O primeiro romance que li tinha catorze anos. E que romance! Como é que um jovem como eu abria o mundo dos livros com Stefan Zweig? Era muito autor para um rapaz do campo. Em Vinte e Quatro Horas na Vida de uma Mulher, o autor narra as paixões da personagem na primeira pessoa, tal como se fosse uma mulher a contá-las. E eu a interrogar-me. Como é que uma mulher, não era uma mulher era um homem, expõe assim a sua vida? Mas expunha bem, tão bem que num instante li o livro. Enquanto o lia, nem me pus a pensar que o autor estava a fazer batota. Eu lia o que dizia a mulher, queria lá saber se as palavras eram construídas por um homem. É que para mim, o Stefan Zweig era tão conhecido, como a certeza de que viria algum dia a publicar um livro.
Li logo a seguir outro livro do mesmo autor, o Amok. Era o que havia. Talvez fosse até um dos quatro ou cinco livros que existiam em casa dos meus pais, exceptuando os livros escolares. Mas este Amok exigiu de mim um grande empenho cognitivo, pois a narrativa era complexa, sobretudo porque comecei desde logo a detestar o personagem. Aquela obsessão repentina do médico pela mulher que lhe veio pedir ajuda, pôs-me a pensar que havia gente que eu entretanto não catalogara. Ainda bem que lhe deu o «Amok», palavra indígena que de certo modo significa propensão para lutar, mas também para morrer.
A leitura destes livros devo-as ao meu irmão. Nessa altura estagiava ele nas OGMA e lá conseguia comprar livros mais baratos.
Depois li muitos, muitos livros, mas não tantos que tenha ficado farto, nem tão poucos que não me tivessem ajudado pela vida afora.
Dos clássicos portugueses, gostei sempre mais do Aquilino do que qualquer outro. Até porque a sua obra é telúrica, bem mais próxima das minhas raízes. Então O Malhadinhas, cujo personagem assenta num espertalhão manhoso e sem medo, era tal e qual como alguns homens desenrascados que eu fui conhecendo por aí.
Estou a falar dos livros que me influenciaram, por isso dispenso-me de fazer a lista dos autores que li. Falarei no entanto de Eça de Queirós, porque em O Crime do Padre Amaro, para mim mais interessante do que os Maias, o meu pensamento dividiu-se: o reprovador, mais racional, via no padre o sequestrador sexual, quando os seus deveres devocionais o deveriam afastar dos pecados da carne. O que vale é que o lado criativo, mais ligado à intuição, espreitava a relação entre a serviçal e o padre como um voyeur, interrogando-me sobre que afectos poderiam ter aqueles dois. É que no tempo em que li O Crime do Padre Amaro, ainda me encontrava no reino da repressão mental, e por isso, toda aquela cena me perturbou.
Mas nós crescemos, não é? Num instante dei por mim a ler tudo o que aparecia sobre a segunda Guerra Mundial: entre todos, destaco Os Julgamentos de Nuremberg, de Paul Roland, testemunho real de como a justiça se pode abater sem concessões sobre os criminosos. Mas foi Mila 18, de Leon Uris, que mais me impressionou: todo o relato propõe uma lição de coragem, a capacidade do ser humano em descobrir estratégias para sobreviver num mundo excepcionalmente hostil. Com a morte por companhia nas vinte e quatro horas do dia, mesmo assim os judeus do gueto de Varsóvia organizaram-se, para sobretudo ludibriar as tropas nazis que os martirizavam. Como ratos nos seus buracos, os judeus polacos criaram uma organização que perdurou para lá da guerra. A realidade das descrições é tão verosímil, que até a história de amor que adoça a acção me pareceu verdadeira, ou não partilhassem homens e mulheres os mesmos espaços mentais e físicos.
Alguém, algum dia, me propôs a leitura de Antoinette en Saint German-des-Prés. E eu li! E não é que por ler o livro fiquei cativo da Antoinette? Sim, a da Calçada do Combro, onde ao fim do dia comia umas belas iscas com batatas fritas por onze escudos, pouco mais do que os cinco cêntimos actuais.
Tantos anos li o mesmo livro… Culpa minha? Não, culpa da Antoinette!
Outros tempos, outras mentalidades, numa altura em que na feira do livro de Lisboa se conseguia comprar bons livros pelo preço das iscas.
Então, quando a Antoinette passou a estar mais longe do que onde a tinha encontrado, surgiu-me a maior dúvida da minha vida: volto a ler Antoinette en Saint Germain-de-Prés ou fico-me por outras leituras em Almada, onde passei a ir mais vezes do que as que algum dia tinha pensado? E lá vem mais um livro ajudar-me nesta indecisão. A coisa tornou-se simples em dois parágrafos: a vida humana só acontece uma vez e nunca podemos verificar qual era a boa e qual era a má decisão porque (…) Não nos é concedida nem uma segunda, nem uma terceira, nem uma quarta vida para podermos comparar as diversas decisões. Em A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, segui o que Tomas propunha, mesmo reconhecendo a capacidade que ele tinha para o egoísmo. Como se sabe, ainda que vindo de um mau conselheiro, o conselho não tem que ser infeliz. Foi bom. Continuo a frequentar a a(l)madaAna e nunca mais pensei na Antoinette.
Depois vieram os contemporâneos abrir-me a cabeça para outras realidades: Alves Redol, Os Gaibéus; Soeiro Pereira Gomes, magistral n’Os Esteiros; José Cardoso Pires, A Balada da Praia do Cães; Álvaro Guerra, autor da trilogia Café Central, Café República, Café 25 de Abril de que muito gostei.
Mas há autores que nunca esqueço. Não digo que lhes decoro a obra, longe disso, até porque alguns dos livros que escreveram não entram nas minhas escolhas. Por exemplo: talvez esteja a cometer um sacrilégio, mas li com gosto O Memorial de Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, e a contragosto a Jangada de Pedra ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo, todos do José Saramago. Jorge Amado, Chico Buarque, Teolinda Gersão, acompanharam-me, e a partir daqui, juntando os autores contemporâneos que acima citei, já se sabe para que lado os meus ideais me conduzem na sociedade.
Em frente. A partir de certa altura, as minhas leituras deixaram de ter a abrangência temática que tiveram, pois passei a ler quase em exclusivo sobre História: trabalhos científicos, ensaios, documentos, crónicas, tratados, e não o faço por obrigação, não tenho nenhum compromisso institucional ou profissional, apenas a curiosidade e a necessidade do saber. Leio de vez enquanto algum romance histórico, o mais recente foi O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, um belo documento sobre o clima de terror que se abateu sobre os judeus de Lisboa no início do reinado de D. Manuel I. E lá vem mais um romance histórico: A Sala das
E agora? Agora resta-me reler este artigo, mas não tantas vezes como faço com os livros que vou escrevendo. Estes são de leitura ininterrupta. Releio e volto ao princípio, e assim que são editados, volto a lê-los à espera de encontrar uma gralha, um vírgula fora do lugar, as frases de que gosto e as que gostaria de ter mudado. Pois é! Se há livros que mudaram a minha vida, os meus foram-no de certeza. Não falo da substância, alguém o fará por mim, refiro-me tão só ao tempo que eles me ocupam e me tornam uma pessoa melhor. Aliás, quando tive na mão o meu primeiro livro editado, e olhei para registo IBSN, disse cá para mim: tornei-me imortal! Não se riam. O corpo vai, mas há uma coisa que perdura: o pensamento em forma de escrita.
Jorge Sousa Correia
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