“Conhecendo-te
como conheço, o mais certo é não teres feito nada, mas, segundo os
rumores, ao que parece fizeste tudo.” (p. 215)
Mesmo
quando já ultrapassaram todas as fronteiras do absurdo e do
contraditório, as pessoas são capazes de inventar seja o que for. E
depois acreditam e ainda empolam esse «seja o que for».” (p. 335).
Vencedor do Man Booker Prize
2018, “Milkman” de Anna Burns (n. 1962) foi publicado há poucas
semanas em Portugal recuperando a temática do conflito das duas
irlandas no final dos anos 70. Uma narrativa intensa e toda ela
política que arrasta o leitor para o interior do conflito que se faz
sentir numa pequena localidade da República da Irlanda com todas as
vicissitudes que denotam a mais pura esquizofrenia social, política
e religiosa que, tratando-se de ficção, é o reflexo das vivências
no período do conflito.
Numa
pequena localidade em que cada gesto é medido criteriosamente, cada
palavra é proferida à cautela, os nomes das crianças, sobretudo os
dos rapazes são escolhidos a preceito da identidade nacional, a
compra dos automóveis e até de bens de consumo devem reflectir essa
mesma identidade, o mesmo acontecendo com a religião e as orações,
tratando-se da denominação católica ou protestante, tudo no
quotidiano deve ser o espelho do grupo a que se pertence ainda que
nunca se verifique numa única linha a indicação à Irlanda e ao
Reino Unido. Viver cada dia é sobreviver à loucura instituída
pelos homens que tornaram a política e a religião como focos de
instabilidade e de desconfiança generalizada por parte de todos os
cidadãos, culminando, com frequência, com a aplicação de justiça
pelas próprias mãos, fazendo vítimas em todas as famílias através
da prática continuada de assassinatos em nome da ordem e de todo um
quadro de valores que se pretende manter em detrimento da facção
oposta.
Numa
narrativa em que ninguém é chamado pelo nome (a não ser dois
personagens), nem tão-pouco a personagem principal, uma jovem de
dezoito anos, que relata a sua experiência terrível na sequência
de ter sido empurrada para o meio de um enredo fomentado por um dos
seus cunhados que misturou factos com invenções e que, num ápice,
se tornou numa bola de neve, com o acréscimo de informações
totalmente erradas que quase conduziu à morte da protagonista.
A
frase inicial de “Milkman” não poderia ser mais clara e
objectiva face ao que decorrerá no decurso da narrativa. “O dia em
que o Coiso e Tal me encostou uma pistola ao peito e me chamou
assanhada e ameaçou dar-me um tiro foi o mesmo dia em que o leiteiro
morreu.” (p. 7) O leitor é assim confrontado com este género de
violência que acompanhará toda a narrativa até os acontecimentos
descritos na frase terem lugar efectivamente.
Numa
comunidade em que desconfiar da própria sombra é algo tão natural
como respirar, transformar boatos em mentiras faz também parte do
modo de vida das pessoas, cujo interesse pela vida alheia adquire um
tom deveras importante na medida em que todos os gestos, todos os
movimentos são observados de modo escalpelizado no intuito de
proteger o lado católico em detrimento do lado protestante,
fomentando o conservadorismo irlandês em oposição a tudo o que vem
do “lado de lá do canal”, a referência habitual ao Reino Unido.
A
jovem protagonista torna-se alvo do olhar atento da pequena
comunidade devido à particularidade de ler na rua no percurso do
trabalho para casa, actividade avaliada como perigosa e considerada,
por essa razão, uma pessoa “para lá” (alusão às pessoas
pró-Reino Unido), sendo rotulada de “esquisitóide anormal” (p.
218).
“-
Tu lês livros ‘do princípio ao fim’, e tiras notas e lês as
notas de rodapé e sublinhas passagens, até parece que estás
sentada à secretária ou assim, no teu gabinete ou assim, de
cortinas fechadas, com o candeeiro ligado e com uma chávena de chá
ao lado, a redigires os teus ensaios e dissertações e meditações.
É perturbante. É vicioso. É oticamente ilusório. É
anticomunidade. Revela falta de instinto de autopreservação. É um
hábito que chama as atenções sobre si e porque haveria alguém de
querer chamar as atenções sobre si aqui, com inimigos à nossa
porta e a nossa comunidade sitiada, quando temos de nos manter
unidos?
-
Espera lá – interrompi. - Estás a dizer que não há problema em
ele andar aí com explosivos na carrinha, mas que já há problema em
eu ler a ‘Jane Eyre? em público?” (p. 219)
Ao
longo da obra, são inúmeros os diálogos como o acima transcrito
que nos leva a considerar a linha de pensamento surreal das pessoas
face ao instinto de sobrevivência. Tentar encontrar erros ou falta
de sentido em simples gestos ou actos que não prejudicam nada nem
ninguém ou simplesmente procurar a lógica no absurdo é algo que
acompanha o leitor ao longo de “Milkman”.
Mas
o enredo em que a protagonista estava envolvida era ainda mais
complexo sobretudo quando a confusão das pessoas é tanta ao ponto
de um boato se tornar como verdade absoluta e, neste caso, falamos
das questões relacionadas com o foro afectivo e sexual na medida em
que o “diz-que-diz” que partiu de um dos cunhados da jovem e que
encontrou eco na comunidade, foi o de ter surgido o Leiteiro (que
afinal não era leiteiro) como seu amante, quando se tratava de um
indivíduo de 41 anos e casado, situação vergonhosa no seio da
pequena comunidade católica. A jovem protagonista vive dias de
angústia sem saber para onde se virar porque, a par do seu “namorado
mais ou menos” com quem mantém uma “relação mais ou menos”,
vê-se agora vítima da comunidade que lhe “arranjou” o Leiteiro
como amante, evitando, a todo o custo que o boato chegue aos ouvidos
do seu “namorado mais ou menos”.
De
enredo em enredo, de personagem em personagem, o leitor vai sendo
massacrado ao longo de quase 400 páginas de conversas e pensamentos
ao nível do “diz-que-diz” onde tudo vale menos apurar onde está
a verdade. O leitor mergulha a fundo naquilo que pode ser entendido
como a racionalidade do absurdo porque, mesmo não parecendo, tudo se
desenvolve dentro de uma determinada lógica comportamental.
Tanto
do ponto de vista político como religioso, são inúmeras as
situações em que somos levados a concluir que nem Estados, nem
Igrejas (Católicos e Protestantes) pretendiam o fim do conflito, bem
pelo contrário, alimentavam-no porque sabiam que, de ambos os lados
das barricadas, havia sempre extremistas prontos a atacar em nome de
uma causa mesmo que possam pagar com a vida.
“Milkman”
é um livro violentíssimo que, a par dos temas expostos, apresenta
uma escrita que nos impõe uma certa cadência, morosidade, como se
nos arrastasse para dentro do conflito e de toda aquela parafernália
de preconceitos absurdos.
É
importante referir que tratando-se de uma democracia, há direitos
dos cidadãos que são parcial ou totalmente usurpados, sobretudo no
que concerne à liberdade de movimentos, mesmo nas situações mais
banais do quotidiano, a liberdade de expressão, toda a população
encontrar-se sob vigilância e escuta telefónica quer pelo Estado,
quer por grupos antigoverno. É o medo instalado nas cabeças dos
cidadãos, um medo que, de geração após geração, já nem é
encarado como tal, mas como um modo de vida, restando o instinto de
sobrevivência.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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