“Gelo” – Anna Kavan (Cavalo de Ferro)
“A neve tornou-se mais
espessa e continuou a cair inexoravelmente, espalhando um lençol de
brancura estéril sobre o rosto do mundo moribundo, enterrando os
violentos e as suas vítimas numa vala comum, obliterando o último
vestígio do Homem e das suas obras.” (p. 163)
“Gelo”
é o romance mais representativo do percurso literário da escritora
inglesa Anna Kavan, pseudónimo de Helen Emily Woods (1901-1968), que
foi publicado recentemente em língua portuguesa, mais de seis
décadas após a sua edição, em 1967.
Com
um tom quase profético, Anna Kavan apresenta-nos uma distopia com
características totalmente diferentes às demais congéneres
escritas até então. Em “Gelo” percebemos nas primeiras páginas
que é a própria Natureza que assume os comandos do planeta,
sobrepondo-se a qualquer regime totalitário de esquerda ou de
direita. Visionária ou atenta às transformações que o mundo
estava a ter à data da publicação de “Gelo”, o certo é que
com o arco temporal entre a sua publicação e a sua recuperação
com a recente edição, é impossível não remetermos todas as
transformações a que assistimos nos últimos anos para as “mudanças
climáticas” (p. 163) fruto da acção nefasta do Homem na sua
relação directa e indirecta com a Natureza.
Numa
época em que a Guerra Fria se fazia sentir ao nível da política
internacional, como confronto de posições e de poder por via do
recurso ao armamento, essa ideia é transposta no romance à medida
que o mundo entra em colapso fruto do avanço do gelo e frio árctico
que destrói tudo e todos, arrasando por completo todo e qualquer
vestígio da acção humana. “Deixou de haver estações do ano –
tinham sido substituídas por um frio perpétuo.” (p. 125) “Era
impossível deter os gigantescos batalhões do gelo, que marchavam a
um ritmo imparável pelo mundo, esmagando, obliterando, destruindo
tudo o que encontravam pelo caminho.” (pp. 101-102)
Percebemos
que o gelo começa a avançar a partir das regiões mais a Norte do
planeta em direcção ao Sul, fazendo com que países inteiros deixem
de existir, obrigando as populações, as que conseguem, fugir em
direcção a território ainda não abrangido pelo avanço do gelo. A
crise de refugiados em luta pela sobrevivência é intensa e os
países reorganizam-se tentando a supremacia perante outros. Os
recursos naturais tornam-se cada vez mais finitos, principalmente a
alimentação que escasseia porque também as trocas comerciais
cessam fruto do frio intenso ao ponto de os transportes deixarem de
funcionar. Tudo se transforma num verdadeiro mar branco congelado.
A
luta pela sobrevivência é em si mesma uma ideia relativa porque o
que sobra da humanidade vai acabar por sucumbir face ao avanço da
massa de gelo. Trata-se de um cataclismo que ditará o fim da
humanidade e da civilização. Por onde quer que as pessoas se voltem
ou se dirigem, a morte é inevitável. “O mundo girava em direcção
à morte. O gelo já tinha sepultado milhões de pessoas; os
sobreviventes distraíam-se com combates e fugas, mas sempre
conscientes de que o inimigo invencível estava a avançar e que,
para onde quer que fossem, o gelo lá estaria, como conquistador
final.” (p. 156)
São
vários os momentos que se nos gravam na mente, sobretudo as
descrições alusivas ao avanço do gelo e destruição de tudo
quanto se lhe depara, devido à sua intensidade imagética, contudo,
há uma passagem que traduz o sublime kantiano e que colide com a
ideia de surreal deixando o leitor perplexo tanto quanto esmagado
face à sua fragilidade e incapacidade de acção. “Vi ilhas
espalhadas pelo mar, uma vista aérea normal. Depois, algo de
extraordinário, não pertencente a este mundo; uma parede de gelo
com as cores do arco-íris a subir do mar, a avançar, empurrando uma
crista de água à sua frente ao mover-se, como se a superfície
pálida do mar fosse uma carpete a ser enrolada. Era uma visão
sinistra e fascinante, que não parecia destinada aos olhos humanos.
Fiquei a olhar para baixo e vi outras coisas ao mesmo tempo. O mundo
do gelo a espalhar-se pelo nosso mundo.” (pp. 145-146)
Não
há força humana ou tecnológica, leis ou poder político capazes de
fazer face ao poder da Natureza cujo planeta ficará sob a ditadura
do gelo. Parece que Anna Kavan foi bastante clarividente quanto a
este aspecto na medida em que a Terra, aos poucos, começa a dar
sinais de não conseguir dar resposta e de se renovar mediante a
actividade intensa do Homem. Hoje, mais do que nunca, as mudanças
climáticas são mais do que evidentes e a humanidade tem sido
alertada de que corremos o risco de a situação se tornar
irreversível. As medidas implementadas até ao presente têm sido
insuficientes num contexto global no que concerne à consciência
cívica, moral e ambiental dos cidadãos. “Os glaciares estavam a
aproximar-se. Em vez do meu mundo, em breve só haveria gelo, neve,
quietude, morte; acabar-se-iam a violência, as guerras, as vítimas;
só restaria silêncio gelado, ausência de vida. O último feito da
Humanidade seria não apenas a autodestruição, mas a destruição
de toda a vida; a transformação do mundo vivo num planeta cadáver.”
(p. 157)
“Gelo”
é um manifesto que procura alertar os políticos e a sociedade a
nível mundial no intuito de racionalizar os recursos para as
gerações futuras face à iminência do colapso civilizacional
imposto pelo poder da Natureza. Com “Gelo”, Anna Kavan conduz-nos
à conclusão de que não existem ideologias acima do poder e da
força da Natureza. “Sentia-me oprimido por uma sensação de
estranheza universal, pelo calafrio da catástrofe iminente, pela
ameaça das ruínas suspensas; e também pela enormidade do que tinha
sido feito, pelo peso da culpa colectiva. Tinha sido cometido um
crime aterrador contra a Natureza, contra o Universo, contra a vida.
Ao rejeitar a vida, o Homem tinha destruído a ordem que reinava
desde o princípio dos tempos, tinha destruído o mundo; agora,
estava tudo prestes a ficar em ruínas.” (p. 157)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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