“Entre o instante em que o coração pára no corpo do dador e o momento em que ele volta a bater no do receptor, o órgão conserva-se durante quatro horas.”
(p. 123)
O meu primeiro contacto com “Cuidar dos Vivos” de Maylis de Kerangal (n. 1967) foi com a sua adaptação ao cinema através da realizadora Katell Quillévéré. Trata-se de uma história comovente e intensa, passada em vinte e quatro horas, sobre a morte inesperada de Simon Limbres, um jovem de 19 anos, e o transplante de alguns dos seus órgãos, em tempo útil, para outros pacientes.
A ideia apresentada deste modo parece fria e até cruel, no entanto, para quem viu o filme e depois durante a leitura, percebemos, com esse mesmo impacto, que perante situações de acidente que culminam com vítimas mortais, é necessário articular e dosear a informação sobre um dado falecimento aos familiares directos, neste caso, os pais do jovem, a par da abordagem sobre a possibilidade de doação de órgãos, numa altura em que a família ainda não digeriu sequer a ideia imediata que é a morte inesperada.
O filme foi marcante e tendo-o visto mais do que uma vez foi a razão por não ter lido de imediato o livro na medida em que se trata de um filme que ainda o tenho presente, pelas imagens esteticamente belas, os diálogos, as circunstâncias, os personagens.
Terminada a leitura do livro, constato que a adaptação ao cinema é notável, não necessitando de criar mentalmente os personagens porque recorro aos do filme, assim como aos demais cenários, e lendo os diálogos que, no fundo, me são familiares, seguem a par e passo a adaptação feita para filme.
Mesmo conhecendo a história e sabendo de antemão ao que ia encontrar, sou confrontado com uma forma de escrita muito diferente daquilo a que estou habituado, daí que seja importante e meritório reconhecer o trabalho dificílimo da tradutora de “Cuidar dos Vivos” de Maylis de Kerangal, por razões várias.
Somos confrontados com frases excessivamente longas e até de frases-parágrafo do tamanho de uma página ou mais, o que pode gerar alguma perda de concentração na fluidez do texto, não esquecendo que a autora mistura de modo exímio a narração com as falas dos personagens, o que pode trazer alguma confusão ao leitor, reconheço. Talvez pelo facto de estar familiarizado com a história e de a ter bem presente, reconhecendo as falas dos personagens, não senti dificuldade na leitura. A par destas particularidades da forma, há ainda a referir o trabalho hercúleo da tradutora no que concerne aos termos técnicos, quer aqueles relacionados com o surf e ainda todos os procedimentos técnicos relacionados com o transplante de órgãos, de modo a promover uma tradução objectiva, coerente e, correcta do ponto de vista científico, não esquecendo a necessidade da cadência e fluidez das frases, num discurso que poderá, numa primeira abordagem, conduzir a algum desalento na tentativa de chegar aos leitores.
O resultado, contudo, é excelente e, mesmo perante as particularidades acima descritas, o leitor é levado a compreender passo a passo, cada fase do processo relacionado com o transplante de órgãos.
“Cuidar dos Vivos” é uma obra que funde literatura com ciência e técnica e parece-me importante aludir a este aspecto, sobretudo porque poderíamos articular três pontos fundamentais nesta obra, a saber: o discurso científico em que são explicados os pontos fundamentais naquilo que é essencial, desde a morte cerebral (do jovem) até ao transplante de órgãos, toda a questão técnica, sempre clara, muito objectiva, e num tom deveras pragmático, mesmo quando se fala da morte e sobretudo porque através desta morte em particular pode vir a ser o veículo de vida para outros pacientes, e tudo isto gerindo toda a questão emocional perante a perda de um filho cujo cenário, ainda que doloroso seja promovido com humanidade e dignidade, salvaguardando também a sacralização do corpo depois de ter sido esventrado, para depois ser devolvido à família para serem realizadas as cerimónias fúnebres.
Chego a este momento e a cabeça explode de imagens e de ideias que se baralham entre a perda de um filho e que continuará vivo noutros corpos, em urgência da vida, por um rim, um pulmão, o fígado ou o coração (órgãos de Simon transplantados). Creio que será essa a ideia de conforto, ainda que jamais substitua a perda, a de uma certa redenção face à ideia de a morte do filho possibilitar a vida de terceiros.
São vários os momentos marcantes neste livro, muitas vezes até frases que surgem sob a forma de pensamento e que nos levam a reflectir sobre a vida e a morte e que a civilização ocidental pode ter atingido um grau de desenvolvimento tal, mas é necessário não esquecermos que, no essencial, somos seres humanos e podem passar milénios que as dúvidas e os medos do Homem continuam a ser os mesmos de há milénios e a questão do corpo perante a vida e a morte são sagrados (não necessariamente numa perspectiva religiosa).
O desenvolvimento científico e técnico que tem facilitado a muitas pessoas receberem um órgão transplantado obriga a um discurso humanista, mas também à reflexão sobre questões de ordem ético-moral e também religiosa, e esse ponto surge também salvaguardado numa breve passagem do livro, contudo, uma das mais importantes e também mais belas. “Esta fase da colheita, o restauro do corpo do dador, não pode ser banalizada, é uma reparação; é preciso agora reparar, consertar os estragos. Devolver o que foi dado tal como foi dado. Senão, é barbárie.” (p. 183)
A meu ver, esta frase, este pensamento, encerra a ideia de civilização e dos seus limites nunca desviando a atenção daquilo que é mais importante: o homem.
Excertos:
"(...) É o medo da morte e o medo da dor, o medo da operação, dos tratamentos pós-operatórios, o medo da rejeição e de que tudo recomece, o medo da intrusão de um corpo estranho no seu, é de se tornar uma quimera, e de deixar de ser ela mesma." (p. 145)
"O coração de Simon migrava para um outro lugar do país, os rins, o fígado e os pulmões chegavam a outras províncias, fugiam para outros corpos. O que subsistiria, nesta explosão, da unidade do seu filho? Como ligar a sua memória singular a este corpo difractado? O que seria feito da sua presença, do seu reflexo na Terra, do seu fantasma?" (p. 176)
Texto da autoria de Jorge Navarro
Lembro me bem do filme. Marcante!
ResponderEliminarGostei do post, vou considerar o livro para uma leitura em breve.
Boas leituras, Jorge e Cristina. Saudadinhas de ambos
Olá Cris! Também fiquei curiosa. Nem vi o filme nem li o livro. Bj
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