Gosta deste blog? Então siga-me...

Também estamos no Facebook e Twitter

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A Escolha do Jorge: Gelo


 “Gelo” – Anna Kavan (Cavalo de Ferro)
A neve tornou-se mais espessa e continuou a cair inexoravelmente, espalhando um lençol de brancura estéril sobre o rosto do mundo moribundo, enterrando os violentos e as suas vítimas numa vala comum, obliterando o último vestígio do Homem e das suas obras.” (p. 163)
“Gelo” é o romance mais representativo do percurso literário da escritora inglesa Anna Kavan, pseudónimo de Helen Emily Woods (1901-1968), que foi publicado recentemente em língua portuguesa, mais de seis décadas após a sua edição, em 1967.
Com um tom quase profético, Anna Kavan apresenta-nos uma distopia com características totalmente diferentes às demais congéneres escritas até então. Em “Gelo” percebemos nas primeiras páginas que é a própria Natureza que assume os comandos do planeta, sobrepondo-se a qualquer regime totalitário de esquerda ou de direita. Visionária ou atenta às transformações que o mundo estava a ter à data da publicação de “Gelo”, o certo é que com o arco temporal entre a sua publicação e a sua recuperação com a recente edição, é impossível não remetermos todas as transformações a que assistimos nos últimos anos para as “mudanças climáticas” (p. 163) fruto da acção nefasta do Homem na sua relação directa e indirecta com a Natureza.
Numa época em que a Guerra Fria se fazia sentir ao nível da política internacional, como confronto de posições e de poder por via do recurso ao armamento, essa ideia é transposta no romance à medida que o mundo entra em colapso fruto do avanço do gelo e frio árctico que destrói tudo e todos, arrasando por completo todo e qualquer vestígio da acção humana. “Deixou de haver estações do ano – tinham sido substituídas por um frio perpétuo.” (p. 125) “Era impossível deter os gigantescos batalhões do gelo, que marchavam a um ritmo imparável pelo mundo, esmagando, obliterando, destruindo tudo o que encontravam pelo caminho.” (pp. 101-102)
Percebemos que o gelo começa a avançar a partir das regiões mais a Norte do planeta em direcção ao Sul, fazendo com que países inteiros deixem de existir, obrigando as populações, as que conseguem, fugir em direcção a território ainda não abrangido pelo avanço do gelo. A crise de refugiados em luta pela sobrevivência é intensa e os países reorganizam-se tentando a supremacia perante outros. Os recursos naturais tornam-se cada vez mais finitos, principalmente a alimentação que escasseia porque também as trocas comerciais cessam fruto do frio intenso ao ponto de os transportes deixarem de funcionar. Tudo se transforma num verdadeiro mar branco congelado.
A luta pela sobrevivência é em si mesma uma ideia relativa porque o que sobra da humanidade vai acabar por sucumbir face ao avanço da massa de gelo. Trata-se de um cataclismo que ditará o fim da humanidade e da civilização. Por onde quer que as pessoas se voltem ou se dirigem, a morte é inevitável. “O mundo girava em direcção à morte. O gelo já tinha sepultado milhões de pessoas; os sobreviventes distraíam-se com combates e fugas, mas sempre conscientes de que o inimigo invencível estava a avançar e que, para onde quer que fossem, o gelo lá estaria, como conquistador final.” (p. 156)
São vários os momentos que se nos gravam na mente, sobretudo as descrições alusivas ao avanço do gelo e destruição de tudo quanto se lhe depara, devido à sua intensidade imagética, contudo, há uma passagem que traduz o sublime kantiano e que colide com a ideia de surreal deixando o leitor perplexo tanto quanto esmagado face à sua fragilidade e incapacidade de acção. “Vi ilhas espalhadas pelo mar, uma vista aérea normal. Depois, algo de extraordinário, não pertencente a este mundo; uma parede de gelo com as cores do arco-íris a subir do mar, a avançar, empurrando uma crista de água à sua frente ao mover-se, como se a superfície pálida do mar fosse uma carpete a ser enrolada. Era uma visão sinistra e fascinante, que não parecia destinada aos olhos humanos. Fiquei a olhar para baixo e vi outras coisas ao mesmo tempo. O mundo do gelo a espalhar-se pelo nosso mundo.” (pp. 145-146)
Não há força humana ou tecnológica, leis ou poder político capazes de fazer face ao poder da Natureza cujo planeta ficará sob a ditadura do gelo. Parece que Anna Kavan foi bastante clarividente quanto a este aspecto na medida em que a Terra, aos poucos, começa a dar sinais de não conseguir dar resposta e de se renovar mediante a actividade intensa do Homem. Hoje, mais do que nunca, as mudanças climáticas são mais do que evidentes e a humanidade tem sido alertada de que corremos o risco de a situação se tornar irreversível. As medidas implementadas até ao presente têm sido insuficientes num contexto global no que concerne à consciência cívica, moral e ambiental dos cidadãos. “Os glaciares estavam a aproximar-se. Em vez do meu mundo, em breve só haveria gelo, neve, quietude, morte; acabar-se-iam a violência, as guerras, as vítimas; só restaria silêncio gelado, ausência de vida. O último feito da Humanidade seria não apenas a autodestruição, mas a destruição de toda a vida; a transformação do mundo vivo num planeta cadáver.” (p. 157)
“Gelo” é um manifesto que procura alertar os políticos e a sociedade a nível mundial no intuito de racionalizar os recursos para as gerações futuras face à iminência do colapso civilizacional imposto pelo poder da Natureza. Com “Gelo”, Anna Kavan conduz-nos à conclusão de que não existem ideologias acima do poder e da força da Natureza. “Sentia-me oprimido por uma sensação de estranheza universal, pelo calafrio da catástrofe iminente, pela ameaça das ruínas suspensas; e também pela enormidade do que tinha sido feito, pelo peso da culpa colectiva. Tinha sido cometido um crime aterrador contra a Natureza, contra o Universo, contra a vida. Ao rejeitar a vida, o Homem tinha destruído a ordem que reinava desde o princípio dos tempos, tinha destruído o mundo; agora, estava tudo prestes a ficar em ruínas.” (p. 157)
Texto da autoria de Jorge Navarro

Sem comentários:

Enviar um comentário