“A Noite do Professor Andersen”
Dag Solstad
(Cavalo de Ferro)
“O
que agita os corações das massas são as consequências da nossa
própria inadaptabilidade.” (p. 80)
“(…)
Já não temos uma consciência histórica, porque isso significa que
o nosso tempo desaparecerá connosco.” (p. 81)
Romancista,
contista e dramaturgo, Dag Solstad (n. 1941) é um dos nomes mais
importantes ligado às letras norueguesas na actualidade. Para quem
leu “Pudor e Dignidade” (Ahab, 2009), rapidamente se recordará
do estilo irónico, contido, reflexivo e também corrosivo na forma
como expõe as suas ideias no que concerne aquilo que interpretamos
por vida moderna e aquilo que nos move no sentido da felicidade.
Neste
romance “A Noite do Professor Andersen” (1996) de Dag Solstad,
publicado agora pela Cavalo de Ferro e com uma tradução
elegantíssima tanto quanto soberba a cargo de João Reis,
apresenta-nos uma obra que tem uma vez mais como figura central um
professor, desta vez, um professor universitário de Literatura
Norueguesa, um especialista das obras de Ibsen, o grande dramaturgo
de todos os tempos da Noruega.
A narrativa parte de um
episódio singular de o professor Andersen, na noite de Natal,
estando sozinho em casa, assiste ao assassinato de uma mulher, a
partir da janela da sua casa, no prédio em frente. Não sabendo
como, nem porquê, o professor Andersen decide não comunicar o
sucedido à polícia, optando por deixar o assassino em liberdade
ainda que se questione sobre quem seria a mulher, entretanto
assassinada, e o que acontecera com o corpo.
É
este episódio de grande comoção e estremecimento que leva o
professor Andersen a reflectir sobre a importância das obras de
Ibsen e a sua relação com as tragédias gregas de há 2500 anos.
Sob o mote de “Quando é que te comoveste pela última vez ao ver
ou ler uma tragédia grega?” (p. 80), o professor Andersen reflecte
sobre o estímulo que nos liga à vida e simultaneamente ao passado,
não esquecendo a reflexão sobre a durabilidade de uma dada obra de
arte, literatura, neste caso, por exemplo as obras de Ibsen, no
contexto da cultura norueguesa, mas como participantes de todo um
espírito herdado da cultura grega.
É
esta ideia de emoção/comoção impulsionada pela literatura que
constitui o estímulo que nos liga à vida, num ciclo que avança no
tempo através das novas gerações face à inquietação que sentem
ao compreenderem a obra de arte. Tal só é possível graças à
consciência histórica que temos enquanto homens e mulheres, mas
esta consciência é em si mesma limitada graças à batalha que
travamos com o tempo, o tempo linear, onde vivemos e morremos.
O
professor Andersen reflecte sobre esta temática na medida em que, de
um modo geral, o ser humano apenas consegue ter recordação ou
memória até duas gerações. A partir daí entramos na escuridão.
Em função desta ideia, desenvolve-se precisamente a capacidade de
as obras de arte sobreviverem ao tempo em que foram criadas. “A
suspeita de que a consciência humana não era capaz de criar obras
de arte que sobrevivessem à sua própria época. A batalha fútil da
consciência contra o tempo.” (p. 84) “A corrosão do tempo
destrói até os maiores feitos intelectuais, torna-os pálidos,
esbatidos.” (p. 82)
Neste
sentido, é, pois, necessário, ao apresentar as obras de Ibsen,
proceder a uma articulação com as tragédias gregas, de forma a que
se perpetue a ideia de cultura, num sentido mais abrangente. É esta
percepção da humanidade no que concerne à consciência história
que constitui o estímulo, a ligação passado-presente como que uma
ideia ancestral que remonta aos primórdios da Civilização
Ocidental, neste caso, a Grécia Antiga, o berço da Civilização
Ocidental, que constitui a identidade cultural que nos permite saber
quem somos e de onde viemos.
Neste
sentido, a obra de arte, literária ou não, deverá resistir ao
tempo em oposição à vida do Homem em geral, mas porque participa
da História, porque conta, em certa medida, a História do Homem.
Assim,
o estímulo constitui a força geradora que fomenta a criatividade
para a “construção” de obras de arte; o estímulo é uma
espécie de grito como resultado do choque em detrimento de ideias e
paradigmas estabelecidos.
Sobre
este ponto em particular, o professor Andersen reflecte sobre a sua
atitude, enquanto jovem, no que respeita ao seu interesse pela arte,
na medida em que “não procurava conforto, mas inquietação. Não
procurava a ordem que fora programado para ver e compreender, mas a
dissolução dessa ordem. Não se voltou para a arte para receber,
mas para ver.” (p. 39)
Passados
trinta anos, o professor Andersen é levado a concluir que estagnou
no tempo. A sua vida, a boa vida que leva face ao estatuto social que
a sua profissão lhe confere, à semelhança dos demais amigos da sua
geração, igualmente bem-sucedidos, apesar do conforto e qualidade
de vida adquiridos por via do dinheiro que coleccionam e esbanjam em
luxos e caprichos, não é sinónimo, contudo, de continuarem a
sentir a força, a energia que os move para a construção do futuro
ainda que com ligação ao passado, numa perspectiva cultural.
O
professor Andersen é cáustico no que respeita a esta ideia de
comodismo dado que é este comodismo que é interpretado por
inadaptabilidade pelas gerações mais jovens que permitem que a vida
e o futuro avancem. “(…) Não somos intelectuais intemporais,
somos intelectuais numa época comercial e profundamente influenciada
pelo que agita os corações das massas. O que agita os corações
das massas são as consequências da nossa própria
inadaptabilidade.” (p. 80)
Regressando
ao episódio do assassinato na noite de Natal a que o professor
Andersen assistiu, talvez tenha sido a luta entre o dever moral, o de
informar as autoridades face ao sucedido, e o ter o poder de decidir
a liberdade ou a prisão do assassino que tenha gerado a ideia ou
mesmo o sentimento de emoção/comoção que há décadas não o
vivia e que, agora, com 55 anos, já um homem maduro, voltou
novamente a sentir a ilusão conferida pelas tragédias gregas de há
2500 anos filtradas pela linha do tempo e assimiladas pela cultura
que se construiu.
Ao
mergulharmos neste romance-ensaio de Dag Solstad, somos levados a
reflectir sobre nós e o mundo, assim como a arte em geral, como
manifestação do espírito criativo, que tenta sobreviver ao seu
tempo.
Mordaz
e inteligente, “A Noite do Professor Andersen” é uma obra
singular que apresenta a literatura como obra de arte nessa difícil
tentativa de subsistir no tempo como as obras de Ibsen.
Texto da autoria de Jorge Navarro
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