Partindo de relatos de família, de algumas fotografias e de um diário inventado pela autora, Gabriela Ruivo Trindade lançou-se na tarefa de tirar do esquecimento a figura de um tio-avô – João Carreço Simões (Ti Carreço) – criando a personagem de João José Mariano (Ti Mariano). A autora reconstruiu assim a memória de um familiar que teve um papel decisivo na modernização de Estremoz no início do século passado, através de uma ficção que é a construção de uma personagem e da história de uma família a partir de várias vozes, uma narrativa que é um puzzle de personagens e de vozes em diferentes tempos e em diferentes locais.
A primeira voz que surge aquando da morte do Ti Mariano em 1954, é a de um jovem de quinze anos cujo mundo gira em torno da mãe severa, de uma irmã mais velha que lhe ensina truques para que ele não seja castigado, das escapadelas à biblioteca do tio onde descobre através de livros de anatomia a vocação que o levará a enveredar pela medicina. Para além das referências ao despertar da sexualidade, através deste narrador logo se percebe que a rigidez da mãe esconde um segredo, aquilo que tantas vezes é silenciado nas famílias.
Não querendo desvendar as vozes que se seguem e que nos permitem montar o puzzle desta família, faço aqui apenas algumas referências a aspectos que achei muito interessantes protagonizados ou referidos pelos diversos narradores, nomeadamente a referência ao Poeta da Serra da Arrábida, aos vários momentos da história de Portugal, relevando o papel do Ti Mariano como militante da causa
republicana nomeadamente em Estremoz, a luta clandestina contra o fascismo nos campos do Alentejo e mais tarde quando já após o 25 de Abril os fascistas mais uma vez quiseram levantar a cabeça, as aflições vividas pelas famílias cujos filhos combatiam no tempo da guerra colonial, a deserção para fugir a uma guerra injusta, a luta estudantil e o viver os acontecimentos do 25 de Abril de 1974 no Largo do Carmo e em Caxias aquando da libertação dos presos políticos.
Todas estas vozes nos convocam para reflexões sobre a vida, o amor, o sexo, o corpo, os medos, a solidão, a hipocrisia das convenções sociais que se ampliam num meio pequeno, o papel da Igreja como garante do status quo e da ordem estabelecida, ou a rejeição social de quem não está dentro dos padrões porque se é prostituta ou porque se engravida fora do casamento.
No centro de toda a narrativa, o Ti Mariano. Um homem que, para além do reconhecimento dos seus conterrâneos pelo bem que fez à terra, surge como um republicano convicto, um ser humano intrépido que enfrenta as hipocrisias sem medo da crítica social, com uma perspectiva modernizadora da sociedade em que se insere, mas cuja vida afectiva está bem guardada numa das vozes e no diário
íntimo em que escreve sobre o seu grande amor impossível.
Uma narrativa perfeita, complexa na sua simplicidade e limpidez, abordando a nossa história colectiva e as histórias individuais, dando voz a pessoas tão diversas e com personalidades e percursos tão distintos.
São deveras comoventes os epílogos que fecham a narrativa e que nos dão a conhecer o trabalho laborioso da autora, a partir da escuridão, descobrindo pontos de luz, tecendo pontes e atalhos, como se de um bordado ou de um quadro se tratasse, para no final se completar esta história. Uma verdadeira declaração de amor.
Almerinda Bento
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