O
Nervo Óptico, María Gainza, 2014
Tive
com este livro uma experiência que nunca tivera antes. Li-o e quando
cheguei ao fim decidi voltar a lê-lo, desta vez com mais vagar,
pesquisando os pintores e os quadros que são nomeados ao longo do
livro, como se eu também acompanhasse a narradora/autora nas suas
deambulações pelos museus, galerias e salas onde ela encontra os
seus quadros favoritos ou aqueles que de alguma forma a levam “a
sentir aquela agitação que alguns descrevem como borboletas no
estômago…”
Também
a capa me atraiu e me criou repulsa. A imagem é sugestiva e
corresponde à imagem de uma mulher sozinha numa sala de um museu a
observar aquele quadro especial e único. Mas o título tal como está
grafado, numa subserviência ao novo acordo ortográfico é um
disparate. “O Nervo Ótico” para traduzir “El Nervio Óptico”!
O Dicionário da Língua Portuguesa distingue de forma clara: ótico=
do ouvido; relativo ao ouvido e óptico= referente à óptica ou à
vista; visual.
Costumo
ignorar as sinopses na contracapa dos livros, mas esta é perfeita,
sintética e muito completa, suficientemente sugestiva e não
enganadora.
O
livro é constituído por onze capítulos distintos em que a
autora/narradora nos guia por momentos diversos da sua vida enquanto
criança, jovem adolescente, adulta, desvendando-nos acontecimentos
em que os pais, ou os irmãos, amigas/os, familiares, o marido ou ela
própria são protagonistas. São quadros da sua vida que vai
associando a quadros de pintores que ela visita em museus na
Argentina ou noutras partes do mundo, alguns argentinos menos
conhecidos, outros mais famosos. A sua formação em História da
Arte permite-nos seguir pelo livro como se acompanhássemos uma guia
em visita a um museu, enquanto nos convida a reflectir sobre temas
tão diversos como os medos, a infância e a velhice, a fragilidade
da vida, mas usando frequentemente um tom bem humorado.
Alguns
breves traços desses capítulos:
Como
para ela os museus são uma espécie de abrigo, pois “o meu
instinto de sobrevivência leva-me sempre aos museus”, a recordação
de um dia em que o ar da cidade de Buenos Aires ficou irrespirável
devido à poluição e às cinzas de um fogo descontrolado, levou-a a
tentar ver as telas de Candido López, um pintor argentino conhecido
pelas cenas de guerra para quem o fogo e o fumo eram o mais difícil
de pintar.
A
partir da ideia presente em todo o livro de que “escrevemos uma
coisa para contar outra”, a cena de caça pintada por Alfred de
Dreux em que um cervo é encurralado por cães fá-la recordar a
morte acidental de uma amiga apanhada por uma bala perdida.
Quando
fala da amiga de infância - Alexia - a sua outra metade, uma espécie
de “amiga genial”, cheia de contradições e de disfarces,
associa-a à personalidade do japonês Fujita, o pintor de gatos, um
verdadeiro camaleão ao longo da sua vida.
A
atracção de Courbet pelo mar tempestuoso fá-la recordar uma prima
invulgar também chamada María que um dia se afogou e que cobria as
paredes do quarto com recortes azuis de revistas, numa colagem de mar
revolto.
Os
cavalos, um dos temas favoritos de Toulouse-Lautrec dão ensejo a que
recorde um episódio vivido pela prima – Amalia – que conhecera
duas japonesas a quem dera aulas de conversação em espanhol e que
viviam numa casa encostada a um hipódromo. O traço comum entre a
jovem japonesa e Toulouse-Lautrec foi o destino trágico de ambos
cuja vida os marcou por uma deformidade física.
A referência a Rothko aparece em dois momentos: numa reprodução na
sala de espera do consultório de um oftalmologista que a narradora
consultou por causa do “olho louco” e numa imagem junto à cama
do hospital onde o marido está internado. São apenas reproduções.
Mas para ver Rothko, tem que se ver uma tela ao vivo, porque uma
reprodução não consegue ter a força das cores vibrantes deste
pintor. Artistas invulgares e que ganham notoriedade dificilmente
conseguem deixar de ser alvo de críticas e de invejas, mas ao
contrário de outros pintores que são engolidos pelo sistema, Rothko
não se vendeu ao “dinheiro podre”.
A
imagem do tio Marion fica associada à liberdade, ao desejo de romper
com as prisões, com as convenções, mesmo quando nas visitas que
faz aos sobrinhos lhes leva um colibri numa gaiola, sabendo que
dificilmente ele irá sobreviver. Com efeito, “encerrarias num
frasco os raios de sol?”
O medo de andar de avião, coisa que passou a ser persistente com a
idade, leva a narradora a falar sobre a arte de Henri Rousseau e de
como os balões de ar quente o fascinaram e em muitas das suas
pinturas o céu é cortado por balões e outras máquinas de voar.
María
Gainza fala da sensação que teve ao olhar “La Niña Sentada”
uma pequena tela de Schiavoni e reconhecer-se nesse quadro quando era
criança. Embora seja para ela um motivo de alegria rever-se naquele
quadro, com a idade tem evitado visitar-se com frequência. O
confronto com o que fomos e o que somos nem sempre é feliz!
O
último capítulo, episódio, conto… é ensejo para falar da
pintura de El Greco, pintor cuja obra ela viu numa visita que fez ao
irmão mais velho que vive nos Estados Unidos. Um irmão com quem
sempre teve uma relação difícil. Anos mais tarde, a família
recebeu a notícia do seu falecimento repentino. Também um dia, a
autora se vê confrontada com um tumor que a vai pôr em contacto com
“um grupo de iluminados que vem diariamente fazer rádio” e
parece que há em todos eles uma tranqulidade, uma capacidade de
viver sem ansiedade. Cito as frases com que termina este livro
diferente, especial: “Sinto uma suave felicidade no cair da neve,
felicidade poética, acho que é assim que dizem. Daria um braço
para me lembrar de quem lhe chamou assim.”
24
de Julho 2018
Almerinda
Bento
Belíssima opinião, a da Almerinda Bento - tive muito gosto em a ler. Faz muito mais jus ao livro do que aquela que eu escrevi :)
ResponderEliminar