“Amar
o que nos é mais próximo é uma vantagem que faz avançar os
séculos tempestuosamente, que nos faz rolar pelo mundo
pensativamente, que nos faz sentir a vida a alta velocidade e com
alma, e por isso temos de saber agarrá-la e aproveitá-la a cada
segundo, mil vezes, mas eu que sei!”
(pp. 34-35)
Reconhecido
por Kafka, Robert Musil, Hermann Broch, entre outros, Robert Walser
(1878-1956) é um dos grandes nomes da literatura do século passado,
muito embora o seu reconhecimento só tenha acontecido após a sua
morte.
Robert
Walser soube analisar a realidade do seu tempo, a par do
comportamento humano atendendo às transformações que ocorreram na
passagem do século XIX para o século XX. O escritor suíço de
língua alemã passou a escrito com grande mestria um retrato
psicológico e sociológico bastante acurado, passando aos leitores
um grito de insatisfação face ao rumo que o homem moderno estava a
tomar, na medida em que a sua liberdade ficou fortemente condicionada
face às exigências do novo estilo de vida das cidades.
As
suas obras reflectem muito da vida do escritor, assim como da sua
família e obras como “Os Irmãos Tanner” (1907) não é
excepção, além de mergulharmos numa escrita que também nos leva a
questionar a vida contemporânea em que as pessoas ficaram presas a
rotinas sem, contudo, viverem a vida em pleno. As rotinas, o
trabalho, a imposição do capitalismo através da sedução
consumista transformou o homem contemporâneo num ser alienado e
virado para si mesmo, passando a isolar-se das outras pessoas.
Passado
mais de um século após a publicação de “Os Irmãos Tanner”,
Robert Walser leva-nos a questionar sobre o que andamos de facto a
fazer com a nossa liberdade. O escritor encarna Simon Tanner, o
personagem principal da narrativa, através de pelo menos um dos
dados importantes que rapidamente nos apercebemos no início da obra
e que somos iludidos com a ideia de que Robert Walser/Simon Tanner
eram pessoas erráticas, sem discernimento, inconsequentes, na medida
em que saltavam de trabalho em trabalho porque não se conseguiam ver
presos a uma única actividade ou a partir do momento em que esse
trabalho deixava de os satisfazer ou porque condicionavam a sua
liberdade.
“Quanto
ao privilégio de auferir um salário mensal fixo, a minha
indiferença não podia ser maior. Aqui esmoreço, perco inteligência
e coragem, torno-me burocrata.” (p. 30)
À
medida que a narrativa avança, percebemos o modo de pensar de Simon
Tanner na medida em que o homem moderno se iludiu com uma estranha
felicidade nas prisões que cria com as rotinas laborais e
burocráticas, através de tarefas que, vistas as coisas, não
enaltecem o ser humano, não promovem a sua criatividade, além de
que o deixam enclausurado durante uma boa parte do dia em edifícios
que, tantas vezes, são comparadas a prisões.
“Prefiro
ser pobre mas saudável, renuncio a uma vivenda em favor de um quarto
barato, mesmo que ele dê para um beco escuro, prefiro ter embaraços
financeiros a cair no embaraço de decidir aonde hei-de viajar no
Verão para restabelecer a minha saúde arruinada, é certo que sou
respeitado por uma pessoa apenas, a saber, eu próprio, mas é este o
respeito que mais me importa, sou livre e, sempre que a necessidade o
exige, posso vender a minha liberdade por certo tempo, para depois
ser livre outra vez. Vale a pena ser pobre em nome da liberdade. Não
me falta o que comer, porque tenho o talento de me saciar com pouco.
Perco as estribeiras quando alguém me fala em “ter estatuto” e
tenta assim incutir-me juízo. Quero continuar a ser uma pessoa. Numa
palavra: gosto do perigo, do abismo, do incerto, do incontrolável!”
(p. 166)
A
serenidade de Simon Tanner atrai o leitor e os desconhecidos que com
ele se cruzam chegando a entabular conversa por sentirem nele algo de
diferente em relação aos demais transeuntes. Sempre com um sorriso
no rosto e de bem com a vida, Simon Tanner irradia algo que pareceu
perder-se no tempo da era industrial e na expansão urbana em que as
fábricas contribuíram para a descaracterização do trabalho
manual, deixando, por isso, de os objectos serem apreciados com o
merecido respeito dado tratar-se da produção em massa em oposição
ao trabalho executado pelos artífices. Do mesmo modo que a vida
tranquila do campo e a cadência das estações do ano conferem calma
e tranquilidade ao homem por este ser também um elemento integrante
da natureza, fazendo parte de um tecido social do qual faz parte e no
qual é respeitado, em oposição à expansão das cidades em que
cada um existe por si mesmo numa amálgama de gente opaca e sem
vínculos entre si.
“Se
eu fosse sapateiro, pelo menos faria sapatos para crianças, homens e
senhoras, que num dia de Primavera iriam passear para a rua com os
meus sapatos calçados. E quando eu visse os meus sapatos em pés
estranhos, sentiria a Primavera. Aqui não consigo sentir a
Primavera, aqui a Primavera incomoda-me.” (p. 27)
É
esta ideia de o Homem ser parte integrante da natureza que o conduz à
sua preservação. Preservando a natureza, será também uma forma de
preservar a espécie humana e esta preservação traz consigo a ideia
de conservação cultural que é transmitida de geração em geração
ao longo dos séculos. Quando o Homem se dá aos outros, recebe na
mesma medida, mas sobretudo através do respeito e amor pelo que a
Humanidade cultivou ao longo dos tempos.
“A
cultura, por mais refinada, permanece natureza, porque afinal não é
mais do que uma invenção lenta que se estende ao longo dos tempos e
que é criada por seres que dependerão sempre da natureza. Se você
pintar um quadro, Kasper, esse quadro será natureza, porque você
pinta com os seus sentidos e com os seus dedos, e estes foram-lhe
dados pela natureza. Não, fazemos bem em amar a natureza, em pensar
sempre nela com seriedade, diria mesmo em adorá-la, pois mais tarde
ou mais cedo nós temos de rezar, senão envilecemos. Amar o que nos
é mais próximo é uma vantagem que faz avançar os séculos
tempestuosamente, que nos faz rolar pelo mundo pensativamente, que
nos faz sentir a vida a alta velocidade e com alma, e por isso temos
de saber agarrá-la e aproveitá-la a cada segundo, mil vezes, mas eu
que sei!” (pp. 34-35) “Compreendo tão bem a arte e o ímpeto que
ela transmite aos homens e a vontade de conquistar deste modo o amor
e a mercê da natureza.” (p. 75)
Simon Tanner apresenta-se
assim, serenamente, em contraciclo, num contexto social e económico
que se, por um lado, representa o homem moderno, por outro, ilustra
bem a forma como o homem e a sociedade em geral desenvolveram as
cidades, mas descaracterizando o ser humano na sua essência,
condicionando a sua liberdade e não se tornando necessariamente mais
feliz.
Robert
Walser oferece-nos, deste modo, um romance soberbo tanto quanto
luminoso, repleto de humanidade que nos faz reflectir sobre a nossa
passagem pelo mundo, os valores e a bondade entre os homens. Robert
Walser através do seu interlocutor Simon Tanner idealizou a religião
perfeita, na sequência dos pontos expostos, conforme descrita na
seguinte passagem:
“A
religião é, na minha experiência, o amor à vida, um apego íntimo
à terra, a alegria do momento, a confiança no belo, a crença nos
homens, a ausência de preocupações no convívio com amigos, a
vontade de meditar e um sentimento de irresponsabilidade em caso de
desgraça, é sorrir diante da morte e mostrar coragem em todos os
desafios que a vida oferece. Nos últimos tempos, a nossa religião
passou a ser um sentido profundo e humano de decência. Se os homens
forem decentes entre si, também o serão aos olhos de Deus. Que mais
pode Deus querer?” (p. 171)
Texto da autoria de Jorge Navarro
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