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sexta-feira, 27 de julho de 2018

A Escolha do Jorge: "A Noite do Professor Andersen"


“A Noite do Professor Andersen”
Dag Solstad 
(Cavalo de Ferro)
O que agita os corações das massas são as consequências da nossa própria inadaptabilidade.” (p. 80)
(…) Já não temos uma consciência histórica, porque isso significa que o nosso tempo desaparecerá connosco.” (p. 81)
Romancista, contista e dramaturgo, Dag Solstad (n. 1941) é um dos nomes mais importantes ligado às letras norueguesas na actualidade. Para quem leu “Pudor e Dignidade” (Ahab, 2009), rapidamente se recordará do estilo irónico, contido, reflexivo e também corrosivo na forma como expõe as suas ideias no que concerne aquilo que interpretamos por vida moderna e aquilo que nos move no sentido da felicidade.
Neste romance “A Noite do Professor Andersen” (1996) de Dag Solstad, publicado agora pela Cavalo de Ferro e com uma tradução elegantíssima tanto quanto soberba a cargo de João Reis, apresenta-nos uma obra que tem uma vez mais como figura central um professor, desta vez, um professor universitário de Literatura Norueguesa, um especialista das obras de Ibsen, o grande dramaturgo de todos os tempos da Noruega.

A narrativa parte de um episódio singular de o professor Andersen, na noite de Natal, estando sozinho em casa, assiste ao assassinato de uma mulher, a partir da janela da sua casa, no prédio em frente. Não sabendo como, nem porquê, o professor Andersen decide não comunicar o sucedido à polícia, optando por deixar o assassino em liberdade ainda que se questione sobre quem seria a mulher, entretanto assassinada, e o que acontecera com o corpo.
É este episódio de grande comoção e estremecimento que leva o professor Andersen a reflectir sobre a importância das obras de Ibsen e a sua relação com as tragédias gregas de há 2500 anos. Sob o mote de “Quando é que te comoveste pela última vez ao ver ou ler uma tragédia grega?” (p. 80), o professor Andersen reflecte sobre o estímulo que nos liga à vida e simultaneamente ao passado, não esquecendo a reflexão sobre a durabilidade de uma dada obra de arte, literatura, neste caso, por exemplo as obras de Ibsen, no contexto da cultura norueguesa, mas como participantes de todo um espírito herdado da cultura grega.
É esta ideia de emoção/comoção impulsionada pela literatura que constitui o estímulo que nos liga à vida, num ciclo que avança no tempo através das novas gerações face à inquietação que sentem ao compreenderem a obra de arte. Tal só é possível graças à consciência histórica que temos enquanto homens e mulheres, mas esta consciência é em si mesma limitada graças à batalha que travamos com o tempo, o tempo linear, onde vivemos e morremos.
O professor Andersen reflecte sobre esta temática na medida em que, de um modo geral, o ser humano apenas consegue ter recordação ou memória até duas gerações. A partir daí entramos na escuridão. Em função desta ideia, desenvolve-se precisamente a capacidade de as obras de arte sobreviverem ao tempo em que foram criadas. “A suspeita de que a consciência humana não era capaz de criar obras de arte que sobrevivessem à sua própria época. A batalha fútil da consciência contra o tempo.” (p. 84) “A corrosão do tempo destrói até os maiores feitos intelectuais, torna-os pálidos, esbatidos.” (p. 82)
Neste sentido, é, pois, necessário, ao apresentar as obras de Ibsen, proceder a uma articulação com as tragédias gregas, de forma a que se perpetue a ideia de cultura, num sentido mais abrangente. É esta percepção da humanidade no que concerne à consciência história que constitui o estímulo, a ligação passado-presente como que uma ideia ancestral que remonta aos primórdios da Civilização Ocidental, neste caso, a Grécia Antiga, o berço da Civilização Ocidental, que constitui a identidade cultural que nos permite saber quem somos e de onde viemos.
Neste sentido, a obra de arte, literária ou não, deverá resistir ao tempo em oposição à vida do Homem em geral, mas porque participa da História, porque conta, em certa medida, a História do Homem.
Assim, o estímulo constitui a força geradora que fomenta a criatividade para a “construção” de obras de arte; o estímulo é uma espécie de grito como resultado do choque em detrimento de ideias e paradigmas estabelecidos.
Sobre este ponto em particular, o professor Andersen reflecte sobre a sua atitude, enquanto jovem, no que respeita ao seu interesse pela arte, na medida em que “não procurava conforto, mas inquietação. Não procurava a ordem que fora programado para ver e compreender, mas a dissolução dessa ordem. Não se voltou para a arte para receber, mas para ver.” (p. 39)
Passados trinta anos, o professor Andersen é levado a concluir que estagnou no tempo. A sua vida, a boa vida que leva face ao estatuto social que a sua profissão lhe confere, à semelhança dos demais amigos da sua geração, igualmente bem-sucedidos, apesar do conforto e qualidade de vida adquiridos por via do dinheiro que coleccionam e esbanjam em luxos e caprichos, não é sinónimo, contudo, de continuarem a sentir a força, a energia que os move para a construção do futuro ainda que com ligação ao passado, numa perspectiva cultural.
O professor Andersen é cáustico no que respeita a esta ideia de comodismo dado que é este comodismo que é interpretado por inadaptabilidade pelas gerações mais jovens que permitem que a vida e o futuro avancem. “(…) Não somos intelectuais intemporais, somos intelectuais numa época comercial e profundamente influenciada pelo que agita os corações das massas. O que agita os corações das massas são as consequências da nossa própria inadaptabilidade.” (p. 80)
Regressando ao episódio do assassinato na noite de Natal a que o professor Andersen assistiu, talvez tenha sido a luta entre o dever moral, o de informar as autoridades face ao sucedido, e o ter o poder de decidir a liberdade ou a prisão do assassino que tenha gerado a ideia ou mesmo o sentimento de emoção/comoção que há décadas não o vivia e que, agora, com 55 anos, já um homem maduro, voltou novamente a sentir a ilusão conferida pelas tragédias gregas de há 2500 anos filtradas pela linha do tempo e assimiladas pela cultura que se construiu.
Ao mergulharmos neste romance-ensaio de Dag Solstad, somos levados a reflectir sobre nós e o mundo, assim como a arte em geral, como manifestação do espírito criativo, que tenta sobreviver ao seu tempo.
Mordaz e inteligente, “A Noite do Professor Andersen” é uma obra singular que apresenta a literatura como obra de arte nessa difícil tentativa de subsistir no tempo como as obras de Ibsen.
Texto da autoria de Jorge Navarro

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