“Beloved”,
que deu a Toni Morrison o Prémio Pulitzer em 1988, é considerada uma das obras
mais significativas da escritora norte-americana e com grande peso na
atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1993.
É um livro poético,
forte e duro. Precisa de atenção e concentração, pois, sobretudo ao princípio, há
elementos que causam estranheza e que me obrigaram a voltar atrás e a reler
para tentar perceber certos elementos. Embora só com o desenvolvimento da
narrativa alguma dessa estranheza vá sendo superada com o desvendar de detalhes
apenas aflorados inicialmente, tenho de reconhecer em mim, como leitora, a
dificuldade de concentração na nova situação de confinamento, por motivo da
pandemia do vírus global.
É uma
história dura que se passa no período pós-escravatura, depois de terminada a
Guerra de Secessão, em que as marcas deixadas pela escravatura são tão fortes
que não se apagam, antes corroem e destroem. Enlouquecem quem não consegue
esquecer que foi escravo, que tenta aprender a liberdade soltando-se das
amarras dum passado indizível. Porque o racismo não desaparece por decreto, nem
na atitude do opressor nem na cabeça do oprimido.
“Todos lhe ensinaram como era acordar de manhã e poder decidir o
que fazer com o dia. Pouco a pouco… juntamente com os outros, afirmara-se.
Libertar-se era uma coisa; reclamar a propriedade do próprio corpo era algo bem
diferente” (p. 131)
“Ele sabia exactamente o que ela queria dizer: chegar a um lugar
onde se podia amar tudo aquilo que se escolhesse – sem precisar da autorização
para o desejo –, ora bem, isso era liberdade.” (p. 217)
“Muito poucos tinham morrido na cama, como
Baby Suggs, e nenhum daqueles que conhecia, incluindo Baby, tinha vivido uma
vida sofrível. Até os negros educados: aqueles que tinham andado muito tempo na
escola, os médicos, os professores, os que escreviam nos jornais, os que tinham
negócios, até esses tiveram um difícil caminho a percorrer. Para além de
precisarem de usar a cabeça para avançar, carregavam aos ombros o peso de toda
a raça. Os brancos achavam que quaisquer que fossem os modos, sob cada pele
escura existia uma selva. Águas rápidas e intransitáveis, babuínos que se
baloiçavam aos guinchos, serpentes adormecidas, gengivas vermelhas preparadas
para o seu sangue doce e branco. De certo modo, pensou, tinham razão. Quanto
mais os negros se desgastavam a tentar convencê-los que eram amistosos, que
eram inteligentes e afectuosos, que eram humanos, quanto mais se cansavam a
convencer os brancos de algo que achavam que nem devia ser questionado, mais a
selva crescia e se adensava.” (págs. 262 e 263)
É, sobretudo,
uma história de mulheres. De raparigas que foram violadas sistematicamente, que
tiveram vários filhos de pais diferentes, de mulheres que mataram as filhas à
nascença para evitar que lhes acontecesse
o mesmo que a elas, de mulheres grávidas que foram amarradas e açoitadas, de
mulheres que foram queimadas, de mulheres que se prostituíram para dar de comer
aos filhos, de mulheres reprodutoras para darem filhos para serem vendidos, de
mulheres que quase enlouquecerem porque não conseguem esquecer. Sethe, que
“traz às costas uma árvore”; Baby Suggs, a memória viva da escravatura, cujo
filho lhe comprou a liberdade quando já não lhe servia de nada; Denver, a
menina triste, solitária, com saudades dos irmãos, que nasce numa canoa,
ajudada por Amy, uma rapariga branca que ia para Boston; Beloved, a menina
fantasma que se vem vingar por uma vida que lhe foi roubada. Mas é também uma
história de solidariedade das mulheres da comunidade que ultrapassam
comportamentos e se juntam quando não pode deixar de ser.
Sendo uma
história de mulheres, os homens não estão ausentes e o inimaginável que um ser
humano possa fazer a outro, só por uma questão de cor da pele, é-nos revelado
por Paul D. Nos dezoito anos em que esteve fora, conheceu os trabalhos forçados
acorrentado a outros homens, as canções de trabalho, a prisão, as fugas sempre
à procura de um lugar melhor para viver, o sol ardente, as chuvas torrenciais,
a lama, a terra, a palha e as cascas das árvores como cama. E quando, pela
primeira vez, um branco lhe pediu ajuda para descarregar duas arcas de uma
carruagem e no final lhe deu uma moeda, ele ficou a olhar para a moeda e
perguntou-se o que fazer com ela.
Uma história
dolorosa e complexa, com as marcas da culpa e do remorso, mas com a força
redentora de que a solidariedade é a salvação. Mesmo a terminar, o diálogo de
Paul D com uma Sethe desinteressada da vida:
“ – Sethe – disse –, tu e eu,
temos mais ontens que qualquer pessoa. Precisamos de alguns amanhãs.
Inclina-se para a frente e
pega-lhe na mão. Com a outra, toca-lhe no rosto.
– Tu és a tua melhor coisa, Sethe. És tu. – Os
dedos dele seguraram os dedos dela.
– Eu? Eu?” (p. 354)
22 de Março
de 2020
Almerinda
Bento
Um bom texto!
ResponderEliminarBom dia!
Beijos e um excelente dia
Não conhecia o livro. Parece-me uma história forte.
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