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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A Escolha do Jorge: Golpes

O francês Jean Meckert (1910-1995) foi-nos dado a conhecer através da Antígona no final de 2013 com a publicação de "Abismo e outros contos" que para aqueles que tiveram oportunidade de ler os três contos, manifestamente ficou agarrado às histórias cruas e densas do autor e que de certeza sentiu vontade de ler mais obras do autor.

No final de janeiro, a mesma editora publicou "Golpes", o primeiro romance de Jean Meckert publicado inicialmente em 1941 tendo rapidamente ficado na mira daqueles que apreciam a rebeldia das letras que traduz em certa medida a rebeldia no viver.

Tendo passado muitas dificuldades durante certos períodos da sua vida, Jean Meckert conheceu de perto o que é a fome e o desespero agarrando inúmeros trabalhos precários para poder comer e sobreviver, daí que estes temas desempenhem um papel fulcral nas suas obras. À medida que vamos conhecendo alguns pormenores da vida do escritor, rapidamente concluímos que a sua escrita reflete de forma significativa situações muito concretas da sua vida, nomeadamente aquelas que se prendem com a precariedade.

É precisamente o repúdio que sente em relação à burguesia vigente na época que Jean Meckert critica ou até mesmo a classe média que procura a todo o custo afirmar-se e copiar os padrões dessa burguesia que dita as regras sociais no que respeita ao poder de compra acabando por arrasar os mais necessitados e desprotegidos.

Esta é uma das tónicas que é transversal ao longo de "Golpes" na medida em que o personagem Félix que começa a trabalhar numa oficina sem ser propriamente um trabalhador qualificado apaixona-se por Paulette, uma das colegas, com quem acaba por contrair matrimónio. À medida que vai conhecendo a família da esposa, Félix rapidamente compreende que aquele não é o seu meio, além de ser constantemente humilhado face à sua condição social. Por outro lado, Félix reconhece nesta família a quão vazia e despropositada é face aos seus anseios de aspiração social, caindo tantas vezes no ridículo.

Clivagens sociais à parte, Jean Meckert apresenta em "Golpes" o protótipo de uma relação entre duas pessoas que passa da fase de encantamento e de enamoramento, paixão até, e que com o desenrolar da narrativa e das vivências dos personagens, acabam mesmo por se tornar estranhos entre si. A ideia de um projeto comum, idealizado a partir de dificuldades que os uniram com força e determinação numa fase inicial, viram-se completamente vazias e sem sentido nas vésperas do casamento de Félix e Paulette.

O matrimónio é então contraído quando na verdade já pouco havia entre Félix e Paulette. É certo que ambos nutriam amor um pelo outro, porém o que os ligava já era muito pouco e ainda assim tomaram a decisão de cometerem a imprudência que em pouco tempo arrastaria o casal para um contexto de violência doméstica que começou no dia do próprio casamento.

Escrito de uma forma penetrante e objetiva, Jean Meckert arrasta-nos por completo para o âmago desta complexa relação que tantas vezes nos esmaga sem recorrer a subterfúgios linguísticos. Tudo é tratado com todas as letras e palavras, tornando "Golpes" numa obra extremamente atual ao ponto de esquecermos que já foi publicada há mais de 70 anos. Até mesmo nos aspetos que remetem para a mentalidade, não existe um desfasamento assim tão grande com a atualidade sobretudo no que respeita ao nosso país que ainda se mantém provinciano e antiquado ainda que envolto de capa de aparente modernidade.

Totalmente preso a uma cadeia de dissabores, Félix vê-se como um indivíduo que questiona constantemente a sua insatisfação face ao mundo em que vive e que aquilo a que habitualmente se designa por felicidade nada mais é do que fruto de breves momentos egoístas que cada um sente. Em suma, a realidade, a vida, é tudo uma farsa que impede o homem de alcançar ou de experienciar a felicidade em pleno.

O amargo de boca que fica no final de "Golpes" segue em linha com o já não saber o que pensar e fazer, além de que em tantas situações o homem preferir a ficção à realidade e que até mesmo nessa situação também não lhe traz a alegria suprema.

Excertos:
"Sem sofrimento, não existe história, arte, civilização, nada. Já sabemos.
Se virmos bem, a felicidade é sempre qualquer coisa de obsceno.
Um contentamento perfeito, tanto à superfície como em profundidade, comer bem, gozar a vida, em espasmos ou em preces, eis a base de tudo. O resto não passa de uma grande farsa e de um biombo. A felicidade é começar por nos fecharmos num grande egoísmo. Não é que seja bonito, mas é repousante." (p. 99)

"Talvez esteja errado, mas não gosto dos conversadores. Da mesma maneira que a moda é feita para as pessoas sem gosto, a cavaqueira é o disfarce daqueles que não têm nada na cabeça, é a grande busca do impasse a que chamamos infinito, é a grande fraude civilizada, aquilo que vemos de fora, o grelado, o falhado." (p. 127)

"Nós pensamos no Pão, e não tanto na igualdade. O Pão para todos, o mínimo, o trabalho garantido, a coragem de viver. Isso não é um mal!
Pensamos também na Paz, e não tanto no antimilitarismo e na objeção de consciência. A paz sólida, duradoura. Queremos criar uma potência que se chamaria: Paz! Não há razão para tapar a cara." (p. 133)

"De repente lembrei-me de um famoso casal discretamente conflituoso e amargurado, os dois extenuados de uma noite de cinema, que havíamos julgado de alto, no tempo da nossa perfeição.
Era nesse estado que estávamos agora! Não dava para acreditar!
Os dois teimosos, mas atormentados, cheios de uma raiva surda, à beira de explodir, não havia que enganar.
Sentia espasmos dolorosos do estômago. Por um nada, ter-me-ia posto a chorar.
Buscava na cabeça alguma coisa para lhe dizer, problemas, porquês, comos. Queria estar calmo para lhe falar com ponderação e perguntar-lhe o que tinha ela contra mim que explodia em sacanice gratuita." (p. 220)

Texto da autoria de Jorge Navarro

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