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domingo, 3 de junho de 2012
Ao Domingo com… Cristina Torrão
“Cresci rodeada de livros”; “o gosto pela leitura foi-me introduzido no berço”; “os meus brinquedos foram os livros”; “devorava livros”; “sempre quis brincar com as palavras”… Muitos escritores começam a falar sobre si com expressões deste género. Eu não. Porque nada disso seria verdade. A nossa biblioteca era modesta. Os meus pais iam lendo, mas, pasme-se, desdenhavam livros infantis.
E eu até gostava de ler, aprendi cedo, antes de completar os cinco anos. Os poucos livros que tive (pouquíssimos) foram-me oferecidos por parentes, ou amigos. Nunca ninguém me leu histórias ao deitar.
Lia os livros de leitura da escola primária de trás para a frente e de frente para trás. Ainda sei de cor alguns textos do livro da 1ª classe. Há um trecho do “milagre das rosas” que guardo na minha memória, há cerca de quarenta anos:
- Ides ver os vossos pobres, ou apenas a passeio? Mas dizei-me o que levais, nesse regaço tão cheio?
- Apenas rosas senhor, que eu outra coisa não tenho. Para fazer uma coroa, com que às vezes me entretenho.
- Vós dizeis que isso são rosas? Como posso acreditar? Não há cravos em Janeiro, menos rosas de toucar. Mostrai lá, minha rainha, o que vai nesse avental!
- Pois aqui está, meu marido, perdoai se vos menti. São esmolas para os meus pobres, que tantos há por aqui.
(D. Isabel abre o regaço e cai uma chuva de rosas).
- Ó que rosas tão bonitas saem dessas mãos tão nobres. Perdoai-me, minha santa, ide ver os vossos pobres!
Pelos oito ou nove anos, descobri o gosto pela banda desenhada do Tio Patinhas, apesar de os meus pais acharem que não eram livros a sério, que não se aprendia nada com aquilo. Mas lá mos iam comprando, principalmente, em situações em que lhes convinha que eu estivesse sossegada.
Na minha juventude, sem incentivos, perdi, definitivamente, hábitos de leitura. Só lia os livros obrigatórios do ensino (e nem todos). Enquanto amigas minhas liam os “Cinco”, ou os “Sete”, o meu pai não queria ver “livrecos” desses lá por casa, insistia em que eu devia ler clássicos. E eu, simplesmente, desisti.
Mas formavam-se histórias na minha cabeça. Quando a vida se tornava aborrecida, monótona, o que acontecia frequentemente, eu entretinha-me a inventar histórias. Passei a adolescência a fazê-lo. Mas não as passava para o papel. No meu subconsciente, ecoava a mensagem dita pela minha professora da primária: “é boa aluna, mas não tem imaginação nenhuma!” Mensagem que a minha mãe, por alguma razão, corroborava. Seria por eu ser calada?
Eu acreditei nelas. Cegamente! Talvez por desejar que gostassem de mim.
Ensinaram-me que as pessoas só gostavam de mim, se eu não as desiludisse. E contrariar um adulto era desiludi-lo. Por isso, achava eu que as histórias que se formavam na minha cabeça não deviam ter importância nenhuma. Apesar de, a partir dos dezoito/vinte anos, se assemelharem a romances inteiros.
Aconteceu casar com um leitor compulsivo e aproveitei para reatar esse gosto que estava adormecido dentro de mim. E comecei a perceber que as histórias que eu lia eram, muitas vezes, de qualidade inferior às que eu imaginava. Dava comigo a irritar-me com certos enredos sensaborões, que ficariam bem melhor se os autores lhes tivessem dado esta ou aquela viragem. Irritavam-me personagens que agiam de determinada maneira apenas para alimentar o enredo, contrariando um carácter que vinham desenvolvendo ao longo do romance.
A certa altura, já ia a meio dos trinta, perguntei-me: porque não hei de escrever as minhas próprias histórias? Se não tenho imaginação nenhuma, porque é que elas se me formam na cabeça?
Sempre gostei da ficção histórica. E, quando li a primeira biografia de D. Afonso Henriques, escrita pelo Prof. Freitas do Amaral, a imaginação soltou-se-me de tal maneira, que fiquei em pânico, ao constatar que nunca conseguiria escrever àquela velocidade, nem mesmo se me limitasse a tomar notas. E receava esquecer-me das ideias que me surgiam.
Tive de me disciplinar, desenvolver um método de escrita, que ainda estou a aperfeiçoar. Sinto que ainda não recuperei os anos perdidos, em que ignorei este meu talento. Mas, finalmente, escrevo as histórias que gostaria de ler. Crio personagens que faço questão serem verosímeis, que tenham carácter, profundidade. Para isso, ao lado da História, pesquiso em livros de Psicologia.
O mais importante, para mim, é a criação de pessoas de carne e osso e a maneira como elas interagem umas com as outras. Os meus romances centram-se nas personagens, nos seus conflitos, nas suas crenças, nas suas lutas. Porque a História é feita, em primeiro lugar, de pessoas e, só depois, de factos.
Estou a aprender, continuo a aprender, sei que estou apenas no início e que tenho ainda muito para dar."
Cristina Torrão
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Gostei muito do seu testemunho, Cristina Torrão. Vou querer ler as suas histórias.
ResponderEliminarTantos de nós que desistiram de tantos sonhos...ainda bem que teve força para começar!
Cumprimentos
Marília G
Cristina Torrão se ainda está a prender o que direi eu....
ResponderEliminarContinue que vai no caminho cert.
Beijinho
Teresa Carvalho
Marília e Macy, os vossos comentários sensibilizaram-me, obrigada.
ResponderEliminarO importante é que olhemos para dentro de nós e descubramos aquilo de que gostamos realmente. Por mais absurdo que pareca, nem sempre é fácil.
cá vim Cristina. :) gostei muito. como é importante termos quem puxe por nós (na leitura e na escrita), quem nos mostre novos mundos que enriqueçam o que já é nosso. depois disso, cabe-nos ter a perseverança de, literalmente, tentar pôr no papel o que já não é um sonho, nem um capricho: é uma forma de vida. um beijo e votos de muitas felicidades.
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