos poucos quem é quem naquele prédio lisboeta com todas as suas vicissitudes relacionadas com o quotidiano. Telhados de vidros todos têm e medos também é coisa que afinal é parte intrínseca ao ser humano, mais não seja o medo da solidão face ao envelhecimento que se agrava e intensifica na sociedade atual.
Com soberbos momentos de humor, “Todos os Dias são Meus” apresenta-nos um estilo de escrita acutilante retratando também com rigor todos os moradores do prédio em questão atendendo ao seu nível etário, não esquecendo o nível socioeconómico a que pertencem. É essa transposição do discurso oral dos personagens para a escrita que é um dos grandes pontos a favor desta narrativa, evidenciando com rigor todo um quadro mental da sociedade portuguesa adensando por um lado o aspecto de benevolência, mas por outro de uma profunda mesquinhez, intriga e diz-que-diz entre dentes.
À medida que todos os moradores são visitados, o leitor vai tomando consciência do modo como a solidão (ou o medo dela) exerce um peso determinante sobre o modo de ser e estar das pessoas criando mecanismos de autodefesa, por vezes algo incompreensíveis na fugaz tentativa de chegar ao outro.
Numa escrita limpa e reflectida, Ana Saragoça apresenta-nos em “Todos os Dias são Meus” um livro que nos inebria conquistando desde as primeiras páginas, levando-nos a compreender de forma por vezes dolorosa, como o ser humano pode ser levado à loucura e à morte em situações limite.

Excertos:
"Olhe, aí escusa de bater que não está ninguém. O velhote ontem chegou tarde e quando soube o que aconteceu, deu-lhe uma coisa e foi para o hospital. Também credo, não era caso para isso, a rapariga não lhe era nada. Morava por cima, e depois? Esse, desde que a mulher morreu, mais valia ter ido também. Os viúvos são a coisa mais desasada que há, não aguentam nada. E os filhos são uns desnaturados. Muito importantes, muito importantes, mas veja lá se levam o velho para casa deles. Os homens ainda vá, já se sabe como é que são, mas pensa que a filha é melhor? Eu bem a ouço na escada a despedir-se, adeus papá, tenha cuidado papá, ó papá não mexa no fogão, mas para casa dela é que ela não o leva, é o levas. Está bem, eles pagam à mulher que vem cá todos os dias tratar-lhe da casa e da comida, e ela até me disse que são muito certos a pagar. Quando me disse quanto é que recebia eu ia morrendo, só me faltou o vagar. Se soubesse que era tanto, tinha-me oferecido eu para tratar dele. E era de mais confiança, que a mim ninguém me tira que esta quando enche a despensa ao velho enche também a dela." (pp. 29-30)

"Quando a minha ex andou com os miúdos naqueles gurus new age, foi um fartar vilanagem: reiki, regressão, florais de Bach, os quartos redecorados por um especialista em feng shui, xaropes e cápsulas do Celeiro, e eles cada vez mais descompensados, mais traumatizados, e com os chakras mais desalinhados. Mil vezes a psicóloga, que aliás é uma mulher muito interessante, apesar de me culpar por todos os problemas dos miúdos, da hiperactividade à prisão de ventre, e de nunca ter aceitado jantar comigo." (p. 36)

"Na vida as pessoas são tudo menos coerentes e conseguiram surpreender-me sempre - pela negativa. Os livros existem porque alguém concebeu uma intriga com princípio, meio e fim, com peripécias e um desenlace. A vida real pode arrastar-se indefinidamente por intrigas mesquinhas, completamente desprovidas de interesse, e sem outro fim à vista que não a morte." (p. 60)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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