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segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A Escolha do Jorge: “Milkman”


Conhecendo-te como conheço, o mais certo é não teres feito nada, mas, segundo os rumores, ao que parece fizeste tudo.” (p. 215)
Mesmo quando já ultrapassaram todas as fronteiras do absurdo e do contraditório, as pessoas são capazes de inventar seja o que for. E depois acreditam e ainda empolam esse «seja o que for».” (p. 335).
Vencedor do Man Booker Prize 2018, “Milkman” de Anna Burns (n. 1962) foi publicado há poucas semanas em Portugal recuperando a temática do conflito das duas irlandas no final dos anos 70. Uma narrativa intensa e toda ela política que arrasta o leitor para o interior do conflito que se faz sentir numa pequena localidade da República da Irlanda com todas as vicissitudes que denotam a mais pura esquizofrenia social, política e religiosa que, tratando-se de ficção, é o reflexo das vivências no período do conflito.

Numa pequena localidade em que cada gesto é medido criteriosamente, cada palavra é proferida à cautela, os nomes das crianças, sobretudo os dos rapazes são escolhidos a preceito da identidade nacional, a compra dos automóveis e até de bens de consumo devem reflectir essa mesma identidade, o mesmo acontecendo com a religião e as orações, tratando-se da denominação católica ou protestante, tudo no quotidiano deve ser o espelho do grupo a que se pertence ainda que nunca se verifique numa única linha a indicação à Irlanda e ao Reino Unido. Viver cada dia é sobreviver à loucura instituída pelos homens que tornaram a política e a religião como focos de instabilidade e de desconfiança generalizada por parte de todos os cidadãos, culminando, com frequência, com a aplicação de justiça pelas próprias mãos, fazendo vítimas em todas as famílias através da prática continuada de assassinatos em nome da ordem e de todo um quadro de valores que se pretende manter em detrimento da facção oposta.
Numa narrativa em que ninguém é chamado pelo nome (a não ser dois personagens), nem tão-pouco a personagem principal, uma jovem de dezoito anos, que relata a sua experiência terrível na sequência de ter sido empurrada para o meio de um enredo fomentado por um dos seus cunhados que misturou factos com invenções e que, num ápice, se tornou numa bola de neve, com o acréscimo de informações totalmente erradas que quase conduziu à morte da protagonista.
A frase inicial de “Milkman” não poderia ser mais clara e objectiva face ao que decorrerá no decurso da narrativa. “O dia em que o Coiso e Tal me encostou uma pistola ao peito e me chamou assanhada e ameaçou dar-me um tiro foi o mesmo dia em que o leiteiro morreu.” (p. 7) O leitor é assim confrontado com este género de violência que acompanhará toda a narrativa até os acontecimentos descritos na frase terem lugar efectivamente.
Numa comunidade em que desconfiar da própria sombra é algo tão natural como respirar, transformar boatos em mentiras faz também parte do modo de vida das pessoas, cujo interesse pela vida alheia adquire um tom deveras importante na medida em que todos os gestos, todos os movimentos são observados de modo escalpelizado no intuito de proteger o lado católico em detrimento do lado protestante, fomentando o conservadorismo irlandês em oposição a tudo o que vem do “lado de lá do canal”, a referência habitual ao Reino Unido.
A jovem protagonista torna-se alvo do olhar atento da pequena comunidade devido à particularidade de ler na rua no percurso do trabalho para casa, actividade avaliada como perigosa e considerada, por essa razão, uma pessoa “para lá” (alusão às pessoas pró-Reino Unido), sendo rotulada de “esquisitóide anormal” (p. 218).
“- Tu lês livros ‘do princípio ao fim’, e tiras notas e lês as notas de rodapé e sublinhas passagens, até parece que estás sentada à secretária ou assim, no teu gabinete ou assim, de cortinas fechadas, com o candeeiro ligado e com uma chávena de chá ao lado, a redigires os teus ensaios e dissertações e meditações. É perturbante. É vicioso. É oticamente ilusório. É anticomunidade. Revela falta de instinto de autopreservação. É um hábito que chama as atenções sobre si e porque haveria alguém de querer chamar as atenções sobre si aqui, com inimigos à nossa porta e a nossa comunidade sitiada, quando temos de nos manter unidos?
- Espera lá – interrompi. - Estás a dizer que não há problema em ele andar aí com explosivos na carrinha, mas que já há problema em eu ler a ‘Jane Eyre? em público?” (p. 219)
Ao longo da obra, são inúmeros os diálogos como o acima transcrito que nos leva a considerar a linha de pensamento surreal das pessoas face ao instinto de sobrevivência. Tentar encontrar erros ou falta de sentido em simples gestos ou actos que não prejudicam nada nem ninguém ou simplesmente procurar a lógica no absurdo é algo que acompanha o leitor ao longo de “Milkman”.
Mas o enredo em que a protagonista estava envolvida era ainda mais complexo sobretudo quando a confusão das pessoas é tanta ao ponto de um boato se tornar como verdade absoluta e, neste caso, falamos das questões relacionadas com o foro afectivo e sexual na medida em que o “diz-que-diz” que partiu de um dos cunhados da jovem e que encontrou eco na comunidade, foi o de ter surgido o Leiteiro (que afinal não era leiteiro) como seu amante, quando se tratava de um indivíduo de 41 anos e casado, situação vergonhosa no seio da pequena comunidade católica. A jovem protagonista vive dias de angústia sem saber para onde se virar porque, a par do seu “namorado mais ou menos” com quem mantém uma “relação mais ou menos”, vê-se agora vítima da comunidade que lhe “arranjou” o Leiteiro como amante, evitando, a todo o custo que o boato chegue aos ouvidos do seu “namorado mais ou menos”.
De enredo em enredo, de personagem em personagem, o leitor vai sendo massacrado ao longo de quase 400 páginas de conversas e pensamentos ao nível do “diz-que-diz” onde tudo vale menos apurar onde está a verdade. O leitor mergulha a fundo naquilo que pode ser entendido como a racionalidade do absurdo porque, mesmo não parecendo, tudo se desenvolve dentro de uma determinada lógica comportamental.
Tanto do ponto de vista político como religioso, são inúmeras as situações em que somos levados a concluir que nem Estados, nem Igrejas (Católicos e Protestantes) pretendiam o fim do conflito, bem pelo contrário, alimentavam-no porque sabiam que, de ambos os lados das barricadas, havia sempre extremistas prontos a atacar em nome de uma causa mesmo que possam pagar com a vida.
“Milkman” é um livro violentíssimo que, a par dos temas expostos, apresenta uma escrita que nos impõe uma certa cadência, morosidade, como se nos arrastasse para dentro do conflito e de toda aquela parafernália de preconceitos absurdos.
É importante referir que tratando-se de uma democracia, há direitos dos cidadãos que são parcial ou totalmente usurpados, sobretudo no que concerne à liberdade de movimentos, mesmo nas situações mais banais do quotidiano, a liberdade de expressão, toda a população encontrar-se sob vigilância e escuta telefónica quer pelo Estado, quer por grupos antigoverno. É o medo instalado nas cabeças dos cidadãos, um medo que, de geração após geração, já nem é encarado como tal, mas como um modo de vida, restando o instinto de sobrevivência.
Texto da autoria de Jorge Navarro

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