“Sinto-me hoje com apetite para trincar fígado de aristocrata, acompanhado de vinho branco…”
(p. 165)
“Reina a paz em todo o território da República. Terror salutar, terror santo! Generosa guilhotina!”
(p. 211)
Romances como “Os Deuses Têm Sede” (1912) e “A Revolta dos Anjos” (1914) são reveladoras do conhecimento de Anatole France no que respeita aos grandes nomes da literatura greco-latina, renascentista e iluminista atendendo às inúmeras referências no decurso das narrativas.
“Os Deuses Têm Sede” é uma obra de grande fôlego e que remonta aos primeiros anos após a Revolução Francesa (1789), sobretudo entre 1793 e 1794, numa época em que a França, e Paris em particular, vivia uma espécie de guerra civil, conhecido por Terror, que opunha os defensores dos ideais da Revolução – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – aos defensores do Antigo Regime, com um Rei Absoluto e o Clero e a Nobreza como ordens sociais privilegiadas.
Este período conturbado – o Terror – teve a guilhotina como símbolo associado como forma de impor os ideias da Revolução como defesa da República, sendo, em certa medida, comparado aos autos-de-fé e as fogueiras implementados pela Inquisição.
Marat e Robbespierre são dois nomes que ficaram associados a este período negro da História da França, o primeiro, nascido na Suiça e com uma educação protestante, é o autor da expressão “inimigos do povo”, cujas listas surgiam no seu jornal, convocando-os para a execução.
Robbespierre, apelidado por “Incorruptível” assumiu o curso da Revolução com a instauração do Terror, considerado o auge da ditadura.
Marat foi assassinado em 1793 e Robbespierre teve o seu fim na guilhotina, em 1794.
Em anos de loucura e medo, percebemos que a passagem do regime absolutista para a República criou fissuras nas leis e na Justiça que tentava dar os primeiros passos de modo a seguir o seu curso assente no espírito da Revolução e na Razão.
A mínima referência ao período anterior constituía o motivo para terminar na guilhotina numa praça pública aos olhos de todos.
Este desejo de sangue e de aplicar a justiça de forma cega e arbitrária acompanham todo o romance que tem Evaristo Gamelin como personagem principal. Um jovem pintor e profundamente defensor dos ideais da Revolução Francesa foi convidado para ser jurado no Tribunal Revolucionário. Consciente dos seus ideais assentes na Razão, Gamelin não vê obstáculos para o cumprimento da Lei como forma de acabar com os “inimigos do povo” na guilhotina.
Face ao histerismo de Gamelin, a sua mãe, viúva, chamava-o à razão, solicitando ao filho calma e discernimento perante tempos de fome e miséria sentidas por todo o país. “Deixa lá, Evaristo. O teu Marat é um homem como os outros; não vale mais do que eles. És novo, tens ilusões.” (p. 19) “Mas não me venhas dizer que a Revolução há-de estabelecer a igualdade, pois os homens nunca serão iguais; não é possível, nem que virem o país de fundo para o ar: existirão sempre grandes e pequenos, gordos e magros.” (p. 22)
Mas Gamelin insiste ao contrapor a mãe e todos aqueles que se opõem à República ou que não acreditam nos ideais da Revolução que devem assumir-se como uma nova religião, concreta e real, em oposição às ideias cristãs. “Que importam as nossas privações, os nossos sofrimentos de um instante! A Revolução fará pelos séculos dos séculos, a felicidade do género humano.” (p. 20)
Os meses passam e as prisões enchem-se à conta de indivíduos de denunciam terceiros por questões cívicas, mas também por situações mesquinhas e até no seio das famílias com vista a receberem as heranças dos progenitores.
O leitor é levado a reflectir sobre o sentido da Justiça e a aplicação da mesma. Recordando Platão, ao questionar os seus interlocutores sobre o que era a Justiça, respondiam-lhe sempre sobre coisas justas, o que era e não justo, porém a essência da Justiça perdia-se na linguagem. Na prática, todos temos um sentido daquilo que é a Justiça, mas saberemos com rigor aquilo que é verdadeiramente a Justiça, a Ideia Inteligível de Justiça segundo o platonismo?
Daí que este romance tendo sido publicado há mais de um século permaneça actual atendendo à complexidade do tema da Justiça como pano de fundo. De acordo com os ideais da Revolução Francesa, poderíamos aludir que uma sociedade assente na Liberdade, Igualdade e Fraternidade é uma sociedade tendencialmente justa. Será mesmo assim? Como era a sociedade francesa um século depois da Revolução Francesa quando Anatole France escreveu este romance? Por que nos continuamos a interrogar um século depois sobre o sentido da Justiça?
Ainda que defensor e consciente destes valores que sustentam e República, Gamelin percebe que a aplicação da justiça começa a seguir caminhos tortuosos, podendo os mesmos desvirtuar a essência da própria Justiça e da República, no fundo.
Como forma de esvaziar as prisões, o Tribunal Revolucionário passou a fazer julgamentos em massa na sequência da aplicação da Lei de Pradial, livrando-se a República dos pretensos conspiradores.
“Acabam-se as instruções, os interrogatórios, as testemunhas, os defensores: o amor da pátria vale tudo isso. O acusado, que traz dentro de si o crime ou a inocência, passa mudo perante o jurado patriota. E é durante esse tempo que se tem de discernir uma causa, às vezes difícil e não raramente sobrecarregada e obscurecida. Como julgar agora? Como distinguir num instante o homem sério do criminoso, o patriota do inimigo da pátria?” (p. 198)
O importante era julgar fomentando, dessa forma, o medo junto da população perante a guilhotina que fazia rolar as cabeças dos “inimigos do povo”. O espectáculo perante a morte e o sangue derramado deixou Paris em estado de sítio na tentativa de se aplicar a pretensa Justiça. “Reina a paz em todo o território da República. Terror salutar, terror santo! Generosa guilhotina!” (p. 211)
Perante esta loucura que tomou conta de Paris durante o Terror, podemos aludir a uma passagem que caracteriza o Tribunal Revolucionário deste período: “O Tribunal Revolucionário assemelha-se a uma peça de William Shakespeare, que mistura com as cenas mais sanguinolentas as chocarrices mais triviais.” (p. 204)
Mas a História segue o seu curso e no meio de ideais e de sangue quente, mesmo quem é aparentemente bom, quem é genuíno face às ideias que defende pode ser apanhado na curva e ser surpreendido com a Justiça que aplicava a milhares de indivíduos considerados conspiradores que receberam o prémio da guilhotina. “É a tua vez, vampiro! Assassino a dezoito francos por dia! Agora já não ri: vejam como está pálido. Cobarde!” (p. 229)
Complexo e actual, “Os Deuses têm Sede” mostra-nos como o homem, sedento pela ideia de, é capaz de se transformar em algo semelhante ao Deus do Velho Testamento, cego, vingativo e cruel, capaz de perpetrar as maiores atrocidades contra os seus semelhantes, perdendo a lucidez, a Razão que o distingue dos animais e que, em tempo de guerra, tenta sobreviver como eles, olho por olho, dente por dente.
Dois anos após a publicação de “Os Deuses Têm Sede” iniciava a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) que fez mais de vinte milhões de vítimas mortais.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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